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ACÓRDÃO Nº 394/ 2016

 

PROCESSO Nº 455-B/2015

(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)

Em nome do Povo, acordam, em conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Albertina André Quiosa, com os demais sinais especificados nos autos, interpôs, com fundamento na alínea a) do artigo 49º da Lei nº 3/08 de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, tendo como base a seguinte argumentação:

- Foi condenada pelo Tribunal Provincial de Luanda, Sala dos Crimes Comuns, a 6 (seis) anos de prisão maior, resultando essa condenação do cúmulo jurídico de três crimes, todos eles de abuso de confiança;

-Entretanto, nas suas alegações, o Ministério Público pediu a convolação dos crimes de que ela vinha inicialmente acusada: de burla por defraudação, para abuso de confiança;

- O Juiz da causa acedeu a essa convolação e condenou-a na prática dos crimes supramencionados;

- Foi ainda condenada ao pagamento de uma indemnização no valor de AKZ 12.400.000.00, resultante do somatório dos seguintes valores:

  1. 2000.000,00 (dois milhões de Kwanzas), a uma das ofendidas, de nome Laura Miguel;
  2. 2.200.000,00 (dois milhões e duzentos mil kwanzas) a favor de outra ofendida, de nome Sílvia Raul; e
  3. 8.200.000,00 (oito milhões e duzentos mil Kwanzas) a favor da ofendida que atende pelo nome de Mery Gonga Miguel;

- Foi igualmente condenada, ao pagamento de 70.000,00 (setenta mil Kwanzas) a título de taxa de justiça;

- Da sentença proferida pelo Tribunal Provincial de Luanda, interpôs recurso, para o Tribunal Supremo, que confirmou a decisão daquele Tribunal, sem qualquer fundamento, o que motivou, esgotados os recursos ordinários, a apresentação junto do Tribunal Constitucional do presente recurso extraordinário.

Na perspectiva da Recorrente, dos factos acima arrolados resultaram algumas inconstitucionalidades a saber:

  1. Confirmação, no acórdão proferido pelo Tribunal Supremo, de crimes que nem sequer constavam na sentença recorrida, proferida pelo Tribunal Provincial;
  2. Porquanto, a Recorrente, ao contrário do disposto no acórdão proferido pelo Tribunal Supremo, foi condenada por três crimes de abuso de confiança e não por três crimes de burla por defraudação;
  3. Com tal prática o Tribunal Supremo violou o disposto no artigo 67º da Constituição da República de Angola;
  4. Outrossim, o Tribunal Supremo violou o dever constitucional de fundamentar as suas decisões, na medida em que, o Tribunal Supremo, ora Recorrido, indeferiu o recurso, confirmando a sentença recorrida, simplesmente afirmando que “confirma a decisão recorrida”;
  5. Defende-se ainda a Recorrente, utilizando o argumento segundo o qual, a convolação, tal como foi efectuada, viola a Constituição da República de Angola;
  6. Pois o Magistrado do Ministério Público só após as alegações da defesa reconheceu que não existia no processo elementos para condenar a Requerente pelos crimes que foi acusada e pronunciada;
  7. Ademais, a Lei Angolana rejeita a admissibilidade de convolação, com base, segundo a Requerente, na leitura atenta do artigo 447º do Código de Processo Penal;
  8. Portanto, o acórdão do Tribunal Supremo (que confirmou a sentença do Tribunal Provincial de Luanda), violou os seguintes artigos:
  1. Artigo 8º da Declaração Universal dos Direitos do Homem;
  2. Artigo 7º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, que, por força da ratificação feita pelo Estado Angolano, passa a fazer parte do nosso direito interno;
  3. Artigos 26º e 72º da CRA.

A Recorrente termina a sua exposição solicitando ao Tribunal Constitucional o seguinte:

  1. A admissão do recurso;
  2. A declaração de violação de direitos fundamentais e, consequentemente, a declaração de inconstitucionalidade do Acórdão recorrido.

