ACÓRDÃO N.º448/2017
PROCESSO N.º 466-A/2015
(Aclaração do Acórdão n.º 405/2016)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
O Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo veio pedir a aclaração do Acórdão n.º 405/2016 que declarou inconstitucional o despacho que recaiu sobre a reclamação apresentada por Onovais Manuel José Frederico, na sequência do indeferimento de um pedido de recurso ordinário interposto de uma sentença condenatória, proferida pelo Tribunal Provincial do Namibe.
No pedido de aclaração apresentado ao abrigo do artigo 669.º do Código do Processo Civil (CPC), aplicado subsidiariamente ao processo constitucional por virtude do artigo 2.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), o Venerando Presidente do Tribunal Supremo considera estar patente uma contradição entre a fundamentação e a decisão tomada pelo Tribunal Constitucional, o que, nos termos do artigo 668.º do CPC, configura nulidade da sentença, no caso, do Acórdão n.º 405/2016.
Para sustentar o entendimento acima vertido, ou seja, a alegada contradição entre a fundamentação e a decisão, o Venerando Juiz Presidente do Tribunal Supremo vem arguir o desfasamento entre as normas declaradas inconstitucionais para alicerçar a inconstitucionalidade do despacho de não admissibilidade do recurso e as que fundamentaram esse mesmo despacho.
Diz, em resumo, o Venerando Presidente do Tribunal Supremo que “…se da fundamentação de direito deste Aresto (i.e. Acórdão n.º 405/2016) parece resultar concluírem pela inconstitucionalidade dos artigos 540º do C.P.P. e do artigo 6.º da Lei n.º 20/88, certo é que, na decisão final, acabam por declarar inconstitucional o despacho por mim proferido no âmbito de uma Reclamação apresentada em requerimento, de forma avulsa, como referido a fls. 54 dos autos, onde confirmei a não admissibilidade do recurso, por força do estatuído nos artigos 526.º e 473.º ambos do C.P.P. e artigo 6º da Lei n.º 20/88 de 31 de Dezembro”, Lei sobre o Ajustamento das Leis Processuais Penais e Civis.
O Venerando Juiz Presidente do Tribunal Supremo traz igualmente ao processo e, pela primeira vez, a ratio e as circunstâncias que motivaram a confirmação do despacho de não admissibilidade do recurso impetrado por Onovais Manuel José Frederico.
Nesse sentido refere, em síntese, que:
- A reclamação foi apresentada no Tribunal Supremo em forma avulsa, o que significa que o Reclamante não obedeceu ao que prescreve o artigo 688.º do CPC, aplicável por força do que dispõem os artigos 652.º e 1º, parágrafo único, do Código do Processo Penal, CPP.
- A reclamação foi apresentada fora do prazo previsto no citado artigo 688.º do CPC e não obedeceu aos demais pressupostos enunciados neste artigo, não tendo sido autuada por apenso ao processo principal, nem julgada nos termos do artigo 689.º do CPC.
- O poder de cognição do Presidente do Tribunal Supremo está balizado pelo disposto nos artigos 688.º e 689.º do CPC, sendo que, apesar disso, não podia deixar de reapreciar a questão para verificar se houve ou não alguma irregularidade digna de relevo na actuação do Juiz a quo, o que o fez na veste de Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial e nos termos das disposições combinadas da alínea f) do artigo 32.º e alínea n) do artigo 23.º, ambos da Lei n.º 14/11, de 18 de Março, Lei do Conselho Superior da Magistratura Judicial.
O Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo termina posicionando-se contra a inconstitucionalidade dos artigos 540.º do CPP e 6.º da Lei n.º 20/88 e a consequente inconstitucionalidade do despacho que confirma o indeferimento do pedido de recurso ordinário apresentado por Onovais Frederico, reiterando que, conforme prática legal, só em caso de recurso obrigatório previsto nos artigos 526.º e 473.º do CPP é que deve haver depoimentos escritos. Nos outros casos, só os haverá quando as partes, devidamente representadas, declararem em acta, antes do interrogatório do réu, que não prescindem do recurso, conforme preceitua os artigos 540.º do CPP e 6.º da Lei n.º 20/88.
Refere ainda, no âmbito das suas conclusões, que o acesso ao direito de tutela jurisdicional efectiva é assegurado, no ordenamento jurídico vigente, por lei infraconstitucional, como prescreve o n.º 5 do artigo 29.º da Constituição da República de Angola, CRA, que estabelece prazos para a prática de actos, conferindo, assim, certeza e segurança no iter processual
Em termos de conclusão, refere que os Tribunais Superiores não devem, à margem da Lei, suprir as falhas técnicas dos mandatários das partes, quando não actuam com competência e diligência, pois há mecanismos legais que as partes, querendo, podem lançar mão para responsabilizar os seus mandatários, da mesma forma que existem para responsabilizar os Magistrados.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer do presente pedido de aclaração nos termos do artigo 669.º do CPC, aplicado subsidiariamente ao processo constitucional ex vi do artigo 2.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, (LPC).
