ACÓRDÃO N.º452/2017
PROCESSO N.º 509-B/2016
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
José Teixeira da Conceição, melhor identificado nos autos, vem, nos termos da alínea a), do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, contra a decisão do Venerando Tribunal Supremo, que restituiu à liberdade o Réu Mateus Francisco André António.
Dos factos narrados no requerimento de interposição do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, consta o seguinte:
a) O Réu, ao ter requerido a providência de habeas corpus, usou um novo recurso, mesmo estando já em curso o recurso ordinário para o Venerando Tribunal Supremo;
b) O Venerando Tribunal Supremo decidiu sobre essa providência de habeas corpus, ordenando a soltura do Réu Mateus, porém não fundamentou a sua decisão. E, por esta razão, a decisão desse Tribunal deve ser considerada ilegal e injusta, por conseguinte, não produz quaisquer efeitos. Assim sendo, o Réu Mateus deve ser devolvido à cadeia, enquanto espera pela decisão do recurso ordinário, do Venerando Tribunal Supremo (fls. 5);
c) Para o caso em concreto, o único meio idóneo para atacar uma decisão judicial de um tribunal “a quo” é o recurso ordinário, oportunamente interposto pelo Réu e não o habeas corpus, porquanto, no caso, o instituto utilizado carece de pressupostos legais para a sua utilização (fls. 5);
d) Perante o exposto, o Recorrente, José Teixeira da Conceição, requer que o recurso extraordinário de inconstitucionalidade seja admitido, julgando-o procedente e que se dê provimento ao pedido e, consequentemente, seja revogada a decisão do Venerando Tribunal Supremo, proferida no processo de habeas corpus (fls. 15 e 56);
Assim, requer que o Réu Mateus seja reconduzido à cadeia, para o cumprimento integral da sentença proferida pelo Tribunal Provincial do Cuanza Norte, ao pagamento de 100. 000, 00 (cem mil kwanzas) e ao cumprimento de mais 1 ano de prisão efectiva, em decorrência da condenação em Abril de 2015 (fls. 56).
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
Nos termos das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 24/10, de 03 de Dezembro, do artigo 53.º da Lei n.º 3/08, de 1 7 de Junho e da alínea b) do artigo 23.º do Regulamento Geral do Tribunal Constitucional, o Plenário do Tribunal Constitucional é competente para apreciar e decidir o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
Regra geral, a legitimidade processual é aferida por uma relação da parte com o objecto da acção. Essa relação é estabelecida através do interesse da parte em demandar ou em contradizer, conforme o n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável subsidiariamente, nos termos do parágrafo único do artigo 1.º do CPP. Ainda nos termos desse Código, os recursos só podem ser interpostos por quem é parte principal na causa e que tenha ficado vencido (cfr. o n.º 1 do artigo 680.º do CPC).
Ora, o Recorrente foi queixoso no processo-crime que deu origem ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade. Não há, nos autos remetidos ao Tribunal Constitucional, informação sobre se o ora recorrente se tenha constituído assistente nos termos do previsto no § 4.º do artigo 4.º do Decreto- Lei n.º 35 007, de 13 de Outubro, de 1945, para efeitos do disposto no artigo 50.º da Lei do Processo Constitucional (LPC). Porque nos termos dessa norma legal, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário, no caso de sentenças, (…) todas as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário. Ora, se assim é, o Recorrente José Teixeira da Conceição, (conhecido nos autos como primo do réu e tio da ofendida) tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
IV. OBJECTO DO RECURSO
O objecto do presente recurso é a decisão vertida no Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Venerando Tribunal Supremo, em 18 de Fevereiro de 2016, que restitui à liberdade o Réu Mateus Francisco André, na providência do habeas corpus.
V. APRECIANDO
José Teixeira da Conceição veio ao Tribunal Constitucional requerer que o recurso extraordinário de inconstitucionalidade seja admitido, julgando-o procedente e que se dê provimento ao pedido e, consequentemente, seja revogada a decisão do Venerando Tribunal Supremo, proferida no processo de habeas corpus (fls. 15 e 56): ordenando, por conseguinte, que o Réu Mateus Francisco José seja reconduzido à cadeia para o cumprimento integral das penas de 5 anos, proferida pelo Tribunal Provincial do Cuanza Norte, pela prática do crime de violação (artigo 393.º do CP), pagamento de Kz. 100. 000,00 (cem mil kwanzas), a título de taxa de justiça e Kz. 50.000,00 (cinquenta mil kwanzas), a título de dote à ofendida. Por outro lado, para o cumprimento de uma pena de 1 ano de prisão efectiva (ordenada em Abril de 2015) que fora suspensa, pela prática do crime de ofensas corporais.
