ACÓRDÃO N.º466/2017
PROCESSO N.º 534-C/2016
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
JÉSSICA ALEXANDRA ALVES COELHO, melhor identificada nos autos, veio interpor, ao abrigo da alínea a) do artigo 49.º conjugado com a alínea a) do artigo 50.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 51.º, todos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), recurso extraordinário de inconstitucionalidade, com fundamento em que a instrução preparatória, o julgamento em primeira instância e a apreciação feita pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Venerando Tribunal Supremo terem sido realizados com total violação dos direitos, princípios, liberdades e garantias constitucionais, nomeadamente:
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal é o competente nos termos da alínea a) do artigo 49.º e seu § único da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente tem legitimidade nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 37.º e do n.º 1 do artigo 52.º da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso é o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Venerando Tribunal Supremo de 4 de Outubro de 2016 que, alterando o Acórdão de 9 de Março de 2016 procedente da 3. ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, decidiu:
A ora Recorrente Jéssica Coelho vem a este Tribunal pedindo que o Acórdão recorrido seja considerado inconstitucional e, por consequência nulo, por violação de diversos princípios e garantias constitucionais, nomeadamente:
3. Ter sido violado o direito a um julgamento justo e conforme, nos termos do n.º 4, in fine, do artigo 29.º e do artigo 72.º da Constituição, porquanto:
4. Mostrar-se igualmente contrariado o princípio da ampla defesa da arguida, ora recorrente, na medida em que foi tratada como se de um “verme” se tratasse, pois que ninguém, nem o MP, nem as duas instâncias dos Tribunais reconheceram sequer um meio de prova junto por ela, uma inconstitucionalidade nos procedimentos de obtenção de prova, designadamente:
5. Concomitantemente, teria sido ainda postergado pela decisão do Tribunal Supremo, o princípio consagrado no n.º 3 do artigo 67.º da Constituição, da presunção da inocência e do in dúbio pro reo, fundamental num Estado de direito democrático, a quem cabe, por intermédio da autoridade judiciária, reger a valoração da prova, ou seja, assegurar a formação da convicção do juiz com base nos meios de prova e que assenta na ideia de que a impunidade do culpado é mais tolerável do que a condenação de um inocente.
6. Finalmente, foi ofendido o princípio da legalidade, pois não obstante o Digno Representante do Ministério Público ter interposto recurso obrigatório da decisão proferida em primeira instância, o mesmo não solicitou nem a alteração dos factos dados como provados nem da qualificação jurídica ou a agravação de qualquer das penas, veio a Câmara Criminal do Tribunal Supremo a agravar não só a pena da Recorrente como as aplicadas aos restantes réus.
Reconhecendo os fundamentos sumariamente apresentados pela Recorrente é possível resumi-los pela ordem seguinte:
Contemplando esta ordem de fundamentos, a primeira noção que deles resulta é a de que são sucessivamente prejudiciais, isto é, estão numa relação de dependência de tal modo que a resposta positiva ao primeiro prejudica a apreciação do seguinte e logicamente do último. Obviamente uma ponderação positiva do segundo inutilizaria a apreciação da reformatio in pejus contida na última fundamentação.
Assim, aparentemente a primeira fundamentação constituiria uma questão prévia. Não é bem assim, todavia, porque é igualmente verdade que uma resposta positiva à segunda questão aproveitaria aos Recorrentes não reconhecidos como tal, tornando desnecessário remeter o processo ao Tribunal Supremo de onde é procedente. Em derradeira análise, a apreciação da reformatio in pejus aproveitaria igualmente aos demais réus neste processo.
Vai, assim, efectuar-se a apreciação sucessiva de cada uma destas questões de inconstitucionalidade que podem afectar a decisão recorrida.
Diz-se, no Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Venerando Tribunal Supremo, a fls. 14.842 dos autos, depois de referido que “desta decisão (do Tribunal de Primeira Instância) recorreu por imperativo legal o Mº Pº (fls. 256) pedindo a reapreciação do decidido” que, “por seu turno recorreram da mesma decisão por não conformação os réus Victor Nsumbo Valdemiro, t.c.p. “Baía”, João Manuel Mateus, t.c.p. “Teodoro”, António Niati, t.c.p. “Cocotocha” e Jéssica Alexandra Alves Coelho”. “Entretanto compulsados os autos constata-se que deles apenas constam as alegações motivadas da ré Jéssica Alexandra Alves Coelho (fls. 15.239)...”
