ACÓRDÃO N.º 451/2017
PROCESSO N.º 525-B/2016
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Marcos António Quintino Lopes, melhor identificado nos autos, inconformado com o Acórdão da 1.a Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo n.º 81/09, a 13 de Maio de 2016, por este ter anulado, a fls. 263, o aresto prolatado pelo Tribunal Provincial de Luanda (TPL), a 16 de Abril de 2008, no Processo n.o 745/06-F, veio ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por alegada violação do disposto no n.o 2 do artigo 6.o, dos artigos 29.o, 72.o, 76.o, do n.o 1 do artigo 174.o, do artigo 175.o e do n.o 1 do artigo 177.o, todos da Constituição da República de Angola (CRA).
O referido Acórdão do Tribunal Supremo concluiu, em síntese, que: (i) a sentença da Sala de Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda padece do vício de falta de fundamentação, pelo que é igualmente nula, e (ii) ordenou a baixa do processo e o prosseguimento de novo julgamento no Tribunal “a quo”, (iii) devendo a entidade empregadora, no prazo de oito (8) dias, juntar o processo disciplinar aos autos.
Nas alegações de recurso, o Recorrente reclamou do seguinte:
O Recorrente, por último, requer a revogação integral do Acórdão recorrido, por não ter sido proferido com fundamento nas disposições constitucionais e legais em vigor e, por conseguinte, que se confirme “a sentença proferida pela 3.a Secção da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda”.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
Compete ao Plenário do Tribunal Constitucional, após esgotamento das fases recursórias legalmente cabíveis, julgar os recursos interpostos de sentenças ou decisões que violem direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.o e do artigo 53.o, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, ambos da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), bem como da alínea b) do artigo 23.o da Resolução n.º 1/14, de 28 de Julho – Regulamento Geral do Tribunal Constitucional (RGTC).
Desta feita, o Tribunal Constitucional é competente para apreciar e julgar o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é parte legítima no processo, venceu a causa no Tribunal “a quo” e a Recorrida interpôs recurso da respectiva sentença para o Venerando Tribunal Supremo, que veio a julgar procedente a causa e anulou o aresto da primeira instância. Resulta disso que o Recorrente tem interesse em demandar e, nesse sentido, é parte legítima, com base na alínea a) do artigo 50.o da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.
IV. OBJECTO DO RECURSO
O objecto do presente recurso é o Acórdão do Venerando Tribunal Supremo, de 13 de Maio de 2016, proferido no Processo n.º 81/09, que anulou a sentença recorrida, ordenou a baixa dos autos para, no prazo de oito (8) dias, a Recorrida remeter o processo disciplinar ao Tribunal “a quo”, determinando que este realize novo julgamento da matéria controvertida.
Compete, assim, ao Tribunal Constitucional apreciar se o Venerando Tribunal Supremo, no seu Acórdão, violou alegadamente os seguintes princípios:
V. APRECIANDO
A acção de recurso em matéria disciplinar, apresentada pelo Recorrente contra a sua entidade empregadora (BCA), a 1 de Setembro de 2006, junto da Secretaria Judicial, foi objecto de decisão proferida pela 3.a Secção da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda, a 16 de Abril de 2008.
No Acórdão do Processo n.o 745/06-F, o referido Tribunal considerou provado que a convocatória continha apenas acusações genéricas, pois não especificava “em concreto o que se passava”, impossibilitando, desse modo, o Recorrente de se preparar para exercer o seu direito de defesa na entrevista convocada e que, por sua vez, acabou por não ser realizada pela Comissão Disciplinar da referida unidade bancária.
O Tribunal de primeira Instância concluiu que, com tal procedimento, a entidade empregadora “violou normas imperativas que recorta o direito de trabalho e do seu processo”, nomeadamente, o n.o 1 do artigo 228.o da Lei n.o 2/00, de 11 de Fevereiro, antiga Lei Geral do Trabalho, e o artigo 220.o do CC, que prevêem a nulidade do despedimento por falta de entrevista ou por incumprimento de formalidades legalmente prescritas.
Os Juízes do Tribunal “a quo”, na decisão de fls. 183 a 187, declararam “procedente o recurso em matéria disciplinar, nos termos do n.o 6 do artigo 18.o da Lei n.o 22/B-92, de 9 de Setembro” e, em consequência, condenaram a então Requerida no pagamento de indemnizações a serem apuradas na fase de execução da sentença.
O referido n.o 6 do artigo 18.o da Lei n.o 22/B-92, de 9 de Setembro, Lei de Extinção dos Órgãos de Justiça Laboral, prevê a competência dos tribunais de anularem qualquer decisão disciplinar aplicada por empresas contra trabalhadores, baseando-se em provas produzidas para o efeito.
