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ACÓRDÃO N.º 384/2016

 

PROCESSO N.º 491-D/2015

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

  1. LÍDIA CAPEPE AMÕES interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido no Processo n.º 515 da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que indeferiu o seu pedido de habeas corpus “por não ser este o meio idóneo para pôr termo à interdição de movimentação imposta à requerente”.
  2. O pedido foi apresentado no Tribunal Supremo a 19 de Maio de 2015, tendo como objecto a aplicação da medida cautelar de coacção que a obriga a permanecer na província de Luanda e a consequente interdição de saída do país, medida que lhe foi aplicada em Janeiro de 2014.
  3. Datado de 14 de Janeiro de 2014, consta dos autos o ofício do Digno Procurador-Geral Adjunto da República junto do DNIAP dirigido à Ilustre Mandatária da ora recorrente em que lhe é comunicado ter sido solicitada ao SME a interdição da saída de Lídia Capepe Amões, arguida no processo-crime registado sob o n.º 86/2013, por suspeita de crimes de corrupção, falsificação de documentos, abuso de confiança e branqueamento de capitais”(fls. 85).
  4. A medida de coacção aparece justificada, no referido ofício, pelo “receio fundado de pretender viajar para o exterior, com a intenção de criar embaraços e perturbação do processo” (fls. 85).
  5. O Digníssimo Representante do Ministério Público junto do Tribunal Supremo pronunciou-se no sentido de que o pedido de revogação da medida cautelar de coacção fosse atendido (fls. 50).
  6. Este parecer do Ministério Público baseou-se no facto de que os receios em que assentara a aplicação da medida de coacção se teriam desvanecido face ao resultado a que chegara a Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, no seu Acórdão de 12 de Março de 2015, que revogou a decisão do Tribunal Provincial de Luanda que decretara contra a ora Recorrente uma providência cautelar não especificada proibindo-a de praticar certos actos relativos aos bens da herança de seu pai, Valentim Amões, actos que estão na origem da queixa crime a que se reporta o processo n.º 86/2013 do DNIAP.
  7. No seu Acórdão agora recorrido, datado de 20 de Agosto de 2015,  o Tribunal Supremo indeferiu o pedido, decidindo pela negativa a questão prévia de saber se a providência de habeas corpus seria extensiva a pessoas não detidas nem presas.
  8. O processo foi com vista ao Ministério Público e aos vistos dos Juízes Conselheiros.

II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL

Nos termos do artigo 16.º, alínea m), da Lei n.º 2/08 de 17 de Junho e do artigo 49.º, alínea a), da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho, o Tribunal Constitucional é o competente para julgar os recursos de inconstitucionalidade interpostos de sentenças que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola.

III. LEGITIMIDADE

A ora Recorrente foi a requerente da indeferida providência de habeas corpus pelo que, nos termos do artigo 50.º, alínea a), da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho- Lei do Processo Constitucional, é parte legítima.

IV. OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é o Acórdão do Tribunal Supremo, proferido na 3.ª Secção da Câmara Criminal, Processo n.º 515, que indeferiu o pedido de revogação da medida de coacção de interdição de saída do país imposta à ora Recorrente, com fundamento na inadequação da providência de habeas corpus ao presente caso, na medida em que se tratava de um  instrumento exclusivamente destinado a pôr termo a detenção ou  prisão ilegal.

V. APRECIANDO

A ora Recorrente apresentou ao Tribunal Supremo um pedido de habeas corpus, nos termos do artigo 68.º da Constituição da República de Angola (CRA), com fundamento no excesso da limitação imposta à sua liberdade de circulação, no âmbito do processo contra si instaurado na DNIAP (processo n.º 86/2013).

Embora reconhecendo o Tribunal Supremo que a medida de interdição de saída do país afectava a liberdade de circulação da Requerente, excluiu do âmbito da providência de habeas corpus qualquer eventual abuso de autoridade que não se traduzisse em prisão ou detenção ilegal (n.º 1 do artigo 68.º da CRA).