II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL

O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos constantes da alínea a) do artigo 49.° e ss. da Lei n.° 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional, segundo o qual “podem ser objecto de recurso as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades, e garantias previstas na Constituição da República de Angola”, recurso que, nos termos do parágrafo único do artigo 49.°, com a redacção dada pelo artigo 13.° da Lei n.°25/10, de 3 de Dezembro, impõe o “prévio esgotamento nos tribunais comuns e demais tribunais, os recursos ordinários legalmente previstos”.

O recurso em apreciação incide sobre uma decisão do Tribunal Supremo, instância superior da Jurisdição Comum e da qual não cabe outro recurso ordinário, sendo, assim,   possível,  o recurso em matéria constitucional para este Tribunal.

Tem, pois, este Tribunal Constitucional competência para conhecer o recurso extraordinário de inconstitucionalidade do referido Acórdão.

III. LEGITIMIDADE

Nos termos da alínea a) do artigo 50.° da Lei n.° 3/8, de 17 de Junho, “podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

A ora Recorrente é  parte no processo que correu trâmites na Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, no qual foi  condenada a uma pena de prisão maior, o que evidencia, o seu interesse em dizer e contradizer. Portanto, tem legitimidade para interpôr recurso ordinário nos termos da legislação própria, apresentou-o junto do Tribunal Supremo, cujo acórdão decisório se requer aqui a apreciação em matéria constitucional.

Tem, assim, a Recorrente legitimidade para formular o pedido que ora submete à apreciação do Tribunal Constitucional.

IV. OBJECTO DO RECURSO

É objecto do presente processo o Acórdão do Tribunal Supremo proferido a 27 de Janeiro de 2015, em sede do processo (14939/14). Ao Tribunal Constitucional caberá analisar se o referido Acórdão - ao confirmar o conteúdo da sentença proferida pelo Tribunal Provincial de Luanda, que permite a convolação para crime diverso ao não fundamentar a decisão final - é ou não inconstitucional.

Portanto, esta Corte irá pronunciar-se sobre as seguintes questões:

  1. Pronunciamento do Tribunal Supremo em relação a crimes que não constam da sentença recorrida;
  2. Omissão do dever constitucional do Tribunal de fundamentar as suas decisões;
  3. Inconstitucionalidade da convolação.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos dos Venerandos Juízes Conselheiros, cumpre, agora, apreciar para decidir.

V. APRECIANDO

  1. Pronunciamento do Tribunal Supremo em relação a crimes que não constam da sentença recorrida

 A Recorrente foi inicialmente acusada e seguidamente pronunciada pelo crime de burla por defraudação, nos termos do nº 3 do artigo 451º do Código Penal, por referência ao nº 5 do artigo 421º do citado diploma.

 Ora, aquando das suas contra-alegações, em primeira instância, o Ministério Público, solicitou a convolação do crime acima referido, para o crime de abuso de confiança, pedido aceite pelo juiz, fundamentando tal aceitação com a argumentação de que embora a Recorrente tenha sido acusada e pronunciada pela prática de três crimes de burla por defraudação, os elementos desse tipo de crime não se verificarem na conduta da Ré a qual, pelo contrário preenche com clareza, os elementos típicos do crime de abuso de confiança.

Entretanto, na apreciação do Recurso, o Tribunal Supremo faz referência expressa ao crime de burla por defraudação, para fundamentar a sua decisão -confirmação da pena – ou seja, não se ateve aos contornos da sentença proferida pelo Tribunal Provincial de Luanda. Com tal posicionamento, o Tribunal Supremo, evidencia que não se vinculou e muito menos concordou com a convolação efectuada pelo Tribunal Provincial de Luanda, a pedido do Ministério Público.

Na apreciação dos recursos, o Tribunal Supremo não está vinculado às decisões proferidas pelos tribunais de primeira instância, podendo, no Acórdão que proferir, confirmar, alterar ou anular, conforme o caso, a decisão recorrida.

