ACÓRDÃO N.º445/2017
PROCESSO N.º 553-B/2017
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade - Habeas Corpus
Em nome do povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Ivanildo Patrício Meireles Sequeira veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão do Venerando Tribunal Supremo que negou provimento ao seu pedido de habeas corpus, com fundamento na não verificação de excesso de prisão preventiva, nos termos do artigo 40.º da Lei nº 25/15, de 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal.
O Recorrente, que foi detido a 14 de Julho de 2016, sob suspeita de cometimento do crime de roubo qualificado (pp. pelo artigo 435.º, n.º 2 do CP), em concurso com o de associação de malfeitores (pp. pelo artigo 263.º do CP) e o de uso e porte ilegal de arma de fogo (pp. pelas disposições conjugadas dos artigos 8.º, 9.º, 123.º e 127.º do Diploma Legislativo n.º 3778, de 22 de Novembro de 1967 e § único do artigo 169.º do CP), interpôs a providência de habeas corpus após quatro meses de detenção, isto é, numa altura em que, como alega, ainda não tinha sido formalmente notificado da acusação, nem de qualquer despacho relativo à prorrogação da prisão preventiva, em conformidade com o número 1, alínea a) e n.º 2 do artigo 40.º da Lei n.º 25/15.
No seu aresto, prolatado a 14 de Fevereiro de 2017, o Venerando Tribunal Supremo considerou que a prisão preventiva do Recorrente se situava dentro dos prazos legais estabelecidos no referido artigo 40.º da Lei n.º 25/15, na medida em que fora prorrogada por mais dois meses e a acusação notificada a 11 de Janeiro de 2017, o que perfazia, à data, cerca de sete meses de detenção.
Com referência ao artigo acima mencionado, o Acórdão posto em crise enuncia os prazos fixados para a prisão preventiva, que deve cessar quando decorridos quatro meses sem que o arguido tenha sido acusado seis meses sem que este tenha sido pronunciado e doze meses sem que haja condenação em primeira instância. Estes prazos podem ser prorrogados por mais dois meses nos factos puníveis com pena superior a oito anos prisão e em função da complexidade do processo.
O Recorrente considera, contrariamente, que a decisão do Venerando Tribunal Supremo julgou mal os factos e aplicou mal o direito, na medida em que não levou em linha de conta os aspectos seguintes:
a) O facto de a prorrogação da prisão preventiva ter ocorrido fora do prazo legal, não ter sido fundamentada, nem notificada ao Recorrente. De notar que o despacho que prorroga a prisão preventiva foi proferido a 16 de Novembro de 2016, dois dias depois de ter findado o prazo de 4 meses para a notificação da acusação ou da prorrogação da prisão preventiva (artigo 40.º, n.º 1 alínea a) e n.º 2);
b) O facto de o Venerando Tribunal Supremo partir do pressuposto de que o Recorrente integra um grupo de marginais, o que configura um juízo de valor antecipado, em clara violação ao princípio da presunção de inocência, consagrado no n.º 2 do artigo 67.º da Constituição da República de Angola, CRA;
c) O facto de, em consequência, terem sido violados direitos e garantias constitucionais atribuídos a todos os cidadãos, independentemente dos crimes pelos quais sejam indiciados.
À luz destas alegações, o Recorrente pede que o Acórdão recorrido seja declarado inconstitucional por violar os artigos 57.º, 64.º, 66.º, 67.º e 68.º da CRA bem como os artigos 40.º e 42.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.
II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
O Tribunal Constitucional é, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, com a alteração resultante da Lei n.º 25/10, de 3 de Dezembro, competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que violem princípios, direitos fundamentais, garantias e liberdades dos cidadãos, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, faculdade igualmente estabelecida na alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, LOTC, com a alteração que resulta da Lei n.º 24/10, de 3 de Dezembro.
A decisão proferida pelo Venerando Tribunal Supremo esgota, deste modo, a cadeia recursória em sede de jurisdição comum, em matéria de habeas corpus.
III. LEGITIMIDADE
A alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, LPC, estabelece que têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade o Ministério Público e as pessoas, que de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.
O Recorrente é o requerente da providência de habeas corpus impetrada junto do Venerando Tribunal Supremo, cujo provimento lhe foi negado. Tem, consequentemente, legitimidade para recorrer.
