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ACÓRDÃO N.º 418/2017

 

PROCESSO N.º 515-D/2016

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional: 

I – RELATÓRIO 

Manuel Chivonde Baptista Nito Alves, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 14.a Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, que o julgou pelo crime de injúria praticado contra magistrados e o condenou na pena de seis (6) meses de prisão efectiva e no pagamento de taxa de justiça, no valor de AKZ 50.000,00 (cinquenta mil kwanzas).

O recurso interposto do prolatado Acórdão, a fls. 17, foi indeferido, a fls. 4, por despacho do Juiz “a quo”. Por isso, o Recorrente reclamou junto do Tribunal Constitucional, cujo Juiz Conselheiro Presidente revogou o despacho reclamado, com fundamento de que “o Acórdão em questão é uma sentença”, que admite o recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 49.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC).

Nas alegações apresentadas, o Recorrente invoca, em síntese, o seguinte:

  1. Durante a audiência em que estava a ser julgado por crime de mudança ilegal de nome, no Processo n.º 148/15-A, o seu pai foi chamado a depor contra si, tendo este recusado a fazê-lo e, por conseguinte, o Juiz proferiu ameaças contra ele.
  2. A defesa protestou, alegando que o pai do Recorrente estava protegido pelo artigo 216.º do Código de Processo Penal (CPP) e, ainda que estivesse a encobrir o seu filho, não poderia ser responsabilizado por este crime, nos termos do único do artigo 23.º do Código Penal (CP).
  3. Contudo, o Juiz forçou o pai do Recorrente a depor, sob pena de ser preso por desobediência ao Tribunal Provincial de Luanda. Diante da atitude do Juiz da causa, o Réu reagiu, insurgindo-se alegadamente com “animus iniuriandi e ofendendi” contra os magistrados.
  4. O Juiz, por sua vez, ordenou ao Ministério Público que levantasse autos de notícia e o Arguido foi julgado sumariamente e condenado pela prática do crime de injúria contra as autoridades públicas, previsto e punível nos termos do artigo 181.odo CP.
  5. A defesa pediu que os depoimentos fossem reduzidos a escrito, declarando que não prescindia de recurso. Porém, o Juiz de direito evocou o 3.º do artigo 411.º do CPP, para alegar que o tribunal era colectivo e, por este facto, os depoimentos não seriam reduzidos a escrito, excluindo-se, consequentemente, o direito de o Recorrente interpor recurso da decisão condenatória.
  6. O Recorrente alegou que a norma do 3.º do artigo 411.º do CPP determina que “só haverá recurso da decisão final, nos termos gerais de direito, e não se escreverão os depoimentos se o julgamento for efectuado por tribunal colectivo”.
  7. A pena aplicada de seis (6) meses de prisão demonstra que o processo era de polícia correcional e, nesse caso, o tribunal é singular e não colectivo, como prevê o artigo 45.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro – Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum.
  8. A pena aplicada, por não ser superior a seis (6) meses de prisão, deveria ser substituída por multa correspondente, à luz do disposto no artigo 86.º do CP. No entanto, o Juiz condenou o Réu na pena de prisão efectiva.
  9. Se o Arguido cometeu o crime de injúria contra o Juiz que o julgou, este, por sua vez, não poderia ser imparcial, pois, por ter sido o ofendido a julgar, existe violação do princípio da imparcialidade prescrito no artigo 14.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro e no artigo 175.º da Constituição da República de Angola (CRA).
  10. A norma do artigo 411.º limita o direito fundamental ao recurso, consagrado pelo n.º 1 do artigo 67.º da CRA, ao impedir que os depoimentos sejam reduzidos a escrito.
  11. O Tribunal “a quo”, ao negar a aplicação do artigo 86.º do CP, a favor do ora Réu, substituindo a pena de prisão efectiva por multa correspondente, violou a Constituição.
  12. Ao aplicar o artigo 411.º do CPP, o Tribunal “a quo” violou a Constituição, pois, esta norma deve ser declarada inconstitucional, por limitar o direito ao recurso assegurado constitucionalmente pelo artigo 67.º.
  13. A norma do artigo 411.º deve ainda ser declarada inconstitucional porque não garante ao Juiz o respeito pelo princípio da imparcialidade, uma vez que permite que o ofendido seja ao mesmo tempo o julgador.

