ACÓRDÃO N.º 422/2017
PROCESSO N.º 542-C/2017
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
- Matilde da Conceição Camota Alfredo e Laurinda Micaela Ngueve Strongway, devidamente identificadas nos autos, vieram interpor Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade - Habeas Corpus contra o Acórdão de Habeas Corpus nº 736, datado de 12 de Janeiro de 2017, que negou provimento ao pedido de habeas corpus que interpuseram na sequência da prisão contra elas decretada - inicialmente pela prática de um crime de peculato (conforme classificação do Representante do Ministério Público) e, posteriormente, pela prática dos crimes de associação de malfeitores, fraude fiscal e especulação (conforme classificação do Juiz de turno) - no âmbito do Proc. n.º 3282/16 SIC - Huambo.
- Os factos em que assenta o presente processo são, em síntese, os seguintes:
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- As Recorrentes - ambas funcionárias da Administração Geral Tributária, no Huambo, e sócias da empresa MA e MS, Lda - foram detidas no dia 03 de Novembro de 2016 indiciadas pelo crime de peculato;
- Após apresentarem a sua empresa ao Hospital Geral do Huambo (HGH), este apresentou-lhes uma "lista de necessidades," orçada em pouco mais de Akz. 40 milhões;
- Em resposta, a empresa das Recorrentes apresentou uma factura proforma ao HGH, tendo este transferido, em 29 de Agosto de 2016, para a empresa quinze milhões de kwanzas, para o fornecimento de diversos bens de que o hospital necessitava;
- Devido às dificuldades de movimentação das contas bancárias, as Recorrentes transferiram alguns valores para as suas contas pessoais e forneceram ao HGH a maior parte dos bens solicitados (orçados em cerca de 11 milhões de kwanzas), tendo-os adquirido no mercado nacional, em Luanda e no Huambo, acrescentando aos respectivos custos a margem de comercialização de 25% prevista na lei;
- Tendo sido detidas a 03 de Novembro de 2016, o processo só foi remetido a tribunal, para fiscalização, a 15 desse mês, tendo o Juiz de Turno, a 23 de Novembro, concluído pela (i) inexistência do crime de peculato, (ii) existência de fortes indícios da prática dos crimes de associação de malfeitores, fraude fiscal qualificada e/ou especulação, mediante repristinação, e (iii) necessidade de o SIC realizar várias outras diligências;
- Aparentemente, ouvida a direcção do HGH, esta declarou ter o contrato sido praticamente cumprido pelas Recorrentes;
- As Recorrentes encontram-se detidas há mais de 5 (cinco) meses, sem que se tenha conhecimento da prorrogação do respectivo prazo de detenção.
- As Recorrentes acrescentaram, ainda, que:
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- foram detidas no dia 03 de Novembro de 2016, em resultado de um mandado de captura ordenado pelo PGR junto do SIC/Huambo, tendo como fundamento o alegado cometimento do crime de peculato, estando internadas na Unidade Penitenciária do Cambiote; e
- foram detidas sem que houvesse processo contra elas, não havendo, no momento da detenção, qualquer processo físico, número de processo, nem diligências investigativas feitas.
- Em face dessas ilegalidades, recorreram tempestivamente para o Juiz Presidente do Tribunal Provincial do Huambo (TPH), que despachou prontamente para o Juiz de Turno.
Este, mediante despacho, afastou o crime de peculato, por não estarem reunidos os respectivos pressupostos, mas - substituindo-se ao titular da acção penal em fase de instrução preparatória e sem qualquer fundamento - convolou aquele crime para outros, ordenando novas diligências e mantendo a situação de prisão preventiva das Recorrentes.
- Por isso, as Recorrentes intentaram um recurso para o Tribunal Supremo, alegando o seguinte:
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- a detenção só poderia, legalmente, ser efectuada nos termos e para os efeitos das alíneas a), b), c) e d) do número 1 do artigo 4.º da Lei nº 25/15, de 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal;
- a detenção e ordem de prisão preventiva praticada pelo Magistrado do Ministério Público, não estava assente em nenhum despacho fundamentado, como o exige o número 2 da referida Lei nº 25/15;
- não se verificavam nenhumas das situações estabelecidas no nº 1 do artigo 19º da referida Lei nº 25/15, que constituem condição para a aplicação de qualquer medida de coacção, com excepção da de termo de identidade e residência;
- o próprio Juiz de Turno concluiu que não se verificavam as circunstâncias alegadas pelo Ministério Público, devendo, em consequência, ter revogado a medida de prisão preventiva, o que não fez;
- têm, nos termos do artigo 36º da Constituição da República de Angola (CRA), direito à liberdade física e, consequentemente, nos termos do nº 1 do artigo 68º da CRA e dos artigos 315º a 325º do Código de Processo Penal, direito a usar esta providência de habeas corpus para pôr cobro a detenções ilícitas.
- Na sua decisão, o Tribunal Supremo entendeu que a providência de habeas corpus deveria ser indeferida, por ter entendido que:
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- a prisão das requerentes foi efectuada com a observação dos pressupostos do parágrafo único do artigo 315º do Código Penal;
- foi ordenada pelo magistrado do Mº Pº, entidade investida de competência legal para o efeito;
- por factos puníveis com pena superior a 3 anos de prisão maior; e
- foi mantida pelo Juiz de Turno.