O Recorrente referiu que, estando já em curso o recurso ordinário para o Venerando Tribunal Supremo, o Réu nunca deveria ter requerido a providência do habeas corpus, pois “não é esse um recurso mas sim uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma com fim cautelar, que se destina a pôr termo a uma situação de privação ilegal de liberdade”. Assim, para o Recorrente, o réu não poderia beneficiar desse expediente que só é alcançável por via do recurso ordinário. Sobre esta afirmação importa dizer o seguinte:
1.1 A providência de habeas corpus reclamada pelo Recorrente José Teixeira da Conceição, surge na CRA de 2010 como um direito fundamental, do tipo direito, liberdade e garantia e funciona como uma garantia constitucional, a ser exercida em caso de detenção ou prisão ilegal (cfr. 1.ª parte do n.º 1 do artigo 68.º). “Pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer pessoa no gozo dos seus direitos políticos”. À luz do que se estabelece no § único do artigo 315.º do Código do Processo Penal (CPP), a providência de habeas corpus apenas pode ser usada havendo prisão efectiva e actual ferida de ilegalidade, pelos motivos constantes nas alíneas a) a d) do citado artigo.
Como se pode verificar, o habeas corpus é um instrumento jurídico processual que permite que o cidadão reaja contra o excesso de poder.
1.2. Pelo que os autos nos dão a conhecer, o Recorrente José da Conceição é primo do Réu Mateus André e tio da ofendida. Ora, se assim é, então está reunido o pressuposto processual para a utilização deste expediente jurídico. Porém, mesmo que não houvesse essa relação de parentesco entre o Recorrente do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade e a ofendida, ainda assim, a questão do pressuposto processual, não se colocaria, porquanto o n.º 1 do artigo 68.º da CRA permite que qualquer pessoa no gozo dos seus direitos políticos, face a uma detenção ou prisão ilegal, use o referido instrumento processual, para reagir contra uma decisão judicial eventualmente lesiva de direitos fundamentais.
1.3. Por outro lado, o Recorrente José da Conceição referiu que, para o caso em discussão, o único meio idóneo para atacar a decisão judicial do Tribunal “a quo” seria recurso ordinário comum, oportunamente interposto pelo Réu para o Venerando Tribunal Supremo e não o habeas corpus, uma vez que não se encontram reunidos os pressupostos legais para a sua utilização.
Ora, porque, por um lado e nos termos da CRA e da lei, o habeas corpus pode ser requerido na sequência de prisão ou detenção ilegal, a condução do Réu Mateus André à cadeia, face à situação carcerária em que se encontrava por altura do julgamento e ao efeito suspensivo do recurso por si interposto e admitido, consubstancia uma ilegalidade que atenta contra a sua liberdade. Por outro lado, o recurso ordinário comum e o habeas corpus são figuras distintas e têm objectivos diferentes.
Com o habeas corpus, o Réu Mateus André, pretendeu pôr termo a uma situação de prisão ilegal, enquanto que com o recurso ordinário interposto para o Venerando Tribunal Supremo, ele espera que esse Tribunal reaprecie o mérito da acção principal. Não se trata de uma decisão sobre o mérito da causa, mas sobre o desrespeito a uma formalidade jurídico-constitucional.
Do que se entende ser a decisão da 1.ª Câmara Criminal do Venerando Tribunal Supremo, proferida no processo 609, legal, justa e em nada prejudicial ao desfecho do processo principal que, de resto, seguirá seus termos uma vez que, pela natureza do crime cometido, crime sexual, não foi objecto de amnistia, nos termos da alínea d) do artigo 3.º da Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto. Pelo contrário, veio aquele Venerando Tribunal reparar uma ilegalidade cometida pelo Tribunal “a quo”. A actuação está conforme a Constituição (n.º 2 do artigo 6.º e n.º 1 do artigo 226.º da CRA), uma vez que os Tribunais devem sempre garantir e assegurar a observância da Constituição e das leis e proteger os direitos dos cidadãos (n.º 1 do artigo 177.º da CRA). Por isso é que o Tribunal Constitucional não aceita a tese da violação do princípio da igualdade do artigo 23.º da CRA, nem tão pouco a ideia de tratamento privilegiado, em razão da posição social do Réu, como pretende sugerir o Recorrente José Teixeira da Conceição.
