ACÓRDÃO N.º 414/ 2016
PROCESSO N.º 471-A/2016
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do povo, acordam, em conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Maria Emília Romana Januário dos Santos Van-Dúnem e Esposo vieram ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade contra o Acórdão do Tribunal Supremo, prolatado no Processo nº 1373/09, que não reconheceu o seu direito de propriedade sobre um imóvel situado na comuna do Ngangula – Sumbe, adquirido ao Estado, em 23 de Agosto de 2003, no âmbito da Lei 10/94, de 31 de Agosto, Lei das Privatizações, e da Lei 8/03, de 18 de Abril, Lei de Alteração à Lei das Privatizações, através da Comissão Provincial de Redimensionamento Empresarial.
Nos termos deste Acórdão, os Recorrentes foram condenados a restituírem o referido prédio urbano, livre de pessoas e bens e de quaisquer ónus e encargos, a Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo, autores de uma acção de reivindicação de propriedade que correu trâmites no Tribunal Provincial do Kwanza - Sul. A alienação a estes últimos do imóvel aqui em causa ocorreu, em 17 de Abril de 2003, ao abrigo da Lei sobre a Venda do Património Habitacional do Estado, Lei 19/91, de 25 de Maio.
Em face do decidido, consideram os Recorrentes que o Acórdão recorrido viola direitos constitucionalmente protegidos, designadamente o direito à propriedade privada e o direito a um julgamento justo e em conformidade com a lei, previstos nos artigos 14.º, 37.º, nº 1 e 72.º da Constituição da Republica de Angola, CRA.
Assim, arguindo a nulidade desta decisão, alegam, no que no essencial releva para o presente recurso, o seguinte:
Em face do exposto, entendem que a decisão recorrida foi tomada contra lei expressa e que viola frontalmente os artigos 659.º, nº 2, 661.º, 668.º, nº1 alíneas d) e e) e 201.º do CPC, artigos 7.º, 8.º e 12.º do Código do Registo Predial, artigos 6.º, 364.º, 369.º, 371.º e 1281.º do CC, artigo 1º da Lei 10/94, artigos 1.º e 5.º da Lei nº 8/03 de 18 de Abril e os artigos 76.º, nº 2 alínea a) e 77.º do Decreto-Lei nº 16-A/95.
Terminam pedindo ao Tribunal Constitucional que considere nulo e nenhum efeito jurídico o Acórdão recorrido, porque injusto e atentatório contra o seu direito à propriedade privada.
II. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da Lei 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.
Os Recorrentes foram réus na Acção de Reivindicação de Propriedade que correu trâmites no Tribunal Provincial do Kwanza-Sul, com o nº 26/2006, e que deu lugar, em instância de recurso para o Venerando Tribunal Supremo, ao Acórdão de que ora recorrem.
São, como tal, parte na relação material controvertida, com interesse numa decisão final sobre o mérito da causa e, consequentemente, com legitimidade para recorrer.
III. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
O presente recurso foi admitido nos termos do artigo 43.º da Lei nº 3/08, de 17 de Junho, na sequência da revogação do despacho que indeferiu o pedido de interposição do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, proferido pela Veneranda Juíza Relatora do Tribunal Supremo com fundamento no facto de não se encontrarem esgotados os meios de impugnação no Tribunal Supremo ( Vide fls. 281 dos autos do recurso de apelação - “Indefiro o recurso ora interposto porquanto ainda não se esgotaram os meios de impugnação em sede desta instância”).
No seu despacho, exarado sobre a Reclamação deduzida pelos Recorrentes, o Venerando Juiz Presidente do Tribunal Constitucional em exercício considerou, em decorrência do previsto no nº 3 do artigo 42.º da Lei nº 3/08, não existir fundamento para o indeferimento e que o pedido de interposição do recurso extraordinário de inconstitucionalidade estava em conformidade com o previsto na alínea a) do artigo 49.º da Lei 3/08, com a alteração resultante da Lei nº 25/10, de 3 de Dezembro.
Desta última disposição legal decorre ser da competência do Tribunal Constitucional julgar, após esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, os recursos interpostos das sentenças que violem princípios, direitos fundamentais, garantias e liberdades dos cidadãos, faculdade igualmente estabelecida na alínea m) do artigo 16.º da Lei nº 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, LOTC, com a alteração que resulta da Lei 24/10, de 3 de Dezembro.