Neste caso, o Tribunal Supremo, não se vinculou à convolação efectuada pelo Tribunal Provincial de Luanda, e preferiu julgar o caso de acordo com o que vinha estabelecido na acusação, ou seja, julgando a Recorrente pelos crimes de burla por defraudação, que, à semelhança do que aconteceu em primeira instância, culminou com a aplicação da pena de 6 anos, ponderados todos os factores.

Outrossim, o Tribunal Supremo, ora Recorrido, confirmou a decisão do Tribunal Provincial de Luanda, mas com fundamentos diferentes, como resultado da diversa qualificação dos factos, situação acautelada pela legislação penal. Com efeito o Código de Processo Penal, nos seus artigos 447º e 448º, confere ao Tribunal a possibilidade de reformar a sentença em prejuízo do réu quando qualificar diversamente os factos; no caso em análise, a diversa qualificação não conduziu a reforma da sentença, mas apenas à sua manutenção. No entendimento de “se permite o mais permite o menos”, apesar da diversa qualificação, manteve-se a pena, o que não prejudica a Recorrente, porquanto, da qualificação efectuada, não resultou o aumento da pena de prisão, o que nos termos da legislação processual penal podia acontecer. 

No presente caso, o Acórdão do Tribunal Supremo não violou qualquer disposição constitucional.

  1. Da omissão do dever constitucional do Tribunal de fundamentar as suas decisões

Reconhece este Tribunal, por via de jurisprudência firmada, que as decisões dos Tribunais devem ser fundamentadas, como resulta claro do disposto no Acórdão n.º 122/2010, no qual o Tribunal Constitucional reconheceu que a Constituição da República de Angola (CRA) não consagra norma específica que obrigue à fundamentação das respostas aos quesitos, o que não impede que se devam fundamentar tais respostas, pois essa obrigação resulta da aplicação conjunta de várias normas e princípios. Ainda, segundo o Acórdão retromencionado: “este dever de fundamentação das decisões judiciais decorre directamente do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da CRA, pois este princípio obriga a que se desenvolva uma dimensão garantística que para além da protecção da liberdade individual, projecta exigências diferenciadas sobre a actuação do poder que de alguma forma possa afectar os particulares.”    

O Acórdão n.º 122/10, considerou necessária a fundamentação das decisões judiciais por referência aos artigos 67º n.º1, 65º n.º 6,174º n.º 2 e 177º nº 1, bem como ao artigo 14º n.º 1 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em razão do disposto nos números 2 e 3 do artigo 26º da CRA.

Não pode haver um entendimento contrário em relação à obrigação de fundamentação das decisões judiciais, porquanto “ a própria Constituição determina especificamente a necessidade de fundamentação de certas decisões judiciais… o que não podia servir de argumento contrário para entender que nos demais casos não havia necessidade de fundamentação, mas no sentido de que nesses casos a fundamentação não carecia de lei a prevê-la”[1].

Deste modo, cabe ao legislador ordinário o dever de construir um regime jurídico ordinário, que dê suporte a esta garantia constitucional, o que veio a acontecer, no ano passado, com a entrada em vigor da Lei 2/15, que estabelece as regras gerais da organização e funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum, que, no seu artigo 17º estabelece o dever de fundamentação das decisões judiciais:

  1. As decisões dos Juízes sejam por via de acórdãos,  sentenças ou meros despachos são sempre fundamentados de facto e de direito.
  2. A fundamentação não pode consistir na mera evocação de uma norma legal nem na adesão, por parte do juiz, às razões e alegações evocadas por qualquer das partes, incluindo o Ministério Público. 

No presente caso e tendo apreciado o Acórdão recorrido considera este Tribunal que foram apresentados de modo bastante os fundamentos de facto que sustentam a convicção da existência de crime, assim como os fundamentos de direito que qualificam tal ilícito penal como burla por defraudação (como constava na acusação e na pronuncia) e não como abuso de confiança (conforme sentença de 1.ª instância que o Acórdão recorrido modificou).

