ACÓRDÃO N.º442/2017
PROCESSO N.º 549-B/2017
(Processo de Fiscalização Abstracta Sucessiva)
Em nome do povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
O GRUPO PARLAMENTAR DA UNITA veio, nos termos do n.º 1 e da alínea c) do n.º 2 do artigo 230.º da Constituição e do artigo 27.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC) intentar acção de fiscalização abstracta sucessiva, tendo por objecto o artigo 45.º da Lei n.º 2/17, de 23 de Janeiro, Lei Orgânica da Entidade Reguladora da Comunicação Social Angolana, (LOERCA) o que fez com os seguintes fundamentos:
1. O referido artigo 45.º confere à Entidade Reguladora da Comunicação Social Angolana (ERCA) competência e poder para proceder a “averiguações e exames” relativamente a “qualquer entidade em qualquer local onde se exerçam actividades de comunicação social”.
2. O alcance dos conceitos utilizados - “entidade”, “local onde se exerçam actividades no domínio da Comunicação Social” permite a interpretação inconstitucional de a ERCA poder efectuar “buscas e apreensões” em qualquer “domicílio”, bem como “revistas” a qualquer pessoa singular sem necessidade de qualquer mandado judicial.
3. O justo receio da eventual ocorrência destes actos violadores de direitos constitucionais fundamentais, como o da inviolabilidade do domicílio (artigo 33.º da CRA) ou o da inviolabilidade de correspondência e comunicações (artigo 34.º da CRA) decorre do facto de o conceito de “entidade” não ser restrito a pessoas colectivas assim como a expressão “local” não excluir o domicílio de alguém que se dedique a actividades, ainda que caseiras, no âmbito digital, as quais eventualmente poderão, nos termos da Lei n.º 1/17 de 23 de Janeiro, Lei de Imprensa, ser abrangidas no conceito de actividades de comunicação social.
4. Os poderes conferidos à ERCA equivaleriam, assim, a poderes de polícia com carácter judicial, designadamente de busca e revista, interrogatório e apreensão.
5. A ERCA é uma autoridade administrativa independente, não sendo, por isso, um órgão de polícia criminal ou uma autoridade judicial, pelo que não pode, sem contrariar a Constituição, proceder a revistas, buscas e apreensões como o vem permitir o artigo 45.º.
6. A procura da verdade e a realização da justiça não podem ser alcançadas a qualquer preço, seja no processo crime, seja na esfera da comunicação social.
7. Impõe-se ainda lembrar que a procura da verdade a todo o custo foi substituída pela procura da verdade material, com primazia pelo respeito dos direitos fundamentais da pessoa, visto não ser aceitável que se obtenham provas de modo a ofender a sua dignidade, como por exemplo, através da ofensa à sua integridade física ou moral, tortura, coacção, uso de métodos enganosos, sendo também inadmissíveis as provas obtidas através da abusiva intromissão na vida privada e no seu domicílio.
8. O artigo 45.º da LOERCA implica uma violação constitucional com duas faces: por um lado permite-se que uma entidade administrativa se arrogue poderes judiciários e proceda, sem emissão de qualquer mandado, a buscas e apreensões; por outro lado não se exclui a violação da privacidade ou a inviolabilidade da pessoa e do seu domicílio.
9. Finalmente, o artigo 45.º, ao conceder à ERCA poderes simultaneamente de polícia e de autoridade judiciária, viola os direitos fundamentais consagrados na Constituição, pelo que deve ser decretada a sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
Solicitado por despacho do Juiz Conselheiro Presidente de 9 de Março a pronunciar-se, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 29.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, veio o órgão autor da norma dizer o seguinte:
1. As averiguações e exames previstos no artigo 45.º da Lei n.º 2/17, Lei da Entidade Reguladora da Comunicação Social, têm que ser vistos dentro do âmbito de intervenção da ERCA, previsto no artigo 7.º da referida Lei.