- As Recorrentes entendem ter havido, por parte do Venerando Tribunal Supremo, violação dos direitos, princípios, liberdades e garantias constitucionais, designadamente:
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- do princípio do processo justo e equitativo;
- do princípio da presunção da inocência;
- dos princípios da legalidade e da culpa, na medida em que não existem factos incriminatórios relativamente às Recorrentes;
- do direito à liberdade e do direito à liberdade de ir, vir e ficar;
- do princípio da igualdade;
- do princípio do processo célere e justo e
- violação do nº 1 do artigo 66.º, do artigo 68.º e do nº 1 do artigo 28º, todos da CRA,
e solicitando que sejam restituídas à liberdade.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional tem competência para conhecer e julgar os recursos interpostos das sentenças que violem princípios, direitos fundamentais, garantias e liberdades dos cidadãos, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), com a alteração resultante da Lei nº 25/10, de 3 de Dezembro, faculdade igualmente estabelecida na alínea m) do artigo 16º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, LOTC, com a alteração que resulta da Lei n º 24/10, de 3 de Dezembro. Tem, pois, competência para conhecer o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
As Recorrentes têm legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, ao abrigo do qual “... podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional ... as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
Constitui objecto do presente recurso a apreciação da constitucionalidade do Acórdão proferido no processo de Habeas Corpus, datado de 12 de Janeiro de 2017 e proferido pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Venerando Tribunal Supremo, que negou provimento ao pedido de habeas corpus, por alegada falta de fundamento.
V. APRECIANDO
Sem prejuízo do facto de - durante a fase de apreciação deste processo no Tribunal Constitucional - ter chegado ao conhecimento deste Tribunal um novo Acórdão, agora no processo nº 034/17, datado de 23 de Março último, da 2ª Secção da Câmara Criminal do Venerando Tribunal Supremo que "revoga o despacho recorrido e substitui a medida de prisão preventiva aplicada pelo Magistrado do Mº Pº por Termo de Identidade e Residência (...), devendo as recorrentes ser restituídas à liberdade provisória", parece importante a este Tribunal salientar alguns erros judiciários constatados no processo:
- Iniciou-se sem uma denúncia ou participação de quem quer que seja e não apresenta um prejudicado, criminalmente lesado, a justificar a iniciativa investigatória do Ministério Público;
- No próprio dia da prisão das Requerentes, foram abertos, no Serviço de Investigação Criminal (SIC), os autos a que coube o n.º 3282/2016 SIC – Huambo, tendo, assim, aparentemente, as Recorrentes sido presas para depois investigar;
- O Juiz de Turno, não sendo embora o titular da acção penal na fase da instrução preparatória, mediante despacho não fundamentado, afasta o crime de peculato, por não estarem reunidos os pressupostos daquele tipo de crime, mantém a detenção das Requerentes, convolando o peculato para três crimes bem diversos pp no Código Penal (CP) - associação de malfeitores, fraude fiscal e especulação;
- O representante do Ministério Público junto do Serviço de Investigação Criminal no Huambo, "ao arrepio da lei" não se pronunciou no prazo de seis dias, mesmo depois de notificado, sobre a providência de Habeas Corpus; o próprio Juiz Presidente do Tribunal Provincial do Huambo (TPH) confirma que tal atitude está a tornar-se habitual por parte do Ministério Público junto do SIC - Huambo, por razões subjectivas...(cfr. Acórdão do Venerando Tribunal Supremo, pág. 3).
- Face a esse silêncio, o Venerando Tribunal Supremo, chama à colação, no Acórdão recorrido, "...o requerimento e o despacho do Juiz de Turno... em suprimento da falta de resposta da entidade responsável pela prisão... por alegado perigo de perturbação da instrução do processo...";
A 3ª Secção da Câmara Criminal do Venerando Tribunal Supremo profere o Acórdão recorrido, em 12 de Janeiro de 2017, que nega provimento ao pedido de habeas corpus, por alegada falta de fundamento;
Pouco mais de 2 meses depois, em 23 de Março de 2017, a 2ª Secção da Câmara Criminal do Venerando Tribunal Supremo profere novo Acórdão sobre o mesmo assunto que:
- refere a existência de uma denúncia contra o Director do Hospital Geral do Huambo - HGB;
- critica a actuação do Juiz de Turno, que terá ultrapassado a sua competência, com base, inclusive, no visto do Ministério Público; e
- ordena a restituição das Recorrentes à liberdade provisória e a substituição da prisão preventiva por termo de identidade e residência.
Assim, e apesar da cronologia descrita anteriormente, uma vez que não se verifica já a detenção das Recorrentes, a presente providência perdeu a sua razão de existir, na medida em que já se consumou o que se pretendia alcançar, isto é, a libertação das Recorrentes.
A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, está prevista na alínea e) do artigo 287.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente ao processo constitucional por força do artigo 2.º da Lei nº 3/08, de 17 de Junho, quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não pode manter-se, o que ocorre no presente caso.
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas (artigo 15º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 10 de Maio de 2017.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Rui Constantino da Cruz ferreira (Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Guilhermina Prata
Dra. Luzia Bebiana de Almeida Sebastião
Dra. Maria Imaculada L. C. Melo
Dr. Onofre Martins dos Santos
Dr. Raul Carlos Vasques Araújo
Dra. Teresinha Lopes (Relatora)