“Na verdade, uma vez que o Réu Mateus Ribeiro já foi acusado e pronunciado e neste momento decorre o julgamento é, nessa sede, que se deverá clarificar se o réu cometeu ou não algum crime”. A providência aqui requerida não tem o condão de decidir a questão principal, pois, conforme já se afirmou no Acórdão n.º 236/13, do Tribunal Constitucional, o habeas corpus não é mais um recurso é uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo, a uma situação ilegal de privação de liberdade.
Efectivamente, no Acórdão n.º 236/13, invocado pelo Recorrente como fundamento para contestar a decisão do Venerando Tribunal Supremo, (Acórdão n.º 236, pág. 218) reforça-se a ideia já exposta, segundo a qual, o habeas corpus é o remédio próprio e eficaz para pôr termo a uma situação ilegal de privação de liberdade, como é o caso em análise.
A ilegalidade resulta do facto de Mateus Francisco André António ser Réu solto por ter interposto recurso com efeito suspensivo, sendo que, por força desse efeito, o Tribunal “a quo” nunca deveria ter alterado a situação carcerária em que ele se encontrava.
Nestes casos, a Constituição dá uma expressa autorização aos cidadãos para a utilização do instituto do habeas corpus, funcionando como uma garantia constitucional regulada no artigo 68.º da Lei fundamental. É um procedimento urgente, por meio do qual se pretende devolver a liberdade a uma pessoa que tenha sido dela privada por um acto do Estado (Acórdão n.º 236/13, pág. 218), solução que não tem que ficar dependente do recurso interposto junto do Venerando Tribunal Supremo.
É, no sentido de considerar o habeas corpus como mecanismo processual, autónomo e urgente e específico para pôr termo a prisões ou detenções ilegais, que caminha a jurisprudência do Tribunal Constitucional, como se pode confirmar com a leitura e interpretação dos Acórdãos nºs 237/2013, 238/2013; 240/2013;312/2013; 315/2013; 316/2013; 326/2014 332/2014; 335/2014; 338/2014; 340/2015, entre outros.
Na verdade, foi Mateus Francisco André António, em Abril de 2015, condenado numa pena de 1 ano de prisão, com execução suspensa, por período de 2 anos, no Processo n.º 815/15-B, argumento trazido pelo Recorrente José Teixeira, com a finalidade de justificar a necessidade de recolha à cadeia do referido Mateus Francisco André António.
A prática do novo crime, no caso, o de violação, deveria produzir como efeito a revogação imediata da suspensão da referida execução da pena. Contudo, em atenção ao facto de não ter ainda transitado em julgado a condenação pelo crime de violação, deve, nos termos do n.º 2 do artigo 67.º da CRA, continuar a presumir-se a inocência de Mateus Francisco André António e, em consequência, por respeito a esse princípio, só a partir daquele trânsito em julgado, ser efectivada a revogação da suspensão.
Nestes termos o trânsito em julgado do Processo n.º 16420 (autos de recurso penal, proveniente do Cuanza Norte) só ocorrerá depois que o Venerando Tribunal Supremo decidir da questão principal e não houver recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.
Não obstante o acima referido, o Tribunal Constitucional reconhece que os factos constantes da acusação movida contra Mateus Francisco André António, a confirmarem-se, são graves e merecedores de veemente censura por envolver violência sexual especialmente de menores dependentes. O que é facto é que a revogação da suspensão da execução da pena de prisão não pode ser imediata pois como já dito está protelada para o momento do trânsito em julgado da sentença que o venha eventualmente a condenar.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, os Juízes do Tribunal Constitucional acordam em:
Sem custas nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08 de, 17 de Junho.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 15 de Agosto de 2017.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Rui Constantino da Cruz Ferreira (Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr. Carlos Magalhães
Dr.ª Luzia Bebiana de A. Sebastião (Relatora)
Dr.ª Maria da Imaculada L. da C. Melo
Dr. Raul Carlos Vasques Araújo
Dr.ª Teresinha Lopes