Verifica-se, porém, que estão efectivamente juntas aos autos as alegações, tanto do réu Manuel Daniel Lopes Lima, a fls. 15.288, de 17 de Março de 2016, como as dos réus Victor Nsumbo Valdemiro, João Manuel Mateus e António Niati, a fls. 15.344. de 7 de Junho de 2016.
Duas questões se colocam face a esta constatação: a primeira é a de saber se tem a Recorrente legitimidade para suscitar esta nulidade que decorre da violação de um direito que apenas pertence a cada um dos co-réus. E, como se observa, não houve qualquer reacção dos mesmos. A segunda questão prende-se com o disposto no artigo 663.º do Código de Processo Penal que no seu n.º 1 estatui que “Se responderem diversos réus e for interposto recurso da decisão final, ainda que só relativamente a algum deles, o Tribunal de recurso conhecerá da causa em relação a todos”.
Embora a Recorrente refira, nas suas alegações que, ainda que se comprovasse o envolvimento dos co-réus no crime pelo qual ela responde seria difícil provar que fora ela a sua mandante (fls. 14.911) e que uma eventual absolvição daqueles teria necessariamente consequências na incriminação da Recorrente pelo que é óbvio o seu interesse em ver salvaguardados os direitos aos recursos e alegações específicas por eles apresentadas. Por outro lado é necessário admitir que, embora o recurso da Recorrente aproveite aos demais réus, deve distinguir-se esse aproveitamento quando aqueles se conformem com a decisão, o que sucede quando todos os réus dela efectivamente recorram e com fundamentação própria, como é o caso dos autos.
Neste caso, todavia, o direito ao recurso exarado no n.º 6 do artigo 67.º da Constituição é um direito atribuído a cada um dos condenados, co-réus os quais foram devidamente notificados do Acórdão ora recorrido através dos seus mandatários (fls. 14.863 e 14.864). Não tendo esses co-réus impugnado tal Acórdão e, assim, com ele se conformando, a Recorrente carece de legitimidade para em nome deles vir agora, ao Tribunal Constitucional, arguir a sua nulidade.
A Recorrente reedita neste Tribunal a quase totalidade dos argumentos de direito que fundamentaram o seu recurso da decisão condenatória em primeira instância, na medida em que as violações do seu direito ao contraditório, a uma ampla defesa e a um julgamento justo retroagem à fase da instrução contraditória, com especial relevância para a falta do reconhecimento da identidade da Recorrente quando confrontada com outros réus e a sua não notificação para a reconstituição do crime apesar de estar representada por advogado. Como se constata da própria decisão recorrida, estas duas omissões procedimentais não interferiram na formação da convicção dos julgadores.
A Recorrente, porém, não deixa de incluir na sua alegação factos que, em seu entender, configuram ofensa grave ao direito a um julgamento justo e ao princípio da legalidade, por erro notório dos julgadores na apreciação da prova quanto a aspectos fulcrais da acusação, que se transcrevem:
a) A impossibilidade material do encontro em que foi concretizado o desígnio do crime
O “suposto encontro no famoso dia 28.09.12, entre as 12:00 e as 12:30 min, porém ficou provado que nesse dia em concreto não era possível, pois consta dos autos que a Recorrente Jéssica Coelho, depois de sair da escola, ao terminar o seu período normal de aulas, isto cerca das 12h, fartou-se de telefonar para o coarguido Manuel Lima Bravo, por não o ter encontrado do lado de fora da escola à sua espera. Como atesta o extracto das chamadas nos autos, às 12h 19 minutos, 12h:24 min e 13h:09 (vide extracto telefónico e tráfego do telemóvel da arguida Jéssica Coelho no dia 28.09.2012 – fls. 243) não tendo o motorista aparecido para a recolher, ela Jéssica, acabou por ter de sair do Colégio para sua casa com o seu tio” (alegações da Recorrente, fls.14.881). “Estas provas técnicas, que são juridicamente irrefutáveis, foram juntas aos autos pelo próprio Ministério Público em instrução preparatória, e indicam que entre as 12h e as 14h do dia 28.09.2012 o tráfego telefónico do telemóvel do co-réu Manuel Lima Bravo, mostra expressamente que estava sob cobertura da “antena dos Combatentes/São Paulo e depois Liga Africana (fls. 455), e o telemóvel de Jéssica Coelho indicava “antena da Jembas/1.º de Maio - Unitel B (fls.243), o que prova TECNICAMENTE que estavam em diferentes zonas da cidade de Luanda, ou seja, que não estavam juntos” (idem).