IV. OBJECTO DO RECURSO
Em face das alegações e do pedido, considera este Tribunal que, neste recurso, está em causa verificar se o Acórdão do Tribunal Supremo atenta, tal como alegado, contra o direito à propriedade privada dos Recorrentes, constitucionalmente protegido nos termos dos artigos 14.º e 37.ºda CRA e, em decorrência, contra alguma das dimensões em que se materializa o direito a um julgamento justo e em conformidade com a lei, previsto no artigo 72.º também da Constituição da República de Angola.
O Processo foi com vista ao Ministério Público
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
V. APRECIAÇÃO
No cerne da presente controvérsia, tal como se extrai dos autos, está um imóvel cuja estrutura integra uma parte destinada à habitação e outra à actividade comercial, sendo que quer os Recorrentes quer os proprietários legitimados pelo Acórdão do Venerando Tribunal Supremo adquiriram a propriedade in totum deste bem, por compra feita ao Estado, embora a entidades distintas.
No quadro da Acção de Reivindicação da Propriedade intentada por Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo, o Tribunal Provincial do Kwanza Sul considerou, no seu saneador-sentença e sustentado em contratos de arrendamento celebrados com Delegação Provincial da Secretaria de Estado de Habitação, que os ora Recorrentes apenas detinham o direito de uso sobre as duas divisões do imóvel destinadas à actividade comercial, a saber, uma loja e um armazém.
A Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo reconheceu, por seu lado, o direito de arrendamento sobre a parte residencial, integrada por uma sala, três quartos, uma casa de banho, uma cozinha, quintal, anexos e garagem.
Partindo desta premissa, o Tribunal de primeira instância julgou improcedente a Acção de Reivindicação de Propriedade e nula a compra e venda das fracções do prédio não incluídas nos respectivos contratos de arrendamento, tanto para os autores da acção, como para os aqui Recorrentes.
Do saneador - sentença, ambas as partes interpuseram recurso para o Tribunal Supremo pedindo a declaração de nulidade da decisão e o consequente reconhecimento do direito à propriedade sobre a totalidade do imóvel, fundando a sua pretensão, entre outros argumentos, nos documentos relativos à compra e venda, a que o Juiz da causa não atribuiu a devida força probatória, ex vi dos artigos 363.º, nº 2, 371.º, nº 1 e 372.º nº1, todos do Código Civil.
O Tribunal Supremo, acolhendo os argumentos das partes e alicerçado, entre outros, no artigo 668.º, nº 1, d) do CPC, anulou a decisão do Tribunal Provincial do Kwanza Sul e julgou a apelação nos termos do artigo 715.º do CPC. Deu como provados os factos relativos à aquisição da totalidade do imóvel por parte de Isabel Silveira e Esposo e considerou validamente celebrada a escritura pública de compra e venda a favor destes, que foi outorgada a 17 de Abril de 2003, ao abrigo do artigo 5º da Lei 19/91, de 25 de Maio.
Reconheceu, em consequência, o direito de propriedade de Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo e considerou a venda efectuada pelo Estado aos aqui Recorrentes com uma venda de bens alheios e, como tal, nula, face ao disposto no artigo 892.º do Código Civil, atendendo à seguinte ordem de razões:
(i) Ao facto de o imóvel já não se encontrar na esfera jurídica do Estado à data em que os ora Recorrentes o adquiriram. A outorga da escritura pública do contrato de compra e venda a favor dos Recorrentes teve lugar a 23 de Agosto de 2005, por adjudicação feita através da Comissão Provincial de Redimensionamento Empresarial do Sumbe/Kwanza-Sul (certidão a fls. 46).
(ii) Ao facto de os Recorrentes não serem titulares de qualquer contrato de arrendamento relativo ao imóvel, na altura em que se habilitaram à compra do mesmo. Nos autos, a fls. 160, encontra-se, no entanto, um contrato de arrendamento referente à parte comercial do imóvel, firmado, a 5 de Novembro de 2002, com a Direcção Provincial da Habitação.
(iii) Ao facto de ser possível comprar a totalidade do imóvel, nos termos da Lei 19/91, de 25 de Maio, em virtude de estar em causa um imóvel indivisível e logo não passível de desanexação, não obstante a lei aqui referida (Lei 19/91) remeter a aquisição de estabelecimentos comerciais para diploma autónomo.
O Venerando Tribunal Supremo ordenou igualmente o registo do imóvel a favor de Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo. A fls. 128 dos autos encontra-se, porém, uma certidão emitida pela Conservatória dos Registos do Kwanza Sul que averba a inscrição do imóvel em nome destes últimos, datada de 03/08/2006, ou seja, com data posterior à da propositura da acção de reivindicação de propriedade, que teve lugar a 01/08/2006, e que foi junta ao processo aquando do oferecimento de Réplica por Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo. A fls. 51 consta uma outra certidão de averbamento da inscrição, com a data de 06/11/2006, exarada em nome dos Recorrentes pela mesma Conservatória e que integra o rol dos documentos apensos à Contestação, apresentada a 15/11/2006.