Em termos conclusivos, o Recorrente requer a alteração da decisão judicial recorrida e a declaração de inconstitucionalidade da norma do § 2.º do artigo 411.º do CPP.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II – COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL 

“Podem ser objecto de recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”, nos termos da alínea a) do artigo 49.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.

O presente recurso foi interposto de sentença condenatória que já não admite recurso ordinário comum, pelo que é o Tribunal Constitucional competente para julgar o processo, nos termos da alínea m) do artigo 16.o da Lei n.o 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), com a redacção dada pelo artigo 2.o da Lei n.o 24/10, de 3 de Dezembro. 

III – LEGITIMIDADE 

O Recorrente é parte no Processo n.º 0002/16-A, que correu os seus trâmites na 14.a Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, de modo subsidiário, ao caso em análise, por previsão do artigo 2.º da referida LPC.

Assim sendo, o Recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.

IV - OBJECTO DO RECURSO 

O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é a sentença proferida no Processo n.º 0002/16-A, da 14.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, que condenou o Recorrente pela prática do crime de injúria contra autoridade pública (magistrados), previsto e punível nos termos do artigo 181.o do CPC.

V – APRECIANDO 

O Recorrente invoca, nas suas alegações, que a 14.a Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda limitou os seus direitos, liberdades e garantias fundamentais em virtude de:

  1. A norma do artigo do 411.o CPP, ao impedir o recurso, limitar o seu direito de recorrer, previsto pela CRA;
  2. A norma do artigo do 411.o CPP não garantir a imparcialidade do Juiz, por permitir que este, como ofendido, julgue o ofensor;
  3. A não conversão da pena em multa violar a Constituição.

As questões controvertidas em apreço exigem a apreciação de eventuais violações de pressupostos jurídico-constitucionais praticadas pelo Tribunal Provincial de Luanda, que condenou o Recorrente na pena de seis (6) meses de prisão efectiva, não cabendo, no entanto, a este Tribunal Constitucional, julgar o mérito dos factos que ocorreram na audiência de discussão e julgamento sumário.

Para o Tribunal Constitucional, os três pontos supra enumerados representam as principais questões sobre os quais incidirá a sua análise, para aferir da existência ou não de violação de direitos, liberdades e garantias fundamentais, a saber:

I-Do princípio do direito ao recurso 

Analisando este primeiro ponto, o Tribunal Constitucional constata que o Recorrente, nas conclusões das alegações apresentadas a fls. 43-46, dos autos, releva duas questões, tais como: primeira, o “tribunal – a quo –, ao aplicar o artigo 411.o do CPP, violou a Constituição, pois esta norma deve ser declarada inconstitucional, por limitar o direito ao recurso garantido pela Constituição, no seu artigo 67.o”; e, segunda, “a norma do artigo 411.o do CPP deve ainda ser declarada inconstitucional por violar o princípio da imparcialidade, ao permitir que o Juiz ofendido seja ao mesmo tempo o julgador”. 

Verifica ainda este Tribunal Constitucional que o artigo 411.o do CPP contém quatro (4) parágrafos e que o Recorrente, na causa de pedir, a fls.45, não se refere, em especial, a nenhum parágrafo do dispositivo normativo, para que fosse possível identificar qual deles, alegadamente, terá violado os princípios do direito ao recurso e à imparcialidade. No entanto, o Recorrente, no pedido final vertido nas suas alegações, requereu a declaração de inconstitucionalidade do § 2.º do artigo 411.o do CPP.