b) A total improbabilidade de a Recorrente ter atraído a vítima
“A fls. 243 e ss tenta-se dizer que o primeiro contacto entre a Jéssica e o infeliz Jorge Valério (no dia 29.09.2012) foi uma chamada para o telemóvel da Jéssica com o número 923-553-137, e ocorreu às 22h:05 (vide fls. 1.310 e ss) e foi por iniciativa do Jorge Valério e não da Jéssica Coelho. Entretanto (a fls.220 vs) verifica-se que o terminal telefónico 921-882-032 (que a acusação absurdamente pretendeu alegar que pertencia à Jéssica e que lhe tinha sido ofertado pelo infeliz Jorge Valério), já tinha tido contacto com o terminal telefónico da vítima às 20h:20 e às 21h:40 (vide fls. 220 vs). Então, se apenas às 22h:05 é que a co-arguida Jéssica Coelho falou pela primeira vez com o Jorge Valério nessa noite como é que se pode crer que não sabendo que o namorado viria a sua casa, nem a que horas viria, e ainda por cima este veio por iniciativa própria, poderia atraí-lo para um crime? (alegações da Recorrente, fls.14.881);” como “não se provou quem adquiriu e utilizou naquele fatídico dia o telemóvel (921-882-032) fantasma” (Idem);
c) A total improbabilidade de a Recorrente dispor das avultadas quantias que teriam sido usadas para pagar o crime de que é a suposta mandante
Também “não ficou provado que a Recorrente tinha e deu 8.000 dólares aos co-arguídos” (Idem);
d) O completo insucesso de localizar na residência da Recorrente o telemóvel que teria servido de móbil do crime
“Foi feita uma sucção na fossa, que foi encontrada intacta, na residência da Recorrente, por, segundo a instrução, ter sido lá que ela colocara o telemóvel e o resultado foi negativo. A instrução esteve na residência da menor como atestam os autos, partiu as fossas, sulcou-as e depois despejou em terreno baldio e não encontrou”(Idem);
e) Os resultados negativos das impressões digitais no local do crime
“Os vestígios de impressões digitais ensanguentadas recolhidos no local do crime e submetidos ao exame de lofoscopia, não pertencem aos Réus condenados. O próprio Relatório do Laboratório Central de Criminalística confirma isto” (Alegações da Recorrente, fls.14.883).
f) A incongruência entre a arma do crime que não disparou e os disparos ouvidos pelos populares vizinhos do local do crime
“A arma utilizada no local do crime não disparou. Entretanto, houve no fatídico dia muitos tiros, como declaram os populares em entrevista à Televisão Pública de Angola (prova junta nos autos em pen-drive)” (Idem).
g) O uso de provas proibidas pela Constituição no seu artigo 34.º - inviolabilidade das comunicações telefónicas da Recorrente e outros co-Réus
“A omissão de pronunciamento sobre a ingerência e invasão da vida privada e as comunicações privadas por violação da tutela jurisdicional efectiva artigo 29.º e dos outros artigos 32.º, 33.º e 34.º da Constituição e dos artigos 12.º da DUDH, 9.º e 17.º do PIDCP e do artigo 18.º da CADHP”.
É entendimento do Tribunal Constitucional que, como adiante se demonstrará e face ao que consta dos autos, nenhuma destas alegações consubstancia o erro notório sobre a apreciação das provas que poderia equivaler à violação do direito a um julgamento justo e conforme a Constituição.
Em sede de audiência de julgamento a Recorrente teve oportunidade para expor essa contradição que desmentia que o encontro dos réus Manuel Daniel Lopes Lima “Bravo” e João Manuel Mateus “Teodoro”, mais a testemunha Rodrigo Domingos Vidal “Naró”, com a Ré Jéssica, pudesse ter ocorrido no local e na data em que este consta dos quesitos uniformemente respondidos como provados (quesitos 27 e ss a fls. 15.189 e seguinte).