2. Nos termos do artigo 7.º da supracitada Lei, “estão sujeitos à intervenção e supervisão da ERCA, todas as pessoas colectivas de direito público e privado, independentemente da forma jurídica que exercem a actividade de comunicação social na República de Angola, designadamente:
a) Os operadores de rádio e de televisão relativamente aos serviços de programas e conteúdos complementares da sua responsabilidade editorial que difundem por qualquer meio, incluindo o electrónico;
b) As editoras de publicações periódicas, independentemente do suporte de distribuição utilizado;
c) As agências noticiosas;
d) As entidades que utilizem meios electrónicos, incluindo on line, para divulgação de conteúdos editoriais”.
3. Não é, por isso, correcto dizer-se que o artigo 45.º permite que a ERCA ou os seus delegados revistem qualquer pessoa, entrem em qualquer domicílio, apreendam documentos ou materiais.
4. É igualmente incorrecto dizer-se que o termo “entidade” utilizado no n.º 1 do artigo 45.º pode envolver entidades físicas ou jurídicas, isto é, pessoas singulares ou colectivas.
5. O termo do artigo 7.º da lei em causa, é claro ao limitar a intervenção da ERCA a “... todas as pessoas colectivas de direito público e privado independentemente da forma jurídica que exerçam a actividade de comunicação social na República de Angola”.
6. O mesmo artigo 7.º vai mais longe e, nas suas alíneas, faz uma enumeração taxativa das pessoas colectivas sujeitas à intervenção da ERCA.
7. Igualmente o termo “local” não pode ser visto como um qualquer lugar, como pretende o peticionário, devendo ser visto, sempre, nos termos definidos no artigo 7.º.
8. O artigo 45.º não trata de buscas e apreensões, mas sim de exames ou averiguações, actos que têm natureza administrativa e não natureza criminal, e que resultam das atribuições e funções de regulação e supervisão que são conferidas à ERCA, com vista à realização dos objectivos prescritos no artigo 3.º da Lei n.º 2/17.
9. Dizer-se que a expressão “... facilitar o acesso a quaisquer meios considerados necessários para o desempenho das actividades...”, utilizada no n.º 2 do artigo 45.º, permite a apreensão de quaisquer documentos ou materiais que se reputem necessários para as suas averiguações e que, por isso, se está a conceder à ERCA um poder de apreensão, é uma interpretação forçada e que fere uma regra básica de interpretação da lei, prevista no n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil, segundo a qual “não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.
10. Consequentemente, não se descortina na norma do artigo 45.º em causa, qualquer poder de polícia, conforme alegado pelo peticionário, apesar dos poderes de que está a ERCA investida, nos termos e limites do artigo 34.º da Lei n.º 2/17.
11. Caso se pretendesse conferir à ERCA poderes judiciais o n.º 3 do artigo 45.º não a sujeitaria a requerer ao tribunal autorização para o prosseguimento das suas diligências, no caso de haver suspeita sobre a ausência de fundamentos para a invocação de sigilo comercial.
12. Se o peticionário não se cingisse à norma que quer ver declarada inconstitucional e tivesse tido em conta a unidade do diploma e do sistema jurídico conforme recomenda o n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil, logo se teria apercebido de que, por força do artigo 6.º da Lei n.º 2/17, que acolhe o princípio da especialidade da capacidade jurídica das pessoas colectivas, a capacidade jurídica da ERCA não pode ser estendida para a prática de actos judiciais.
13. O peticionário transformou a expressão “averiguações e exames, referidas no n.º 1 do artigo 45.º “em “revistas, buscas e apreensões”, expressão que, por sinal, tem sentido e alcance totalmente diferente daquela, por um lado, e tornou extensivo âmbito de intervenção da ERCA a todas as pessoas colectivas e singulares, por outro.
14. Conclui a autora da norma que não se pode dizer que esta seja violadora do princípio constitucional da inviolabilidade do domicílio, porquanto a ERCA não tem a sua acção estendida às pessoas singulares e, em relação à pessoas colectivas que caiem no seu âmbito de acção a ERCA deve actuar sempre dentro dos limites da Constituição e da lei.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal é competente nos termos do n.º 1 do artigo 230.º da Constituição, da alínea a) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, e do artigo 26.º da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.
