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ACÓRDÃO N.º 388/2016

 

PROCESSO N.º 487-D/2015

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Daniel Gaspar Fernandes veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão do Tribunal Supremo que julgou deserto, por apresentação extemporânea das alegações, um recurso por si submetido contra o despacho em que é pronunciado pelo crime de burla por defraudação, pp. pelas disposições conjugadas dos artigos 451º e 421º, nº 5 do Código Penal.   

No despacho de pronúncia objecto do Acórdão recorrido, proferido pelo Juiz da causa a 12 de Novembro de 2014, no âmbito de um processo a correr trâmites na Sala das Questões Criminais do Tribunal Provincial do Bengo, foi mantida a situação carcerária do ora Recorrente, em conformidade com o estabelecido no artigo 373º do Código do Processo Penal.

O Recorrente, em sede do recurso que ora submete a este Tribunal, considera que a decisão do Tribunal Supremo põe em causa o seu direito à defesa e à tutela jurisdicional efectiva e que viola os artigos 29º, 174, nº 2 e 177º, todos da Constituição da República de Angola.

Para tanto, arrola os fundamentos que a seguir se enunciam:

O Tribunal Supremo, com base no acolhimento e reprodução da promoção do Ministério Público, considerou que o Recorrente havia sido notificado do despacho de admissão do recurso no dia 05 de Janeiro de 2015, quando, na verdade, a notificação teve lugar a 15 de Janeiro de 2015, sendo que, ao invés, a pessoa notificada a 05 de Janeiro de 2015 foi o Ofendido e Declarante António da Silva Lende, conforme fls. 170, 172, 173 e 174 dos autos do processo crime.

As alegações, ao contrário do que figura a fls. 180, deram entrada a 23 de Janeiro de 2015 e não a 26 de Janeiro de 2015 e foram recepcionadas por um ajudante de escrivão que já em outras ocasiões havia recepcionado documentos que se encontram no processo. Conferir fls. 55, 162, 163, 169 e 192.

O facto de o cartório não ter registado no livro de registo de recepção de documentos ou de porta na mesma data em que recebeu as alegações está na explicação da existência de duas datas, uma na cópia das alegações entregue ao ora Recorrente, e outra no duplicado constante a fls. 180 dos autos.

O registo tardio de recepção de documentos não pode ser imputável ao Recorrente, uma vez que não tem qualquer controlo e responsabilidade sobre o referido registo interno, pelo que os efeitos (suposta extemporaneidade) de tais erros não podem ser a si assacados, como decorre do Acórdão nº 351/2015, de 09 de Setembro de 2015, do Tribunal Constitucional.

O Venerando Tribunal Supremo, ao considerar que as alegações entraram fora do prazo e extrair dessa errónea constatação a deserção do recurso, coarctou ao Recorrente a possibilidade de aceder à tutela judicial para pleitear sobre os argumentos de facto e de direito do seu recurso contra o Despacho de Pronúncia.

O Recorrente termina pedindo a declaração de inconstitucionalidade do Acórdão recorrido em face da ilegalidade por desconformidade legal da fundamentação de facto em que se alicerça a decisão do Tribunal Supremo e da inconstitucionalidade por afastar o princípio à tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 29º da CRA, e colocar em causa o direito à defesa, onde se inclui o direito ao recurso.

II. LEGITIMIDADE

Nos termos da alínea a) do artigo 50º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade o Ministério Público e as pessoas, que de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.

O Recorrente vem pronunciado pelo crime de burla por defraudação e tem interesse processual em defender-se e afastar o juízo de probabilidade sobre a acusação que sobre si recai. Tem, em consequência, legitimidade para recorrer.

III COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL

Nos termos da alínea a) do artigo 49º da Lei n.º 3/08, com a alteração resultante da Lei nº 25/10, de 3 de Dezembro, é da competência do Tribunal Constitucional julgar, após esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, os recursos interpostos das sentenças que violem princípios, direitos fundamentais, garantias e liberdades dos cidadãos, faculdade igualmente estabelecida na alínea m) do artigo 16º da Lei nº 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, LOTC, com a alteração que resulta da Lei n.º 24/10, de 3 de Dezembro.

 IV. OBJECTO DO RECURSO

Constitui objecto deste recurso verificar a constitucionalidade do Acórdão recorrido que julgou deserto o recurso por apresentação extemporânea das alegações.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

V. APRECIAÇÃO

O presente recurso foi admitido por despacho do Juiz Presidente do Tribunal Constitucional, de 02/10/15, que recaiu sobre uma Reclamação contra a retenção do pedido de recurso extraordinário de inconstitucionalidade, com fundamento na caducidade do prazo legal de 5 (cinco) dias para decidir sobre a admissão do recurso interposto, em conformidade com o previsto nos artigos 5º, nº 1 e 42º, nºs 2 e 43º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional. Como já anteriormente referido por este Tribunal (Acórdão n.º 331/2014), “ A não prolação de decisão seja no sentido de admissão, seja no sentido de rejeição de um recurso extraordinário de inconstitucionalidade, dentro do prazo legalmente estabelecido, sem que haja uma justificação aceitável para tal inacção, constitui de facto um comportamento que consubstancia uma retenção de recurso”.

A questão central que dá causa ao presente recurso tem que ver com a verificação do facto que fundamenta a deserção, ou seja, a apresentação das alegações fora do prazo legal de oito dias previsto para o efeito.