Pela referência das antenas de cobertura das chamadas da Recorrente e do co-Réu “Bravo” à hora do encerramento das aulas ao fim da manhã junto ao Colégio Elisângela Filomena no dia 28 de Setembro de 2012, não teria sido possível. Sendo este encontro uma das peças indicativas da preparação do delito, os elementos que ressaltam dos extractos ainda que excluindo o momento e o local não alteraram a convicção do julgador quanto à sua ocorrência e à subsequente execução do crime, eventualmente admitindo como sugerido em audiência pelo Ministério Público que essa ocorrência teria tido lugar mais tarde, às 16h:00 do dia 28 de Setembro. Não foi esta, aliás, a única dificuldade encontrada nos autos para a formação da convicção do julgador. Algumas delas decorrem do alegado pela Recorrente quanto à origem do dinheiro pago pela execução do crime, do desaparecimento do telefone da vítima Jorge Valério e do desaparecimento do telefone do Réu Manuel Daniel Lopes Lima “Bravo”.
Apesar destas dúvidas poderem abonar em favor da Recorrente (in dubio pro reo), é facto que existem nos autos outros elementos de prova do seu envolvimento no crime que levaram a formação da convicção do julgador e que este Tribunal não pode alterar por não verificar erro na valoração dessa prova.
A Recorrente confirmou, em audiência de julgamento (fls. 14.782), “que no dia 29 de Setembro de 2012 não tinha encontro marcado com o Jorge, todavia às 22 horas, o Jorge ligou a dizer que precisava de falar com ela e que iria ao seu encontro”. Cerca de cinco minutos depois da primeira chamada, o Jorge ligou dizendo que estava a chegar, e pediu para que ela se dirigisse à porta, tendo procedido dessa forma, porém não encontrou o Jorge”. Aliás, a própria Recorrente juntou um extracto das suas chamadas efectuadas (fls.667 a 694) mas do qual não constam chamadas recebidas não se verificando qualquer chamada para Jorge Valério no dia da ocorrência do crime.
Por sua vez, o réu Manuel Daniel Lopes Lima “Bravo” nas suas declarações a 17/12/2012, na presença do seu Advogado (à altura o mesmo da Recorrente) afirmou também que não conhecia o número 921-882-032, nem nunca tinha ligado para este terminal telefónico, nem enviara mensagens e também nunca recebera chamadas do referido terminal (fls. 539), o que, todavia, é contrariado pelos extractos deste co-Réu (fls.455 chamadas efectuadas; 458 chamadas recebidas; 461 mensagens enviadas; 462 mensagens recebidas).
Essas provas estão consubstanciadas nos extractos produzidos pela UNITEL, a operadora dos telefones dos réus, a solicitação do Ministério Público (fls. 186 a 188 e 542 e v).
O pronunciamento deste Tribunal é necessário, na medida em que verificou como esta prova documental foi essencial para a formação da convicção do julgador em ambas as instâncias, como decorre das considerações acima sobre as chamadas telefónicas e troca de mensagens entre a vítima e os principais intervenientes na preparação e consumação do crime: a Recorrente e o co-Réu Manuel Daniel Lopes Lima “Bravo”, mas também os outros co-Réus.
A este respeito a primeira nota é a de que a Recorrente nunca suscitou a inconstitucionalidade desta prova documental e ela própria tomou a iniciativa de juntar um extracto das chamadas efectuadas pela própria (fls.667 a 694) embora não obtido por via da sua operadora mas com possível recurso à aplicação ”UCC – UNISIDE CUSTOMER CARE” que esteve em uso no Call Center da UNITEL mas concedido à empresa UCALL (fls. 1304).
A segunda nota é que os extractos das chamadas efectuadas e recebidas bem como o registo das mensagens trocadas entre os principais intervenientes, se limitaram à enumeração das ligações realizadas sem fornecimento de qualquer conteúdo.
Uma terceira e última nota para referir que os telefones dos Réus e as chamadas e mensagens entre eles trocadas no dia do crime e nos dias que o antecederam e lhe sucederam, constituem parte essencial do corpo do delito com que os julgadores foram confrontados. Com efeito, os telefones funcionaram neste caso como importantes instrumentos da preparação do crime, o que sempre justificaria o exame do tráfego das chamadas entre eles.
Como atrás ficou dito os extractos das ligações telefónicas foram obtidos por solicitação do Ministério Público (fls. 186 a 188 e 542 e v).
Nessa data estava em vigor a actual Constituição que no n.º 2 do seu artigo 34.º estatui que “apenas por decisão de autoridade judicial competente proferida nos termos da lei é permitida a ingerência das autoridades públicas na correspondência e demais meios de comunicação privada”. Essa autoridade judicial é necessariamente um Juiz e não, como se verificou no caso, um Magistrado do Ministério Público. E é assim efectivamente que deve ser estabelecendo já a lei vigente, (Lei n.º 25/15 de 18 de Setembro – Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal) que é o Juiz de turno a autoridade judicial competente para autorizar o acesso ao registo e conteúdo das ligações telefónicas.