Não houve, consequentemente, violação do dever de fundamentação, porquanto, no douto Acórdão, os Juízes Conselheiros do Tribunal Supremo, esgrimiram os seus argumentos de facto e de direito, e portanto, a aplicação da pena de prisão resultante de um cúmulo jurídico, não surge de forma abrupta e instantânea, mas pode ser percebida na sequência argumentativa.

  1. Inconstitucionalidade da convolação

Embora a Ré tenha sido acusada e pronunciada pela prática de três crimes de burla por defraudação, a convolação efectuada pelo Tribunal Provincial de Luanda, resulta de uma reavaliação dos factos. Neste sentido, considera-se que aquele Tribunal, agiu em conformidade a Lei, pelo que não se verifica qualquer ilegalidade naquela conduta, uma vez que o artigo 447º do Código de Processo Penal estabelece expressamente que:

O Tribunal pode condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente.

Existe uma identidade inegável entre os tipos constitutivos dos crimes de abuso de confiança e de burla por defraudação. O objecto material do crime encontra-se em poder da Recorrente, por título que a obrigava a restitui-lo ou a aplicá-lo a fim determinado, que descaminhou e dissipou os valores que lhe foram entregues e não foi, assim, possível restitui-los ou aplica-los. Desse comportamento resultaram danos e prejuízos para as ofendidas.

A defesa da Recorrente não ficou prejudicada com a convolação, porquanto não se tratou de factos novos sobre os quais esta nunca havia se pronunciado, consequentemente, os argumentos apresentados por ocasião da defesa aquando da acusação por burla por defraudação, servem para a defesa em sede da condenação pelo crime de abuso de confiança.

Se não vejamos, a defesa, ainda em 1.ª instância, defendeu-se com recurso aos seguintes argumentos:

  1. Excepção dilatória, incompetência do Tribunal, pois tratava-se de um ilícito civil e não criminal, portanto o caso deveria ser apreciado pela Sala do Cível;
  2. Ilegalidade da detenção;
  3. Excesso de prisão preventiva.

Ora, em qualquer dos casos, tais argumentos seriam apresentados, qualquer que fosse o crime. Por outro lado, o que se discute nos dois tipos de crimes é a questão da apropriação indevida de valores e o objectivo é a sua devolução; portanto, não faltou oportunidade para a defesa esgrimir os seus argumentos. Por outro lado, a defesa não foi prejudicada pois aos crimes em questão aplica-se a mesma moldura penal e, consequentemente, em função dos valores, só pode ter como consequência a aplicação da mesma pena.

 Neste sentido, a convolação não foi para crime mais gravoso, mas sim para um crime com a mesma moldura penal.

Portanto, não se verifica no caso “sub judice”, qualquer inconstitucionalidade, na medida em que a convolação obedeceu aos requisitos legalmente estabelecidos, nem prejudicou o exercício pela Recorrente do seu direito à defesa.

Por tudo quanto acima foi apreciado não pode vingar o presente recurso. Contudo reconhece este Tribunal que a Recorrente é mãe com filhos menores de 12 anos a seu cargo e não cometeu crime de que tenha resultado a morte, pelo que pode beneficiar do indulto previsto no n.º 2 do art. 1.º do Decreto Presidencial n.º 173/15 de 15 de Setembro, a ser tratado em sede própria. 

DECIDINDO

Nestes termos;

Tudo visto e ponderado acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:  

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho (Lei do Processo Constitucional).

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 09 de Junho de 2016.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Rui Constantino da Cruz Ferreira (Presidente) 

Dr. Américo Maria de Morais Garcia (Relator) 

Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa 

Dr. Carlos Magalhães 

Dra. Luzia Bebiana de Almeida Sebastião

Dr.ª Maria da Imaculada L. da C. Melo 

Dr. Raul Carlos Vasques Araújo 

Dr. Simão de Sousa Victor (declarou-se impedido).

Dra. Teresinha Lopes 

 

[1] CANOTILHO, José Joaquim e MOREIRA Vital, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol II artigos 108º a 296º, Coimbra Editora p 527.