Como supra referido, a decisão do Venerando Tribunal Supremo foi tomada com base na promoção do Ministério Público, inserta a fls. 228 dos autos, onde se lê que o Recorrente foi notificado do “douto despacho de admissão do recurso no dia cinco de Janeiro de 2015 – vide fls. 170, 172, e 173 dos autos. Assim o réu tinha o prazo de oito dias para a apresentação das suas alegações, que terminou no dia 23 de Janeiro de 2015, e as alegações deram entrada no dia 26 de Janeiro de 2015 – vide fls. 180 dos autos. …. “

Ora, como bem alega o Recorrente e se retira dos autos, tal não corresponde ao que realmente se passou, sendo que nenhuma das folhas acima mencionadas está relacionada com a notificação que a si (Recorrente) diz respeito. A fls. 170 está inserto o despacho de admissão do recurso, a fls. 172º o mandado para notificar deste despacho o declarante e ofendido no processo crime António da Silva Lende e a fls. 173 encontra-se a certidão referente a este mandado de notificação ao ofendido, com data de 05 de Janeiro de 2015.

Por outro, acresce acentuar que se tida como data de notificação o dia 5 de Janeiro de 2015, o que não foi o caso, o término do prazo de oito dias para a apresentação das alegações nunca seria a 23 de Janeiro de 2015, como expresso na promoção do Ministério Público e retomado no Acórdão do Venerando Tribunal Supremo, mas, antes, a 13 de Janeiro do ano aqui em referência.

Na verdade, é a fls. 174 dos autos que se encontra a certidão, com a data de 15 de Janeiro de 2015, que notifica o Recorrente da admissão do recurso contra o despacho de pronúncia, cujas alegações foram recepcionadas no último dia do fim do prazo para a sua apresentação, ou seja, a 23 de Janeiro de 2015, por sinal uma sexta-feira, conforme cópia assinada pelo Ajudante de Escrivão, cujo último nome se lê Muginga e que já havia recepcionado, como referido, outras peças processuais.

A fls. 180 estão efectivamente autuadas as alegações, porém com data de 26 de Janeiro de 2015, o que leva a admitir, em confronto com a cópia anexa ao processo de recurso, que esta peça processual foi registada em momento posterior ao da sua recepção. Aliás, nos termos do artigo 166º do Código do Processo Civil, aplicável subsidiariamente ao processo penal, os requerimentos, alegações e articulados, entre outros documentos, apresentados fora do prazo, devem ser submetidos a despacho do juiz para aceitação ou recusa, procedimento que, contudo, não foi observado, o que vem reforçar a convicção deste Tribunal de que as alegações foram registadas tardiamente.

Afigura-se, assim, evidente concluir que se a apresentação das alegações ocorreu dentro do prazo legal, não pode proceder o fundamento da deserção vertido no Acórdão do Tribunal Supremo, sob pena de configurar violação à lei e procedimento contrário ao estabelecido no artigo 177º, nº 1 da Constituição da República de Angola, que exige dos Tribunais a observância da Constituição, das leis e demais disposições normativas vigentes.

Ao entendimento acima expresso junta-se o facto de não ser a primeira vez que o Tribunal Constitucional é chamado a pronunciar-se sobre as consequências jurídicas do registo tardio de peças processuais que, enquanto acto de instrução processual, tem, como se sabe, repercussão sobre a apreciação do mérito da causa e sobre a consequente garantia de direitos constitucionalmente tutelados e a devida segurança jurídica. Fê-lo no seu Acórdão nº 351/2015, que serve, aliás, de fundamento às alegações do Recorrente, tendo firmado posição no sentido de que não pode ser imputada qualquer responsabilidade pelo registo tardio a quem submete ao tribunal requerimento dentro do prazo legal e só possua como único meio de prova do cumprimento do referido prazo a cópia recepcionada do requerimento em causa.

Esta é, pois, a situação que o caso sub judice configura, pelo que considera este Tribunal que assiste razão ao Recorrente quando alega que lhe foi coarctada a possibilidade de acesso à tutela judicial em decorrência da deserção do recurso, fundada na errónea constatação de apresentação extemporânea das alegações.

Na verdade, do princípio à tutela jurisdicional efectiva emerge um feixe alargado de direitos de que decorre não apenas o direito de recurso ao tribunal para obter uma decisão jurídica sobre a questão controvertida submetida à sua apreciação, mas igualmente o direito à uma protecção judicial sem lacunas, assente na Constituição e na lei, o que impõe a qualquer tribunal a obrigação de conduzir os processos de modo diligente, por forma a preservar todas as possibilidades de realização da justiça material, como se colhe em vasta doutrina e jurisprudência, incluindo a jurisprudência já firmada por este Tribunal.

Conforme já anteriormente decidido por este Tribunal (Acórdão n.º 387/2016), é entendimento do Tribunal Constitucional que a deserção de um recurso penal, por falta ou mora na apresentação das alegações, mesmo que fundamentada em lei vigente, é inconstitucionalidade material.

Decidindo,

Nestes termos, tudo visto e ponderado acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:  

Sem custas (artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho).

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, 11 de Maio de 2016.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Rui Constantino da Cruz Ferreira 

Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa 

Dr. Carlos Magalhães 

Dr.ª Guilhermina Prata 

Dr.ª Maria da Imaculada L. da C. Melo (Relatora) 

Dr. Onofre Martins dos Santos 

Dr. Raul Carlos Vasques Araújo

Dr.ª Teresinha Lopes