Tendo em conta o acima vertido, é entendimento deste Tribunal que a sindicância que é pedida, ou seja, a de avaliar se o aresto posto em crise foi proferido contra lei expressa e se atenta contra um eventual direito à propriedade privada dos Recorrentes, está fundamentalmente alicerçada nas questões sobre as quais o Venerando Tribunal Supremo não se pronunciou, como alegam os Recorrentes, e que poderão constituir afectação aos direitos reclamados como violados.
Antes, porém, e a título de questão prévia, considera este Tribunal ser pertinente acentuar que, pela via do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, não está em causa uma segunda reapreciação dos factos submetidos a juízo. Na sua essência, este recurso não tem por escopo confrontar os fundamentos da decisão recorrida e os factos considerados provados, a valoração jurídica de tais factos e a consequente aplicação do direito infraconstitucional. O seu propósito é, antes, o de dar amparo a lesões efectivas de direitos, princípios, liberdades e garantias fundamentais, através do controlo jurisdicional da constitucionalidade dos actos e decisões que possam atentar contra tais direitos, princípios liberdades e garantias, com base numa ponderação das circunstâncias, em face do caso concreto, e estabelecendo uma relação entre a protecção devida e a afectação do reclamado como tendo sido violado.
A tutela constitucional do direito à propriedade privada é fundamentalmente assegurada nos artigos 14.º e 37. º nº 1 da Constituição da República de Angola. O âmbito de protecção deste direito envolve essencialmente a liberdade/o direito de adquirir bens; a liberdade/o direito de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; a liberdade/o direito de os transmitir e o direito de não ser privado deles (ver JJ Canotilho e Vital Moreira, em CRP Anotada).
Partindo do pressuposto acima enunciado de que, na aplicação do direito infraconstitucional, qualquer Tribunal está obrigado a observar os direitos, liberdades e garantias na medida em que estes “valham para a decisão do caso concreto, importará assim avaliar se o reclamado direito à propriedade privada, em qualquer uma das suas dimensões, foi preterido na resolução do caso vertente ou se, como alegado, ocorreu uma aplicação errada da lei.
Assim, e entre as questões sobre as quais o Venerando Tribunal Supremo não se pronunciou, releva, deste logo, a relacionada com a protecção que resulta da designada aquisição tabular, prevista nos artigos 7.º do CRP e 291.º do CC. Aquisição esta que, como se sabe, tem que ver com o efeito atributivo do registo predial e da qual decorre a protecção de um terceiro que, com fundamento na fé pública do registo, adquire um direito real, como, por exemplo, o direito de propriedade, reclamado pelos Recorrentes.
Sobre esta matéria e sustentados no nº 1 do artigo 7.º do CRP que estabelece que “ os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo” e no artigo 291.º do CC, os Recorrentes vêm alegar que o Venerando Tribunal Supremo não teve em conta o Instituto dos Bens Sujeitos a Registo e que, consequentemente, não colhe o argumento segundo o qual o Estado vendeu um bem alheio que já havia entrado na esfera jurídica de Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo. Isto porque estes não haviam registado o imóvel e porque a venda primeiro registada foi a sua.
Embora o Acórdão recorrido não se pronuncie objectivamente sobre esta questão, resulta das certidões insertas a fls. 51 e 128 dos autos, a que acima se faz referência e cuja falsidade não foi arguida em nenhuma das fases do processo, que a presunção a retirar da verdade registal a favor dos Recorrentes é afastada pela regra da prevalência do primeiro registo (princípio da prioridade) que, no caso sub judice e ao contrário do alegado, não foi efectuado pelos Recorrentes, mas antes por Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo. Estabelece o nº 1 do artigo 9.º do CRP que “o direito em primeiro lugar inscrito prevalece sobre os que, por ordem do registo, se lhe seguirem ….”.
Ora o que se verifica é que a certidão de registo predial, lavrada em nome dos Recorrentes, tem aposta a data de 06/11/2006 e a que consta em nome de Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo a data de 03/08/2006, o que torna improcedente a protecção associada à presunção de titularidade do direito de propriedade em virtude do efeito atributivo do registo predial. A protecção resultante da aquisição tabular aqui em causa só poderia ocorrer caso o primeiro negócio jurídico não estivesse registado, o que claramente não é a situação que os autos demonstram. O registo do primeiro negócio tem, nesta matéria, um efeito consolidativo e este efeito impede a protecção tabular do terceiro de boa-fé, ou seja, consolida o direito na esfera jurídica do adquirente (no caso de Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo), pondo-o a salvo de uma aquisição tabular (ver Direitos Reais de Angola de José Alberto Vieira, in Direitos Reais de Angola).