IV. OBJECTO DO RECURSO
Constitui objecto deste recurso verificar a alegada inconstitucionalidade do Acórdão do Venerando Tribunal Supremo, por violação dos artigos 57.º, 64.º, 66.º, 67.º e 68.º da CRA.
V. APRECIANDO
O habeas corpus, como tem sido reafirmado por este Tribunal, é um remédio constitucional que visa pôr termo a situações de prisão ilegal, assumindo-se, deste modo, como garantia do direito à liberdade também consagrado na Constituição da República de Angola (artigos 36.º e 68.º).
Assim sendo, a privação da liberdade apresenta-se como uma medida de restrição que tem subjacente a necessidade de realização da justiça e de protecção de interesses penalmente tutelados, cuja aplicação deve ser conforme com a Constituição e a lei e limitar-se ao necessário, razoável e proporcional (artigo 57.º da CRA).
No caso sub judice, o Recorrente veio reivindicar a inconstitucionalidade da prorrogação da prisão preventiva, que ocorreu dois dias após o decurso do prazo legal previsto na lei e ao abrigo de um despacho que não fundamenta as razões da prorrogação, sendo que esta decisão não lhe foi comunicada, como alega. No despacho de prorrogação lê-se o seguinte: “Compulsados os autos ordeno que o prazo de prisão preventiva seja elevado para dois meses, nos termos do artigo 40.º, n.º 2 da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro...”
O Acórdão recorrido não teve, porém, em linha de conta os factos acima referidos, o que, provavelmente, terá decorrido da circunstância de o habeas corpus ter sido julgado a 14 de Fevereiro de 2017, ou seja, numa altura em que a acusação já havia sido deduzida, o que teve lugar a 2 de Dezembro de 2016, e comunicada aos arguidos, o que ocorreu no dia 11 de Janeiro de 2017, como se lê no aresto da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Venerando Tribunal Supremo.
Com a providência de habeas corpus o que está em causa é, apenas, atacar a ilegalidade da prisão e assegurar o direito à liberdade e não uma apreciação das circunstâncias e dos factos constitutivos do crime de que o arguido é suspeito de ter praticado, pelo que não cabe no âmbito da decisão sobre o presente pedido a dedução de um juízo de valor sobre elementos indiciadores da culpabilidade do ora Recorrente.
A prisão preventiva, como tem sido reiterado por este Tribunal, é uma medida de coacção de última ratio, de natureza subsidiária, sendo a mais grave das medidas de coacção tipificadas na Lei n.º 25/15. Nos termos dos artigos 18.º e 35.º deste diploma legal, é aplicada quando se mostrarem inadequadas ou insuficientes quaisquer outras das medidas de coacção e existirem fortes indícios da prática de um crime doloso, punível com pena de prisão superior a três anos.
Como tal, a manutenção da prisão preventiva para lá dos rigorosos prazos fixados na lei, torna-a incompatível com o direito à liberdade e à presunção de inocência, desvirtua a sua função cautelar, não punitiva e coloca, igualmente, em causa a concretização dos fins a que se destina o processo penal, que pressupõe a descoberta da verdade material, porém, de modo processualmente válido e admissível e, portanto, com integral respeito dos direitos das pessoas que no processo se vêem envolvidas (Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, por citação no CPP Anotado, 1221 de Manuel S. Santos e Manuel Leal-Henriques).
Entretanto, decorria o julgamento do presente recurso quando o Tribunal Constitucional, na sequência da vista requerida ao Ministério Público, tomou conhecimento que o Recorrente foi julgado e condenado no âmbito do processo n.º 1286/16, que correu trâmites na 5.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda.
Em face desta circunstância, afigura-se inútil um pronunciamento sobre a pretensão requerida pelo Recorrente, em decorrência do previsto na alínea e) do artigo 287.º do Código do Processo Civil, aplicado subsidiariamente ao processo constitucional ex vi do artigo 2.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, LOTC.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 28 de Junho de 2017.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Rui Constantino da Cruz Ferreira
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr. Carlos Magalhães
Dr.ª Guilhermina Prata
Dr.ª Maria da Imaculada L. C. Melo (Relatora)
Dr. Onofre Martins dos Santos
Dr. Raul Carlos Vasques Araújo
Dr. Simão de Sousa Víctor
Dr.ª Teresinha Lopes