III. LEGITIMIDADE
O Requerente tem legitimidade nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 230.º da Constituição, artigo 18.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional e alínea c) do artigo 27.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso é o artigo 45.º da Lei n.º 2/17, de 23 de Janeiro, Lei Orgânica da Entidade Reguladora da Comunicação Social Angolana, para apreciação da sua eventual inconformidade com os artigos 33.º (inviolabilidade do domicílio) e 34.º (inviolabilidade de correspondência e das comunicações), ou com qualquer outro princípio, direito, liberdade ou garantia previstos na Constituição.
V. APRECIANDO
Dispõe o artigo 45.º da LOERCA:
“1. A ERCA pode, no quadro da prossecução das suas atribuições e funções de regulação e supervisão, proceder a averiguações e exames em qualquer entidade ou local onde se exerçam actividades no domínio da Comunicação Social”.
“2. Todas as entidades públicas ou privadas devem facilitar o acesso a quaisquer meios considerados necessários para o desempenho das actividades previstas no número anterior, fornecendo as informações e os documentos solicitados no prazo máximo de trinta dias, sem prejuízo da salvaguarda do sigilo profissional e do sigilo comercial”.
“3. No caso de haver suspeita de ausência de fundamento para invocação do sigilo profissional, a ERCA deve requerer ao tribunal que autorize o prosseguimento das diligências pretendidas”.
“4. A ERCA pode divulgar a identidade das empresas ou órgãos de comunicação social sujeitos a processo de investigação, a matéria a investigar ou as informações obtidas sempre que isso seja relevante para a regulação do sector”.
“5. A ERCA pode credenciar pessoas especialmente qualificadas e habilitadas para efectuarem as diligências previstas neste artigo, as quais devem respeitar o princípio do sigilo profissional e o sigilo comercial”.
O pedido de fiscalização sucessiva sobre o artigo 45.º em causa, tem como fundamento a alegada violação dos preceitos constitucionais que consagram a inviolabilidade do domicílio e o sigilo da correspondência e comunicações, estabelecidos nos artigos 33.º e 34.º da Constituição, partindo da abrangência genérica dos conceitos “entidade” e “local” referidos no seu n.º 1 que, não distinguindo entre pessoas colectivase singulares, permitem a interpretação de, quanto às pessoas singulares, a ERCA, valendo-se da sua competência para proceder “investigações e exames”, poder efectuar “buscas e apreensões” em qualquer “domicílio”, bem como “revistas” a qualquer cidadão, sem necessidade de mandado judicial.
Como veremos, o pedido do Grupo Parlamentar da UNITA assenta numa interpretação e em dois equívocos:
A interpretação é a de que a expressão genérica de “entidade”, sem qualquer restrição, tal como utilizada no artigo 45.º da LOERCA não pode deixar de se aplicar também a pessoas singulares.
O primeiro equívoco é o de que “averiguações e exames” só implicariam uso de poderes de intromissão abusiva relativamente à liberdade das pessoas quando essas actividades sejamexercidas face a pessoas singulares.
O outro equívoco, decorrente do primeiro,é o da equiparação de “averiguações e exames” a “buscas, revistas e apreensões”.
A Assembleia Nacional, pronunciando-se sobre o pedido refuta aquela interpretação, “porquanto a ERCA não tem a sua acção estendida às pessoas singulares” não desfazendo, assim, os equívocos incorridos pelo Requerente, não obstante referir que “em relação à pessoas colectivas que caiem no seu âmbito de acção a ERCA deve actuar sempre dentro dos limites da Constituição e da lei” e que “revistas, buscas e apreensões”têm sentido e alcance totalmente diferente daquelas diligências meramente administrativas.
Claramente se infere do pronunciamento da autora da norma que, mesmo em relação às pessoas colectivas sujeitas ao poder de regulação e supervisão da Entidade Reguladora para a Comunicação Social Angolana, as “averiguações e exames” previstos no artigo 45.º não são expressões equivalentes de buscas, revistas e apreensões, tendo requisitos e regimes legais distintos.
Neste contexto deverá o Tribunal Constitucional apreciar duas questões essenciais:
1) A primeira questão tem a ver precisamente com a natureza dos poderes atribuídos à ERCA, ou seja, a questão de saber se aqueles poderes são equiparáveis a poderes policiais ou judiciais, susceptíveis de ser considerados inconstitucionais, quer se trate de pessoas singulares ou colectivas.