Considerada nula a venda feita aos Recorrentes, como declarado no Acórdão do Venerando Tribunal Supremo, improcede igualmente, por força da fé pública subjacente ao primeiro registo, a aquisição tabular a que se refere o artigo 291.º do CC, que tem em vista assegurar protecção ao subadquirente que adquire a sua posição jurídica real com base num negócio jurídico nulo, mas que regista a sua aquisição antes do registo da acção de nulidade ou anulação ou do registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.
Também não procede a presunção que deriva do registo inserida no artigo 8.º do CRP que vem estipular que “o registo definitivo constitui presunção não só de que o direito registado existe, mas de que pertence à pessoa em cujo nome esteja inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
Esta é, por princípio geral, uma presunção elidível mediante prova em contrário (art.º 350.º, nº 2 do CC.). Nesse sentido, os factos sobre que versa o registo podem, assim, ser impugnados, com o consequente cancelamento do registo, o que permite inferir que é ao direito não registal, isto é, à ordem jurídica substantiva, que cabe fixar a titularidade, conteúdo e subsistência das situações jurídicas reais, sendo que em caso de divergência entre a realidade substantiva e a realidade expressa pelo registo é a primeira que prevalece. (ver José Alberto Vieira, na obra acima citada e também Oliveira Ascensão, em Direito Civil Reais)
Ao abrigo do que dispõe o artigo 879.º do CC, a transferência da titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel objecto da presente contenda a favor de Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo operou-se, deste modo, por mero efeito do contrato de compra e venda, cuja escritura pública foi outorgada a 17 de Abril de 2003, o que vem reforçar o entendimento reflectido no Acórdão do Tribunal Supremo ao classificar a venda efectuada aos Recorrentes como uma venda de bens alheios. Uma venda que, por se tratar de res inter alios, é tida por ineficaz na relação com os verdadeiros proprietários do imóvel, não alterando o direito de propriedade destes, como se retira de alguma doutrina e jurisprudência.
Assim, numa situação de disposição de bens alheios e fora do âmbito das excepções que resultam da aquisição tabular, que não se aplicam ao caso em apreço, impõe-se, em obediência à própria constitucionalização do direito de propriedade, que seja garantida protecção ao direito do verdadeiro proprietário. E nesse sentido a decisão do Venerando Tribunal Supremo ao reconhecer a Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo o direito de propriedade sobre o imóvel situado na comuna do Ngangula.
Também improcede o pedido de nulidade do Aresto recorrido fundado na inobservância do artigo 12.º do CRP, o que, como abaixo se verificará, poderia configurar afectação ao princípio da congruência, ou seja, da correlação entre o pedido e a decisão, caso o Venerando Tribunal Supremo tivesse proferido uma decisão ultra petita, como se retira das alegações dos Recorrentes
Nos termos do artigo 12.º do CRP, “os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo, sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo”. Os Recorrentes alegam que Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo não pediram nem a nulidade da compra e venda, nem o cancelamento do registo, sendo, por isso, nula a decisão do Venerando Tribunal Supremo, ex vi dos artigos 201.º e 668.º, nº 1, alínea e) do CPC. Este entendimento é, no entanto, contrário ao que se infere das alegações apresentadas em sede do recurso de apelação por Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo, onde, partindo-se do pressuposto sobre a nulidade da compra e venda feita aos Recorrentes, é objectivamente pedido o cancelamento do registo a seu (Recorrentes) favor (ver fls. 228).
Hodiernamente, largos sectores da doutrina e da jurisprudência propugnam mesmo por uma mitigação do princípio da congruência nas circunstâncias em que uma vinculação aos exactos termos do pedido venha a prejudicar a protecção efectiva do direito material violado. Ora, ainda que o pedido de nulidade da compra e venda não tivesse sido expressamente formulado, o reconhecimento do direito de propriedade de Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo que implicou “sacrificar” o direito pretendido pelos Recorrentes, passaria sempre por um pronunciamento sobre (in) validade do negócio jurídico constitutivo do direito reivindicado como violado.
Numa outra vertente`, e também enquanto questão relativamente qual o Venerando Tribunal Supremo não se teria pronunciado, vêm os Recorrentes suscitar um alegado conflito de competências entre os Órgãos da Administração Pública que procederam à alienação do imóvel, ou seja, a Comissão Provincial para a Venda do Património Habitacional do Estado (CPVPHE) e a Comissão Provincial de Redimensionamento Empresarial do Kwanza – Sul (CPRE).