Ora, esta norma está associada à questão de imparcialidade, por atribuir competência para julgar a um tribunal perante o qual um réu tenha cometido crime durante a audiência de discussão e julgamento. Mas é o § 3.º do referido artigo 411.o do CPP que põe em causa o direito do Recorrente a interpor recurso, por prever que, diante do tribunal colectivo, os depoimentos não são reduzidos a escrito, o que serviu de fundamento para o Juiz da causa indeferir o requerimento apresentado pelo mandatário do então Arguido, de não prescindir do direito ao recurso.

Neste sentido, assiste razão ao Recorrente em ver apreciados os parágrafos 2.o e 3.o do artigo 411.o do CPP, por a sua aplicação, no entendimento do Recorrente ter violado os seus direitos fundamentais ao recurso e a um julgamento justo e imparcial, previstos e protegidos pela CRA.

Embora a sindicância da constitucionalidade de normas, em processos de fiscalização concreta, não seja o objecto imediato do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional deve apreciar a sua conformidade à Constituição, quando, como no presente caso, elas constituem fundamento da inconstitucionalidade da decisão recorrida.

O Recorrente alega, no seu requerimento de interposição de recurso, que o tribunal recorrido limitou o seu direito de recorrer, por o não ter admitido quer no decurso da audiência de discussão e julgamento quer após a sua condenação.

Desta feita, é entendimento deste Tribunal Constitucional que o Juiz da causa, ao indeferir o recurso interposto, a fls. 20, com fundamento no § 3.º do artigo 411.o do CPP, restringiu o direito do Recorrente a interpor recurso. Assim, o Tribunal “a quo” não observou o disposto nos n.os 1 e 6 do artigo 67.o da CRA, que estabelecem o direito ao recurso e que “qualquer pessoa condenada tem o direito de interpor recurso ordinário ou extraordinário no tribunal competente da decisão contra si proferida em matéria penal, nos termos da lei”, porque aplicou aquela norma adjectiva da lei processual, em detrimento do imperativo constitucional.

Ora, a norma do § 3.º do artigo 411.o do CPP tem mais de 80 anos e encontra-se no Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto n.o 16489, de 15 de Fevereiro de 1929. Pelo acima dito, é evidente o seu desajustamento com a Constituição. Por assim ser e apesar de ser direito ainda vigente, os Tribunais têm o dever constitucional de afastar a sua aplicação, pois a CRA obriga a que se respeite a força jurídica dos direitos fundamentais, primando pela sua aplicação imediata (n.º 1 do artigo 28.º da CRA) e os Tribunais são o garante da observância da Constituição (n.º 1 do artigo 177.º da CRA).

Conforme jurisprudência firmada neste Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 405/2016), o “condicionamento da garantia constitucional do direito ao recurso é

inconstitucional, por restringir a universalidade do direito em causa e por limitar a sua eficácia e abrangência, muito para além da necessidade, da proporcionalidade e razoabilidade, estabelecidas imperativamente no artigo 57.o da Constituição”.

Neste sentido, sendo o recurso um direito jus-constitucionalmente protegido (n.º 6 do artigo 67.º da CRA) e imediatamente aplicável (n.º 1 do artigo 28.o da CRA), cabia ao Juiz da causa o dever de afastar a aplicação da norma do § 3.º do artigo 411.o do CPP, visando a salvaguarda dos princípios constitucionais da tutela jurisdicional efectiva e da protecção do recurso.

No seguimento disso, o Tribunal Constitucional entende que a decisão fundada no § 3.º do artigo 411.o do CPP traduz-se numa inconstitucionalidade material. 

II- Do princípio da imparcialidade dos Tribunais 

Alega ainda o Recorrente que o Tribunal Colectivo violou o seu direito a julgamento imparcial, uma vez que foram os mesmos magistrados ofendidos que o julgaram.