2) A segunda questão é a que se refere à natureza das entidades sujeitas ao poder de regulação ou supervisão da Entidade Reguladora da Comunicação Social.
Como acima transcrito, a ERCA pode, no quadro da prossecução das suas atribuições e funções de regulação e supervisão, proceder a averiguações e exames em qualquer entidade ou local onde se exerçam actividades no domínio da comunicação social. Não resulta desta norma que ela atribua à ERCA competências exclusivas dos Tribunais e do Ministério Público. Desde logo, importa referir que a ERCA, em estrita obediência ao princípio da especialidade consagrado no seu artigo 6.º, tem como principais competências, de entre outras, assegurar o livre exercício do direito à informação e à liberdade de imprensa; velar pela não concentração da titularidade das entidades que prosseguem actividades de comunicação social com vista à salvaguarda do pluralismo e da diversidade, sem prejuízo das competências expressamente atribuídas por lei à Autoridade da Concorrência; zelar pela independência das entidades que prosseguem actividades de comunicação social perante os poderes político e económico; garantir o respeito pelos direitos, liberdades e garantias; garantir a efectiva expressão e o confronto das diversas correntes de opinião, em respeito pelo princípio do pluralismo e pela linha editorial de cada órgão de comunicação social; assegurar o cumprimento das normas reguladoras das actividades de comunicação social; assegurar o cumprimento dos códigos de ética e deontologia; verificar se os jornalistas possuem carteira profissional; que cumprem os horários e tempos de publicidade (artigo 8.º da LOERCA).
Em segundo lugar, deve constatar-se que, não obstante aquelas atribuições, nada no artigo 45.º permite concluir que os poderes conferidos à ERCA tenham alguma equivalência a poderes de polícia ou a quaisquer poderes com carácter judicial. Pelo contrário, decorre do n.º 3 do mesmo artigo 45.º, que a entidade reguladora é obrigada a requerer autorização aos tribunais para prosseguir as diligências pretendidas quando seja invocado o sigilo comercial por alguma das entidades sob investigação.
Revela bem a natureza administrativa das referidas atribuições, a referida necessidade da entidade investigadora recorrer aos tribunais com vista a obter autorização para prosseguir averiguações e exames quando confrontada com a invocação do segredo profissional ou comercial pelos investigados.
As averiguações e exames previstas no artigo 45.º são, pois, diligências administrativas que as entidades investigadas devem facilitar, sem prejuízo da salvaguarda do sigilo profissional e do sigilo comercial que sempre poderão invocar (n.º 2 do artigo 45.º da LOERCA) obrigando a Entidade Reguladora a requerer ao tribunal o prosseguimento das diligências pretendidas, quando suspeite da ausência de fundamento para a invocação do sigilo.
Nada têm a ver estas modalidades, destinadas e aptas à prossecução útil da regulação e supervisão das actividades de comunicação social, com as revistas, buscas e apreensõesque são meios de obtenção de prova no âmbito de um processo criminal. A estes meios de prova se refere a Lei n.º 2/14, de 10 de Fevereiro de 2014, Lei Reguladora das Revistas, Buscas e Apreensões, aplicável sempre que haja suspeita com fundamento bastante, para crer que alguém oculta na sua pessoa objectos relacionados com a prática de um crime ou possam servir para prova, ou que uma pessoa deva ser presa ou detida nos termos da lei, se encontra em lugar reservado ou não acessível ao público. Nos termos do seu artigo 2.º “Na fase de instrução preparatória, as revistas e as buscas são ordenadas ou autorizadas por despacho do Magistrado do Ministério Público competente, sem prejuízo dos poderes atribuídos pela presente lei e, nas restantes fases ao Juiz que as dirigir.”
Deve, assim, concluir-se que os poderes da ERCA se inserem na actividade normal de quem tem a competência de regular e supervisionar a comunicação social, em conformidade com o disposto na Constituição e na lei (ex vi do art.º 2.º da Lei n.º 2/17, Lei Orgânica da Entidade Reguladora da Comunicação Social) e, consequentemente limitada ao âmbito administrativo.