III. LEGITIMIDADE
O Acórdão n.º 405/2016 declarou inconstitucional um despacho prolatado pelo Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, pelo que tem legitimidade para suscitar a presente aclaração.
IV. OBJECTO
No presente pedido de aclaração está em causa verificar a alegada contradição entre os fundamentos e a decisão tomada pelo Tribunal Constitucional no âmbito do Acórdão n.º 405/16.
V. APRECIANDO
Estabelece a alínea c) do artigo 668.º do CPC que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, sendo esta a questão a partir da qual o Venerando Juiz Presidente do Tribunal Supremo vem arguir o afastamento do juízo jurisdicional de inconstitucionalidade firmado no Acórdão n.º 405/2016, objecto da presente aclaração.
Segundo entendimento doutrinário e jurisprudencial, a nulidade da sentença tem, assim, lugar quando os fundamentos invocados conduzam logicamente a um resultado oposto ao plasmado na sentença, o que, salvo melhor compreensão, não se subsume ao caso sub judice.
Na verdade, este Tribunal é levado a crer, em face de todas as peças processuais que compõem os autos, que a interpretação que é feita ao Acórdão n.º 405/2016, em sede de aclaração, parte de premissas distintas das que determinaram a decisão a aclarar.
Para o Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo a alegada contradição plasmada neste Acórdão decorre do facto de a inconstitucionalidade do seu despacho de não admissibilidade do recurso ordinário, submetido por Onovais Frederico, emergir da declaração de inconstitucionalidade dos artigos 540.º do C.P.P. e 6.º da Lei n.º 20/88, que não estão na base da prolação do despacho aqui referido, que se sustenta, ao invés, nos artigos 526.º e 473.º do C.P.P. e no artigo 6.º da Lei n.º 20/88 de 31 de Dezembro.
Acontece, porém, que este é um argumento trazido pela primeira vez ao processo e que não coincide, pelo menos parcialmente, com o conteúdo de dois dos documentos a partir dos quais este Tribunal fundou a sua decisão, plasmada no Acórdão n.º 405/2016. Assim: (a) o ofício que traz a transcrição do Despacho do Venerando Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, inserto a fls. 7 dos autos, cuja formulação transcrita é a seguinte: “…o recurso não foi aceite porque a defesa não pediu que se registassem os depoimentos (escritos) tendo assim, tacitamente, renunciado a qualquer interposição de recurso. 2014/XII/22”; (b) o despacho exarado em sede do Tribunal a quo, a fls. 99, que deu lugar ao despacho confirmatório declarado inconstitucional, onde se lê o seguinte …. por não corresponder ao crime (no caso o crime de violação pp pelo artigo 393.º do C.P) pena maior fixa (a pena estabelecida é de 2 a 8 anos de prisão) e por não ter havido de alguma das partes, a declaração de que não prescindia de recurso ou requerimento de depoimentos escritos, o julgamento decorreu de forma oral, facto que obsta à interposição de recurso, pois, para se recorrer de uma decisão judicial em processo penal, necessário é que as partes (isto é, o Ministério Público ou a defesa), não tenham renunciado tácita ou expressamente ao recurso, não sendo caso de recurso obrigatório, vide disposições combinadas dos artigos 540.º do Código de Processo Penal, 6.º da Lei n.º 20/88 de 31 de Dezembro e 16.º da Lei n.º 11 /82, de 7 de Outubro. Assim, o deferimento do recurso na questão sub judice traduzir-se-ia na prática de um acto ilegal pelo Juiz da causa, termos em que é de indeferir o requerimento a fls. 97.“
Como referido no Acórdão em aclaração, a sindicância levada a cabo pelo Tribunal Constitucional não deixou de considerar a conformidade legal dos despachos supra mencionados, o que, contudo, não constitui requisito bastante para afastar a verificação da constitucionalidade, na medida em que a validade da legalidade não é pressuposto de conformação com a Constituição.
Nesse sentido e ante os elementos de facto e de direito trazidos ao processo, o Tribunal Constitucional, enquanto jurisdição chamada a validar a constitucionalidade de quaisquer normas e actos do Estado, procurou parametrizar o seu juízo decidendum tendo em conta os princípios e direitos estruturantes do Estado democrático de direito, que encontram consagração na Constituição da República de Angola e que servem de medida de interpretação e de aplicação do direito.
À luz de tais princípios, de que relevam o da supremacia da Constituição (artigo 6.º da CRA) e o da constitucionalidade (artigo 226º da CRA), o Tribunal Constitucional, ao elencar a questão de fundo subjacente ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade, apresentado por Onovais Frederico, apreciou a constitucionalidade dos artigos 531.º, 540.º, 561.º do CPP e do artigo 6º da Lei n.º 20/88, na sua relação com a norma do nº 6 do artigo 67.º da CRA, que garante o direito fundamental ao recurso que, em si mesmo, concretiza o exercício alargado do direito à ampla defesa.