Porém à data a que se reportam os factos não existia definida por lei a figura do Juiz de turno ou equivalente, sendo as respectivas funções exercidas por quem tinha a seu cargo a direcção da instrução preparatória, isto é, o Ministério Público.
Vale assim para o caso em apreciação, o entendimento firmado por este Tribunal para caso análogo (Acórdão n.º 336/2014 de 11 de Setembro) quando considera o seguinte:
“ No que respeita aos históricos de chamadas telefónicas, é entendimento do Tribunal Constitucional que, o artigo 34.º da CRA abarca o sigilo do conteúdo das comunicações e, também, o sigilo do acesso ao registo das chamadas telefónicas e outras formas de comunicação (vide, entre outros, Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa Anotada” Tomo I, página 373, V, Coimbra Editora, 2005), significa isso que só com autorização de autoridade judicial competente é lícito o acesso e a utilização, como meio de prova, das comunicações privadas (n.º 2 do artigo 34.º da CRA).
No caso presente, a obtenção do relatório das chamadas telefónicas efectuadas foi determinada pelo Ministério Público (fls. 90 dos autos), entidade que, embora não seja autoridade judicial, é a responsável pela direcção da instrução dos processos e vem de facto, actualmente, até que sejam instituídos os “juízes de instrução” exercendo a função de fiscal das garantias em sede de instrução processual preparatória.
Nessa medida, e por se tratar de uma situação transitória, o Tribunal Constitucional entende estar justificada, no processo, a intervenção do Ministério Público para ordenar o acesso ao registo das comunicações privadas dos Recorrentes”
Não se afigura ao Tribunal Constitucional que, como já anteriormente afirmado, a convicção do julgador se tivesse formado incorrendo em algum erro notório ou grosseiro na apreciação da prova constante dos autos.
O objecto do recurso extraordinário de inconstitucionalidade é o de verificar se a decisão recorrida, um Acórdão necessariamente, pelo seu conteúdo e fundamentos de direito, viola direitos, liberdades e garantias concedidas pela Constituição à Recorrente, ou contraria princípios fundamentais da Constituição.
Não sendo este recurso uma terceira instância de produção ou apreciação de prova, ele tem que, objectivamente, quando está em causa verificar a violação de direitos fundamentais, apreciar o facto constitutivo da ofensa a esses direitos. Assim sendo, não pode o conhecimento do recurso abstrair-se da prova produzida nos autos e, nessa medida, deixar de ajuizar da sua constitucionalidade e validação pelo julgador a quo.
Foi o que se fez no caso em presença.
O entendimento do Tribunal Constitucional é o de que a decisão recorrida sustenta-se em prova efectivamente produzida nos autos, não se constatando na sua valoração, erros ou vícios lesivos de direitos fundamentais da Recorrente.
O princípio da proibição da “reformatio in pejus” encontra-se previsto no artigo 667.º do Código de Processo Penal onde se estipula:
“Interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes”.
O recurso estabelece, um limite à actividade jurisdicional, constituído pelos termos e pela medida da condenação do arguido (único) recorrente, mesmo se o arguido tiver pedido no recurso a anulação do julgamento ou o reenvio para outro tribunal por se postularem as mesmas razões. Na verdade, o referido princípio encontra consagração constitucional na parte em que, a par das garantias da defesa, eleva à dignidade de princípio constitucional, o direito de recurso. Daqui resulta claramente que o Tribunal Superior e mesmo o de primeira instância, em caso de reenvio, pelas mesmas razões está limitado na possibilidade de condenar em pena superior sempre que o Ministério Público não recorra ou o faça no exclusivo interesse do réu.