Apenas em caso de resultar das actividades investigadas qualquer indício criminal, a ERCA poderá desencadear um processo-crime e requerer essas medidas de prova, objecto, aliás, de regulação específica na Lei n.º 2/14 de 10 de Fevereiro.
De registar, ainda, que em termos de direito comparado, a lei portuguesa que criou a Entidade Reguladora da Comunicação - ERC (Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro) extinguindo a Alta Autoridade para a Comunicação Social, tal como em Angola foi extinto o Conselho Nacional para a Comunicação Social, prevê as mesmas “averiguações e exames” bem como adiante as mesmas e exactas limitações de recurso aos tribunais para salvaguarda do segredo profissional ou comercial.
Constatado que no quadro das suas atribuições e funções de regulação e supervisão, a ERCA apenas detém poderes administrativos que não se confundem nem poderão equiparar a poderes policiais ou judiciais que legitimem outros meios de prova determinados por lei específica, importa analisar se existe fundamento para distinguir entre pessoas singulares ou colectivas na aplicação da lei, como receia o Requerente e corresponde à perspectiva da autora da norma.
Na verdade, a autora da norma considera que a LOERCA não é extensiva a pessoas singulares, invocando o artigo 7.º daquele diploma, o qual limita a intervenção da ERCA a “...todas as pessoas colectivas de direito público e privado independentemente da forma jurídica que exerçam a actividade de comunicação social na República de Angola”.
No mesmo sentido, aliás, vai a Lei n.º 1/17, de 23 de Janeiro, Lei da Imprensa, que estabelece os Princípios Gerais Orientadores da Comunicação Social e regula as Formas do Exercício da Liberdade de Imprensa. Entre as definições constantes do seu artigo 2.º figura a de “Comunicação Social” como uma actividade de “comunicação de massas dirigida a um grande público heterogéneo anónimo, a partir de empresas ou órgãos de comunicação social...” (alínea b) do artigo 2.º da Lei n.º 1/17), sendo que a definição de “empresa ou órgão de comunicação social aparece reservada às “entidades públicas ou privadas, cujo objecto social é a produção, transmissão ou retransmissão de informação destinada ao público, através de meios de telecomunicações ou de publicações escritas”.
O próprio artigo 7.º, invocado pela autora da norma e acima transcrito, contém uma enumeração das entidades sujeitas à regulação e supervisão da ERCA, listando designadamente:
Ora, também, relativamente a algumas destas entidades que nada impediria que pudessem ser pessoas colectivas ou singulares, nomeadamente sociedades unipessoais ou comerciantes em nome individual, a Lei de Imprensa, reitera nas suas definições a opção do legislador pela natureza colectiva das entidades ali referidas. Assim, pela alínea g) do artigo 2.º da Lei n.º 1/17, “Agência de Notícias” é a “empresa que elabora e fornece matérias jornalísticas para assinantes ou não...” e pela alínea k) “Operador de Radiodifusão (Sonora e Televisão) ” deve entender-se a “pessoa colectiva legalmente habilitada para o exercício da actividade de radiodifusão sonora ou televisiva”.
Esta Lei de Imprensa distingue ainda, no seu artigo 23.º as “Empresas Jornalísticas” – as que editam publicações periódicas; as “Empresas Noticiosas” – as que têm por objecto principal a recolha, tratamento e difusão de informação em texto, som ou imagens; e as “Empresas Jornalísticas Electrónicas” – as que têm por objecto principal a difusão de conteúdos informativos on-line.
Decorre deste conjunto de legislação que a actividade de comunicação social está reservada, por lei, a pessoas colectivas públicas ou privadas com exclusão das pessoas singulares, que em matéria de comunicação social apenas prevê o exercício da profissão dos jornalistas (artigo 17.º e seguintes da Lei de Imprensa), que é regulado por um Estatuto do Jornalista (Lei n.º 5/17, de 23 de Janeiro) e por um Código de Ética e Deontologia Profissional que define entre outros aspectos quem é jornalista, o regime de incompatibilidades, os direitos e deveres, as condições de emissão, renovação, suspensão e cassação da carteira profissional (artigo 21.º n.º 1, 2 e 3 da Lei de Imprensa). Contudo, a ERCA não tem poderes de regulação nem de supervisão sobre estas entidades singulares.