Verifica-se, porém, que ao ser validada pelo Venerando Tribunal Supremo a venda feita pela CPVPHE a Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo, o alegado conflito de competências não chega sequer a concretizar-se nos termos equacionados pelos Recorrentes que, a respeito, citam o Ilustre Professor Diogo Freitas do Amaral para afirmar que “o conflito de competências traduz uma disputa acerca da existência ou do exercício de um determinado poder e há conflito positivo quando dois ou mais órgãos da administração pública reivindicam para si a prossecução da mesma atribuição ou exercício da mesma competência”. Tal não é, contudo, a situação vertida no Acórdão recorrido. O Venerando Tribunal Supremo, ante a factualidade provada, considerou o imóvel indivisível e não passível de desanexação. Nesse sentido, a Comissão Provincial de Redimensionamento Empresarial nunca teria competência material, para alienar o imóvel aos Recorrentes, quer nos termos da Lei 19/91, quer da Leis 10/94 com as alterações introduzidas pela Lei 8/03, sendo também o acto de alienação nulo, por força da incompetência em razão da matéria, além de ser igualmente possível aferir da nulidade deste acto a partir do estabelecido na alínea d) do artigo 76.º do Decreto-Lei nº 16-A/95, de 15 de Dezembro sobre o Procedimento Administrativo, por exactamente estar em causa a afectação do conteúdo essencial de um direito fundamental, no caso, o direito de propriedade de Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo.
Não obstante considera este Tribunal que, estando os ora Recorrentes constitucionalmente protegidos pelo princípio da protecção da confiança, se impõe retirar consequências jurídicas dos actos praticados pelo Estado (adjudicação de bem alheio e a respectiva alienação efectuada pela CPRE), pelo que os Recorrentes, se assim o quiserem, poderão formular pedido de indemnização ao competente órgão da Administração do Estado pelos prejuízos sofridos.
Perante o que antecede, resulta evidente que o Venerando Tribunal Supremo não teria chegado a solução diferente da plasmada no Acórdão recorrido caso tivesse atendido, de forma objectiva, como pretendido, às questões enunciadas pelos Recorrentes no âmbito do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Deste modo, entende este Tribunal que, reconhecido o direito de propriedade nos termos vertidos na decisão posta em crise, despiciendo se tornará verificar se, no caso em apreço, se está ou não em presença de uma venda perfeita, se a acção de reivindicação da propriedade proposta por Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo é própria ou imprópria ou se a detenção da posse reclamada pelos Recorrentes redunda na nulidade da decisão proferida pelo Venerando Tribunal Supremo. Na verdade, da posse pode resultar, em termos imediatos, a presunção de titularidade de um direito de propriedade. Todavia, a protecção que da posse decorrer será sempre provisória, na medida em que poderá ceder no confronto com o direito de propriedade, quando, com justa causa e amparo legal, o titular do direito a ela associado fizer valer o seu direito contra o possuidor, assim resulta da doutrina e da jurisprudência.
O direito de propriedade, enquanto direito fundamental, análogo aos demais direitos, liberdades e garantias, possui, pois, uma componente negativa e de defesa que se concretiza na prerrogativa de o seu titular não ser privado da propriedade, nem do seu uso, faculdade que vem reflectida nos artigos 1305.º e 1308.º do CC e que o Acórdão recorrido acolheu ao conferir provimento ao pedido de Isabel Maria Ferreira Tavares da Silveira e Esposo e ao não atender à pretensão dos Recorrentes. Aliás, esta prerrogativa de defesa da propriedade encontra-se igualmente consagrada no artigo 47.º da Declaração Universal do Direitos Humanos.
VI. CONCLUSÃO E DECISÃO
Nesta senda, é convicção deste Tribunal que, da aplicação do direito positivo à presente controvérsia, não resultou qualquer afectação ao hipotético direito de propriedade, nas suas diferentes dimensões, reivindicado pelos Recorrentes, sendo que o Acórdão do Venerando Tribunal Supremo não reflecte, em consequência, uma aplicação errada da lei que poderia dar lugar a violação do direito a um julgamento justo e em conformidade com a lei., consagrado no artigo 72.º da CRA.
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:Negar provimento.
Custas pela Recorrente (artigo 15.º da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 07 de Dezembro de 2016.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Rui Constantino da Cruz Ferreira (Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr.ª Luzia Bebiana de Almeida Sebastião
Dr.ª Maria da Imaculada L. C. Melo
Dr. Onofre Martins dos Santos (Relator)
Dr. Raúl Carlos Vasques Araújo
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr.ª Teresinha Lopes