Inconformada com o aresto prolatado, a ora Requerida interpôs recurso, a 7 de Maio de 2008, a fls. 93, para o Venerando Tribunal Supremo e, em 2016, este órgão judicial veio julgar a causa, tendo, no seu Acórdão, de fls. 252 a 263, anulado a sentença recorrida e ordenado a baixa dos autos para, no prazo de oito (8) dias, a instituição empregadora (BCA) remeter o processo disciplinar, a fim de o Tribunal “a quo” realizar novo julgamento.
Desta decisão veio o Recorrente, a fls. 269, interpor tempestivamente o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para efeitos de apreciação pelo Tribunal Constitucional dos seguintes princípios:
O Recorrente alega que houve violação do princípio da legalidade, por considerar que, ao ter sido despedido sem justa causa pela instituição bancária, o Tribunal “ad quem”, julgando a lide, devia conhecer do mérito da causa, como prevê o artigo 715.o do CPC, para que pudesse ordenar a ora Requerida a respeitar o disposto na Lei n.o 2/00, de 11 de Fevereiro, quanto às formalidades do procedimento disciplinar.
Consultado o ordenamento jurídico laboral, precisamente os termos do n.o 1 e da alínea a) do artigo 50.o, bem como do n.o 1 do artigo 228.o, ambos da antiga LGT, o Tribunal Constitucional constata que a aplicação de quaisquer medidas disciplinares, com excepção das admoestações simples e registada, é considerada nula se não for precedida de audiência prévia do trabalhador, que tem o direito de ser convocado para uma entrevista, cuja convocatória deve conter a descrição detalhada dos factos de que vem acusado.
Na verdade, o cumprimento das formalidades legais supra-mencionadas significa o respeito pelo princípio da legalidade que os tribunais devem observar no exercício das suas funções jurisdicionais, nos termos do n.º 2 do artigo 6.o e do n.o 1 do artigo 226.o, ambos da CRA.
Uma vez que a legalidade é a base em que devem assentar todas as decisões jurisdicionais (artigo 175.o da CRA), incumbe ainda inferir, por via da interpretação sistemática, que qualquer julgamento de processo disciplinar laboral deve, por conseguinte, respeitar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e outros diplomas de vigência internacional ratificados pela República de Angola, em virtude do previsto no n.º 1 do artigo 12.o, nos n.os 1 e 2 do artigo 13.o e nos n.os 1, 2 e 3 do artigo 26.o, todos da CRA.
Assim, o Acórdão do Tribunal recorrido, ao não ter observado a Constituição e as leis vigentes, violando direitos do trabalhador e garantias constitucionalmente protegidas, resulta em acto ferido de inconstitucionalidade, conforme prescreve o n.o 2 do artigo 226.o da CRA.
O Recorrente alega ainda que o princípio da legalidade foi violado por força da interpretação que o Tribunal recorrido fez de normas que considera inaplicáveis ao caso “sub iudice”, mormente o artigo 158.o do CPC, sobre o dever de fundamentação exigido ao Tribunal “a quo” e a consequente nulidade da sua sentença, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 668.o do CPC, por esta primeira Instância não ter fundamentado a sua decisão.
É imperioso aclarar que, nesse caso em concreto, cabe ao Tribunal Constitucional sindicar a protecção dos princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais do Recorrente, em face da decisão que o Tribunal Supremo proferiu com base na aplicação das normas do artigo 158.o e da alínea b) do n.º 1 do artigo 668.o, ambos do CPC, ao anular a sentença do Tribunal “a quo”.
Consta, a fls. 263, que o Venerando Tribunal Supremo anulou a sentença recorrida pelo facto de o processo disciplinar instaurado contra o Recorrente não se encontrar apenso aos autos, tendo, desse modo, aquele órgão superior de jurisdição comum entendido que não podia conhecer da apelação, uma vez que não dispunha de fundamentação, ou seja, de “elementos necessários para o fazer”.
Ora, o Tribunal Constitucional verificou que o processo disciplinar consta dos autos desde a fase de tentativa de conciliação ocorrida na primeira Instância e está composto de convocatória, a fls. 36, carta de adiamento da entrevista, a fls. 42, proposta de decisão, a fls. 43, relatório e acta da entrevista não realizada, a fls. 56 e 63, despacho do Conselho da Administração do banco sobre a medida disciplinar a aplicar com base na lei específica, a fls. 65, e carta de despedimento imediato dirigida ao Recorrente, que acusou a recepção, a fls. 66.
O Tribunal “ad quem”, por ter erroneamente admitido que o processo disciplinar não constava dos autos, anulou a decisão recorrida e ordenou novo julgamento em sede da primeira Instância.
O erro acima descrito configura de facto violação do princípio da legalidade e ofende o direito do Recorrente a julgamento justo e célere, previstos no n.º 2 do artigo 6.º e no artigo 72.º, ambos da CRA, respectivamente.