Ora, os princípios que regem a liberdade individual, consagrados na Constituição e nas Convenções Internacionais a que Angola aderiu, visto o disposto no n.º 2 do art.º 26.º da CRA, apontam, no entanto, no sentido de integrar no âmbito da providência de habeas corpus qualquer outra restrição abusiva do direito à liberdade individual em todas as suas manifestações, como é o caso, especificadamente do direito de circulação expresso no artigo 46.º da Constituição da República de Angola.

Estando decorrido, à data do acórdão em apreciação, mais de ano e meio sobre o decretamento da medida de interdição da Requerente de saída do país, sem que tivesse sido deduzida a acusação ou a pronúncia contra a Requerente, tendo como elemento de comparação outros prazos constantes da lei penal, então vigente, relativos à prisão preventiva, era por demais evidente o excesso daquela medida de coacção.

Não seria coerente com a Constituição, com base numa interpretação restritiva de uma das suas disposições, deixar de decidir um pedido contra um excesso de uma medida de coacção quando esta reconhecidamente não se limite ao necessário, proporcional e razoável, numa sociedade livre e democrática (n.º 1 do artigo 57.º da CRA).

Com efeito, o acórdão recorrido fez uma interpretação literal do artigo 68.º da Constituição. Tal interpretação não se compagina com a moderna hermenêutica do regime dos direitos fundamentais consagrados na Constituição, nomeadamente a que orienta para a interpretação que prefira a máxima eficácia e abrangência dessas normas, vistas no conjunto da Constituição, tal como é indicado nos artigos 29.º, 46.º, 57.º e 66.º.

Entende, assim, o Tribunal Constitucional, que todos têm direito à providência de habeas corpus contra o abuso do poder, em virtude de prisão ou detenção ilegal mas, também, nos demais casos que consubstanciem restrições abusivas e ilegais a liberdade individual dos cidadãos consagrada na Constituição, tais como a interdição de saída do país, a prisão preventiva ou domiciliária.

Entretanto, já posteriormente à prolacção da decisão recorrida, foi publicada a Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal, a qual veio sujeitar todas as medidas de coacção aos mesmos princípios fundamentais, como os da necessidade, proporcionalidade, subsidiaridade e adequação (Preâmbulo), unificando os prazos a que a quase totalidade das medidas de coacção passam a estar submetidas.

Assim, nos termos da nova lei, a duração da interdição de saída do país não pode exceder os prazos estabelecidos para a prisão preventiva (n.º 3 do artigo 32.º e artigo 40.º da Lei n.º 25/15).

Por remissão para o artigo 40.º da Lei n.º 25/15, a medida de interdição de saída do país deve cessar quando tenham decorrido:

  1. quatro meses sem acusação do arguido;
  2. seis meses sem pronúncia do arguido;
  3. doze meses sem condenação em primeira instância.

Uma vez que se acham decorridos mais de dois anos desde a aplicação da medida de interdição de saída do país e não tendo sido ainda a Recorrente levada a julgamento, mostra-se largamente excedido o prazo de duração da medida de coacção aplicada (de 12 de janeiro de 2014 a 17 de Fevereiro de 2016).

A Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal não estabelece, no entanto, apenas o seu limite de duração, como as considera extintas com o decurso do respectivo prazo legal (alínea a) do n.º 1 do seu artigo 24.º).

Perante o reconhecimento de que se mostra esgotado, há muito, o prazo legal admissível para a aplicação da medida de coacção em causa, não pode este Tribunal, como Tribunal dos Direitos Humanos e Fundamentais que particularmente o é, especialmente no âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, deixar de dar provimento ao recurso, declarando a extinção da medida aplicada.

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado,

Acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em

Custas pela Recorrente, nos termos do artigo 15 da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, 17 de Fevereiro de 2016.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Rui Constantino da Cruz Ferreira (Presidente) 

Dr. Agostinho António Santos

Dr. Américo Maria de Morais Garcia) 

Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa 

Dr.ª Efigénia M. dos S. Lima Clemente

Dra. Luzia Bebiana de Almeida Sebastião

Dr.ª Maria da Imaculada L. da C. Melo 

Dr. Miguel Correia

Dr. Onofre Martins dos Santos (Relator)

Dr. Raul Carlos Vasques Araújo