No caso dos autos, o Ministério Público interpôs recurso por imperativo legal limitando-se a pedir a reapreciação do decidido. Ora, quando este Magistrado se limita a recorrer por obrigação legal, perpassa a ideia que concorda com o teor da decisão impugnada e, só interpõe recurso porque esse procedimento resulta de um imperativo da lei. Tanto isso é verdade, que o próprio legislador no n.º 5 do artigo 690.º do Código de Processo Civil abre uma excepção para o Ministério Público ao cumprimento desse ónus de alegar e concluir, quando recorra por imposição legal. Não obstante a inteira concordância do Procurador com a decisão, dela deve interpor recurso provocando a sua reapreciação pelo Tribunal Superior. Esta imposição ex lege de recorrer dispensa, porém, o Ministério Público da apresentação de alegações e conclusões e, por conseguinte, também da adução de um fundamento concreto que pode nem existir. É compreensível esta excepção porquanto, tratando-se de uma decisão com a qual concorda não deixaria de constituir uma violação da sua consciência jurídica obriga-lo a alegar e fundamentar contra uma decisão a que tenha plenamente aderido. Daí que se possa entender que, neste caso, embora não seja evidente que o recurso interposto pelo Ministério Público seja no exclusivo interesse da recorrente e demais co-réus, também não é contra eles e, nessa perspectiva, convencido que a pena aplicada não possa ser alterada para mais. Este argumento vai ao encontro de a compreensão deste princípio integrar o processo justo, o processo equitativo, tributário da estrutura acusatória do processo, consagrada constitucionalmente e do princípio da acusação que impõe que nos casos em que a acusação se conforma com a decisão e o recurso é interposto apenas pelo arguido, ou no seu interesse exclusivo, fiquem limitados os parâmetros da decisão e condicionado no processo o poder de decisão à não alteração do decidido em desfavor do arguido.
Na verdade, mal se compreenderia que tendo o Ministério Público recorrido por imperativo legal, sem que, em algum momento, suscitasse a brandura da condenação, a Recorrente e os demais co-Réus vissem a sua posição agrava
da com uma condenação mais pesada, apesar de, no caso deste tipo de recurso, o Ministério Público parecer conformar-se com ela.
Entende, pois, este Tribunal que assiste razão à Recorrente ao referir que este agravamento conduz à violação de princípios constitucionais, como o do julgamento justo e equitativo.
Estipula, no entanto, o n.º 2 do citado artigo 667.º que a pena também pode ser agravada quando o Ministério Público junto do Tribunal Superior emita parecer nesse sentido. Neste caso deve o réu ser notificado do parecer para resposta no prazo de 8 dias. Esta imposição é um corolário da necessidade de protecção dos princípios não só do julgamento justo e equitativo, como do contraditório e do próprio direito de defesa, na medida em que o réu tem de ter conhecimento absoluto de todas as regras da acusação para efectivar o seu direito de defesa em toda a sua amplitude.
Podemos constatar a fls. 14.838 do processo que o Representante do Ministério Público junto do Venerando Tribunal Supremo vem solicitar a condenação da aqui Recorrente numa pena de 8 anos de prisão. A Recorrente não foi, todavia, notificada deste parecer, tendo-se seguido pura e simplesmente os vistos legais e conferência.
Assim, tendo em consideração o exposto e o que se pretende salvaguardar, neste caso singular de o Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Superior clamar por maior severidade, é forçoso concluir que se verifica a preterição do exercício do contraditório. Ora o princípio do contraditório é transversal a todo o direito processual e essencial para a boa administração da justiça pelo que a sua inobservância determina a violação dos direitos de defesa e de um julgamento justo e equitativo. A constituição no seu artigo 174.º n.º 2 impõe aos Tribunais o dever de assegurar a defesa do princípio contraditório. Assim, a falta de notificação da Recorrente, ofendeu os seus direitos ao contraditório, à sua mais ampla defesa e a um julgamento justo e equitativo e (n.º 6 do artigo 67.º conjugado com o n.º 4 do artigo 29.º e artigo 72.º todos da Constituição).
Consequentemente, é inconstitucional o agravamento da pena da Recorrente feita pelo Venerando Tribunal Supremo, mantendo-se válida a pena aplicada pela 1.ª instância, sem prejuízo do perdão previsto na Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto - Lei da Amnistia.
Da supra mencionada declaração de inconstitucionalidade, como previsto no n.º 3 do artigo 663.º do CPP, beneficiam os demais co-Réus, cuja pena fora igualmente agravada.
CONCLUINDO:
É entendimento do Tribunal Constitucional que:
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas (Código das Custas Judiciais e artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 10 de Novembro de 2017.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Rui Constantino da Cruz Ferreira (Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Luzia Bebiana de Almeida Sebastião
Dra. Maria da Imaculada Lourenço C. Melo
Dr. Onofre Martins dos Santos (Relator)
Dr. Raul Carlos Vasques Araújo
Dr. Simão de Sousa Victor (Declarou-se impedido)
Dra. Teresinha Lopes