Ora, é consabido que, “no exercício da função jurisdicional, os Tribunais são independentes e imparciais, estando apenas sujeitos à Constituição e à lei”. Deste fundamento decorre o princípio constitucional da imparcialidade, previsto no artigo 175.o da CRA, que visa assegurar a todos os cidadãos o direito a julgamento justo e conforme a lei, nos termos do artigo 72.o da CRA.   

Na sequência desta constatação, não é menos juridicamente relevante considerar que a garantia do princípio da imparcialidade vê-se reforçado pelos diplomas internacionais de defesa dos direitos fundamentais, de que são exemplos a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (CADHP), acolhidos pela Constituição angolana, no n.o 2 do artigo 26.º, conjugado com o artigo 13.o da CRA, por a DUDH, no seu artigo 10.o, assegurar que todos têm direito “a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial...”, e, por sua vez, a CADHP, na sua alínea d) do artigo 7.o, prever o direito das pessoas serem julgadas somente “por um tribunal imparcial”.

Entende o Tribunal Constitucional que, em obediência ao referido princípio constitucional da imparcialidade dos Tribunais, os Juízes ofendidos, num caso concreto, não podem ser os julgadores do respectivo processo. Não se pode ser juiz em causa própria.

Assim, considera o Tribunal Constitucional que, no caso concreto, é inconstitucional a aplicação do parágrafo 2.º do artigo 411.º do CPP, pelo que a sentença recorrida é inconstitucional por ter sido proferida por Tribunal constitucionalmente impedido. 

III- Do princípio da aplicação da lei penal menos restritiva 

Nas alegações, o Recorrente também se queixa do facto de o Tribunal Colectivo não ter convertido a pena de prisão em multa, socorrendo-se, para o efeito, do artigo 86.o do CP.

O Recorrente terá, alegadamente, praticado o crime de injúria contra autoridades públicas e, nos termos da lei, por o acto criminoso não ter sido publicitado, a pena que lhe foi aplicada devia exceder os seis (6) meses de prisão, conforme estabelece a parte final do artigo 181.o do CP. No entanto, o Tribunal recorrido proferiu um Acórdão cuja pena não ultrapassa os seis (6) meses de prisão efectiva.

Ora, o artigo 86.o do CP prevê que, se a pena de prisão aplicada não for superior a seis (6) meses,“poderá ser sempre substituída por multa correspondente”.

Na verdade, essa disposição normativa é facultativa, na medida em que, diante de uma sanção igual ou inferior a seis (6) meses de prisão, não obriga a conversão dessa em multa, admitindo tão-somente a possibilidade da sua substituição.

Contudo, o poder de substituição de penas é sustentado pelo princípio da legalidade do direito penal angolano, vertido no artigo 85.o do CP, que autoriza o magistrado a modificar as medidas, desde que essa alteração não seja contrária à lei.

Uma vez que o artigo 86.º do CP permite sempre a substituição da prisão por multa, é entendimento deste Tribunal que, nesses casos, a sentença deverá sempre fundamentar as razões porque se exerceu ou recusou exercer tal faculdade. No caso presente, o Acórdão recorrido nada diz nem fundamenta a razão dessa recusa, o que, nos termos da garantia constitucional do processo justo e conforme a lei, prevista no artigo 72.º da CRA, segundo a qual o Juiz deve fundamentar as suas decisões, representa uma desconformidade à Constituição e à própria lei (artigo 158.º CPC e do artigo 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro - Lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum).

DECIDINDO

Nestes termos, tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em:  

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho – LPC.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 24 de Janeiro de 2017.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS 

Dr. Rui Constantino da Cruz Ferreira (Presidente)

Dr. Américo Maria de Morais Garcia

Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa

Dr. Carlos Magalhães (Relator)

Dra. Guilhermina Prata

Dra. Luzia Bebiana de Almeida Sebastião

Dr. Simão de Sousa Victor­­­­­

Dra. Teresinha Lopes