Este direito, como referido no Acórdão ora em aclaração, não depende de regulamentação legal infraconstitucional, o que significa que a lei que venha a condicionar o seu exercício, quer anterior quer posterior à entrada em vigência da Constituição da República de Angola de 2010, fica em desconformidade com a Constituição, cabendo a todo julgador afastar, por inconstitucionalidade, a sua aplicação.
O Tribunal Constitucional socorreu-se, assim, da interpretação conforme a Constituição, que impõe o recurso às normas e aos princípios constitucionais, para firmar a inconstitucionalidade material superveniente dos artigos acima mencionados, entre os quais o artigo 540.º do CPP e o artigo 6.º da Lei n.º 20/88, que fundamentaram a rejeição do recurso ordinário de Onovais Frederico. Este é, aliás, um procedimento que traduz a consagração do direito (e dever) de fiscalização dos juízes (judicial review) relativamente a normas a aplicar a um caso concreto (ver Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição), inserido num sistema em que todos os tribunais são chamados a fazer o controlo da constitucionalidade (artigo 177.º, n.º 1 da CRA).
No Acórdão em aclaração considerou este Tribunal que os artigos 531.º, 540.º e 561.º do CPP e o artigo 6.º da Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro, são um condicionamento inconstitucional da garantia constitucional do direito ao recurso.
Não foi esta a primeira vez que este Tribunal firmou jurisprudência para protecção do direito ao recurso, ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva. Já antes (vide Acórdãos 148/2011 e 154/2012) entendeu o Tribunal Constitucional que o direito de recorrer é um direito universal e fundamental, de primeira geração, reconhecido e protegido pela Constituição e que assegura o direito irrenunciável à ampla defesa
Sendo que é a Constituição que estabelece o padrão último de validade de qualquer norma jurídica e que ao poder judicial compete garantir e assegurar a observância da lex superior (artigo 177.º, n.º 1 da CRA), este Tribunal considera que não se verifica a reclamada oposição entre os fundamentos expendidos no seu acórdão e a declaração de inconstitucionalidade que recaiu sobre o despacho proferido pelo Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo. A norma legal que viole uma disposição consagrada na Constituição é inconstitucional. Consequentemente, o acto praticado ao abrigo dessa norma está ferido de inconstitucionalidade.
Embora o Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo se posicione contra a inconstitucionalidade dos artigos 540.º do CPP e 6.º da Lei n.º 20/88, facto é que o parâmetro de controlo da actividade do Tribunal Constitucional assenta nos princípios e normas constitucionais, devendo, desta forma, fazer relevar o primado da Constituição, entre outros princípios igualmente relevantes. Este entendimento não invalida, contudo, que se reconheça que a função jurisdicional está indissociavelmente ligada à obrigação de os magistrados decidirem nos termos da lei, segundo a sua convicção e responsabilidade.
Nas demais questões arroladas na presente aclaração e designadamente as relativas ao processo de Reclamação, este Tribunal considera que o Acórdão n.º 405/2016 é elucidativo quanto às razões de direito que determinaram a admissibilidade do recurso extraordinário de inconstitucionalidade interposto por Onovais Frederico, em face da ausência dos autos de Reclamação, insistentemente requisitados, e cujo resultado foi o envio de um ofício que transcrevia um parecer que apenas confirmava o indeferimento do pedido de recurso ordinário.
Para sustentar a admissibilidade do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, considerou-se estar em causa a necessidade de salvaguardar e garantir a concretização do direito fundamental de acesso ao direito e à justiça (artigo 29.º da CRA), na perspectiva de ser encontrada uma solução jurídica para a questão controvertida submetida à sindicância deste Tribunal Constitucional. A garantia subjacente à tutela jurisdicional efectiva, incorporada no direito de acesso ao direito e à justiça, legitima sacrificar, em determinadas circunstâncias, todo um formalismo e pressupostos processuais, que se observados poderiam dar lugar à ausência da protecção jurídica pretendida.
Deste modo, o Tribunal Constitucional procedeu à aplicação directa da Constituição, pois as normas consagradoras de direitos fundamentais não são simples norma normarum, mas, sim, normas normata, o que significa que, com as devidas excepções legais, não são meras normas para a produção de outras normas, mas normas directamente reguladoras de relações jurídico- materiais (ver J.J Gomes Canotilho, na obra acima citada).
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em:
Sem Custas (artigo 15.º da Lei n.º3/08, de 15 de Junho, L.P.C).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 18 Julho de 2017.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Rui Constantino da Cruz Ferreira (Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. Carlos Magalhães
Dr.ª Guilhermina Prata
Dr.ª Maria da Imaculada L.C. Melo (Relatora)
Dr. Raul Carlos Vasques Araújo
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr.ª Teresinha Lopes