Não obstante, embora o regime do exercício da comunicação social em geral esteja, por lei, reservado a pessoas colectivas, mediante um processo de habilitação prévia, não pode o Tribunal Constitucional deixar de sublinhar a desigualdade que decorre desta reserva, excluindo as pessoas singulares que, através de qualquer meio de difusão, particularmente o mais acessível, via internet, exerçam uma actividade que é de comunicação social, fora do escopo regulatório e de supervisão em que se traduzem os objectivos da Entidade Reguladora.
Neste contexto, a pessoa singular que execute uma actividade de comunicação social não devidamente formalizada estaria em transgressão e, como tal, sujeita às consequências legais normalmente ligadas ao exercício de actividades que sejam vedadas por lei. Nesse caso, outras autoridades terão competência para intervir mas não já a Entidade Reguladora da Comunicação Social Angolana.
Este regime discriminatório corresponde a uma opção do legislador que, nesse aspecto, e no do direito comparado afasta-se do que dispõe a antes mencionada lei portuguesa a qual determina que estão sujeitas à supervisão e intervenção da entidade reguladora todas as entidades colectivas ou singulares que prossigam actividades de comunicação social.
Este regime inclusivo é, sem dúvida, aquele que mais adequadamente se ajustaria ao princípio da igualdade de tratamento que a Constituição da República de Angola consagra no seu artigo 23.º. Assim sendo, a opção do legislador angolano afigura-se em desconformidade com aquele princípio constitucional.
Ironicamente, o artigo 45.º em causa, tendo sido o único preceito da LOERCA cuja sindicância foi requerida, é precisamente aquele que, pela generalidade dos seus termos, mais corresponde a uma perspectiva de tratamento igualitário e, nessa medida, e por uma razão de pura coerência, um preceito que escapa à censura constitucional. O próprio Requerente assim o interpreta não obstante a inadequação das ilacções que retirou dessa interpretação. Já a perspectiva interpretativa da autora da norma, recorrendo ao contexto legal em que o artigo 45.º se insere, apontaria para uma inconstitucionalidade do preceito ou, no mínimo, para uma sua interpretação não conforme à Constituição.
A orientação decorrente do artigo 11.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, confina, porém, este Tribunal ao conhecimento da inconstitucionalidade de normas cuja apreciação tenha sido requerida. Esta disposição relativa aos poderes de cognição
do Tribunal Constitucional representa, pois, um limite à apreciação de outras disposições que não apenas a indicada pelo Requerente desta acção. Porém, numa interpretação mais lata do artigo 11.º da LPC, seguida na Lei Orgânica do Tribunal Constitucional de Espanha é admissível que a apreciação de inconstitucionalidade de uma norma impugnada seja estendida a outras da mesma lei que estejam com a primeira numa relação de conexão ou consequência.
Estando em causa a verificação do respeito do princípio da igualdade de tratamento pelo artigo 45.º da LOERCA faz igualmente sentido constatar se, relativamente a outras normas da mesma lei, nomeadamente o seu artigo 7.º, directamente conexionado com aquela disposição, trata de modo igual as pessoas colectivas e singulares que exerçam alguma actividade de comunicação social.
Não restam, assim, dúvidas sobre a parcial desconformidade com a Constituição do citado artigo 7.º ao excluir da sua provisão as pessoas singulares.
Não competindo, porém, ao Tribunal Constitucional substituir-se ao legislador no estabelecimento do tratamento igualitário exigido pela Constituição, resta-lhe declarar a inconstitucionalidade parcial, por omissão daquela norma impondo ao legislador a necessidade de suprir essa lacuna, restabelecendo a conformidade da lei com a Constituição.
Em conclusão,
Considera o Tribunal Constitucional relativamente às duas questões de inconstitucionalidade acima identificadas que:
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em:
Sem custas (Código das Custas Judiciais e artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 21 de Junho de 2017.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Rui Constantino da Cruz Ferreira (Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Guilhermina Prata
Dra. Maria da Imaculada L.C.Melo
Dr. Onofre Martins dos Santos (Relator)
Dr. Raul Carlos Vasques Araújo
Dra. Teresinha Lopes