Importa ainda confirmar que a norma do n.o 2 do artigo 659.o do CPC estabelece o dever do Juiz “ad quem” de conhecer do mérito da causa. Para o efeito deve ter em consideração os factos admitidos por acordo, confirmados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o Tribunal recorrido der como provados, a par de fazer o exame crítico das provas que lhe competia conhecer, para, ao aplicar a lei aos factos, concluir pela decisão final.
Os autos de fls. 146, 149 e 186 fazem prova de elementos bastantes que pesaram para a decisão tomada pelo Tribunal de primeira Instância, logo, a nulidade do aresto do Tribunal “a quo”, declarada pelo Venerando Tribunal Supremo, seria admissível, nos termos da alínea b) do n.o 1 do artigo 668.o do CPC, somente caso não existissem fundamentos de facto e de direito, vertidos na sentença recorrida.
Por essa razão, é entendimento do Tribunal Constitucional que assiste razão ao Recorrente quanto à alegada violação dos princípios da legalidade e do processo justo e célere, previstos no n.º 2 do artigo 6.o, e no artigo 72.º, todos da CRA.
O Recorrente acresce ainda, a fls. 284 a 300, que o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva foi violado por ter ocorrido o seguinte:
A apreciação dessas questões fica prejudicada devido
à solução dada às outras, conforme estabelece o n.º 2 do artigo 660.o do CPC, aplicável ao caso presente em virtude do disposto na norma do artigo 2.o da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – LPC.
O princípio da estabilidade do emprego (direito fundamental ao trabalho) está incorporado no n.º 4 do artigo 76.o da CRA, ao estabelecer que “o despedimento sem justa causa é ilegal, constituindo-se a entidade empregadora no dever de justa indemnização ao trabalhador despedido, nos termos da lei”.
Ora, é jurisprudência firmada no Tribunal Constitucional, em virtude do Acórdão n.º 235/2013, de 9 de Abril, que “o despedimento por iniciativa do empregador, a que falte justa causa, pode, nos termos da LGT, revelar-se nulo” (ao abrigo dos artigos 63.º e 228.º, ambos da antiga LGT).
Em resumo, o princípio da estabilidade do emprego, previsto no artigo 211.o da revogada Lei n.o 2/00, de 11 de Fevereiro, e no n.º 1 do artigo 198.o da actual Lei Geral do Trabalho – Lei n.º 7/15, de 15 de Junho, visa prevenir a ocorrência de despedimentos injustos, prescrevendo, prima facie, que a cessação do contrato de trabalho ocorra apenas quando haja “causas objectivas, alheias à vontade das partes, por mútuo acordo” ou “por decisão unilateral de qualquer das partes, oponível à outra” e, em segundo lugar, que a extinção da relação jurídico-laboral, como acontece no presente caso, ocorra apenas no respeito da Constituição e da lei.
Compulsados os autos, o Tribunal Constitucional constatou, a fls. 186, que a entidade empregadora não realizou entrevista nem detalhou os factos de que foi acusado o Recorrente, quer na fase de instrução do processo disciplinar, quer na tentativa de conciliação, contrariando o previsto nas alíneas a) e b) do n.o 2 do artigo 50.o da antiga LGT, em vigor no momento da ocorrência dos factos.
A referida violação das normas imperativas do direito do trabalho, quanto a formalidades essenciais, legalmente exigíveis para a condução do processo e a aplicação da medida disciplinar, também foi constatada pelo Juiz de direito do Tribunal “a quo”, ao referir, a fls. 186, que (i) a convocatória da entrevista da Comissão Disciplinar da entidade empregadora não detalhava, de forma clara e objectiva, as violações imputáveis ao Recorrente, (ii) que não foi ouvido em processo disciplinar por causa da suspensão da audiência no momento em que os seus mandatários solicitaram detalhes dos actos criminosos de que vinha acusado.
O Acórdão do Tribunal “ad quem”, ao anular a sentença do Tribunal “a quo” sem apreciar o processo disciplinar constante dos autos, nem observar as normas jurídico-laborais imperativas, e o disposto no artigo 715.º do CPC, ofendeu o direito fundamental do Recorrente à defesa dos seus interesses legalmente protegidos, bem como o princípio do julgamento justo e conforme a lei, nos termos dos artigos 29.o e 72.o, ambos da CRA.
Termos com que, por inconstitucionalidade, fica invalidada a decisão vertida no Acórdão recorrido de fls. 263.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho, e do n.º 5 do artigo 7.º da Lei n.º 9/05, de 17 de Agosto – Lei sobre Actualização das Custas Judiciais e de Alçada dos Tribunais.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 8 de Agosto de 2017.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Rui Constantino da Cruz Ferreira (Presidente) - declarou-se impedido.
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr. Carlos Magalhães (Relator)
Dr.ª Luzia Bebiana de Almeida Sebastião
Dr.ª Maria da Imaculada L. da C. Melo
Dr. Raul Carlos Vasques Araújo