ACÓRDÃO N.º 467/2017
PROCESSO N.º 541-B/2017
(Processo de Fiscalização Abstracta Sucessiva)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
A Ordem dos Advogados de Angola (doravante OAA), com a legitimidade que lhe é conferida pela alínea f) do n.º 2 do artigo 230.º da Constituição da República de Angola (CRA), no artigo 18.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), e na alínea f) do artigo 27.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), apresentou ao Tribunal Constitucional um pedido de apreciação da constitucionalidade do artigo 3.º; alínea b) do n.º1 do artigo 4.º; n.º5 do artigo 7.º; n.º 4 do artigo 8º; artigo 12.º; n.º 2 do artigo 11.º; artigos 13.º; 15.º; 20.º; 26.º o 30.º; 32.º o 38.º; n.º 3 do artigo 39.º; artigos 40.º e 42.º todos da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal, tendo aduzido os seguintes fundamentos:
A) Quanto às obrigações internacionais do Estado Angolano:
B) Quanto ao modelo Processual Penal da Constituição Angolana:
C) Quanto às inconstitucionalidades:
Termina pedindo a este Tribunal que verifique a conformidade das normas da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, com as normas constitucionais; que, em consequência, essas inconformidades ou inconstitucionalidades sejam formalmente declaradas e dessa declaração se retirem as consequências e efeitos estabelecidos no artigo 231.º da Constituição da República de Angola.
Notificado o autor do diploma para se pronunciar sobre o pedido (fls. 17), veio o Presidente da Assembleia Nacional alegar, em resumo, o seguinte:
28. Quanto às normas inseridas no grupo da alínea a), não há dúvidas da sua conformidade.
29. No que diz respeito às normas que se agrupam nas alíneas b), c) e d), atentos ao preceito constitucional que resulta da alínea f) do artigo 186.º, conjugado com as demais normas das garantias processuais constantes da Constituição, deve considerar-se que nenhuma das normas arguidas é inconstitucional.
30. O preceito constitucional em análise utiliza a expressão “fiscalização”. Só se pode fiscalizar algo que já aconteceu. Assim, o juiz “na instrução” deve intervir a posterior para fiscalizar, o que é um acto que consiste em averiguar da conformidade, controlar ou conferir se determinada actividade está de acordo com os parâmetros de admissibilidade procedimental, legal e, em última instância – se bem que a mais garantística e de efeito mais intenso – o quid (o acto, a medida decretada pelo Ministério Público) processual em causa.
31. Na ponderação dos valores em causa no processo penal, e atentos à marcha do processo, importa equilibrar, por um lado, as necessidades de legalidade que o Ministério Público persegue com, por outro lado, direitos e garantias fundamentais dos arguidos.
32. Entende-se, assim, que as normas citadas estão conformes com a Constituição, quando interpretadas como medidas que cabe ao Ministério Público praticar durante a fase de instrução e, contrariamente, não devendo serem interpretadas no sentido de impor medidas aos arguidos com efeitos de caso julgado ou mesmo com efeitos imediatos sem a intervenção do juiz, caso este seja solicitado pelo arguido ou seu representante legal, o advogado.
Termina pedindo ao Tribunal que considere a não desconformidade das normas da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, com as normas e princípios constitucionais.
O processo foi à vista do Ministério Publico.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora, apreciar, para decidir.
II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
Nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 180.º (competências do Tribunal Constitucional) e do n.º 1 do artigo 230.º da CRA (Fiscalização da Constitucionalidade), “o Tribunal Constitucional aprecia e declara com força obrigatória geral a inconstitucionalidade de qualquer norma e demais actos do Estado”.
Por sua vez, a Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, dispõe na alínea a) do seu artigo 16.º (competências do Tribunal Constitucional, com a redacção dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 24/10, de 3 de Dezembro) que compete ao Tribunal Constitucional “apreciar a constitucionalidade das leis, decretos presidenciais, das resoluções, dos tratados, das convenções, acordos internacionais ratificados, e de quaisquer normas, nos termos previstos na alínea a) do n.º 2 do artigo 180.º da CRA”.
O diploma cuja constitucionalidade se requer a apreciação tem a forma de lei, publicado na I.ª Série do Diário da República n.º 130, de 18 de Setembro de 2015, ao abrigo do disposto na alínea b) do artigo 161.º; da alínea c) do artigo 164.º e da alínea d) do n.º 2 do artigo 166.º, todos da CRA, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar a sua conformidade com a Constituição.
III. LEGITIMIDADE
Ao abrigo do n.º 2 do artigo 230.º da CRA, conjugado com a alínea d) do artigo 27.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional, podem requerer a declaração de inconstitucionalidade abstracta sucessiva as seguintes entidades:
Está, assim, a OAA habilitada, nos termos da Constituição e da lei, a apresentar ao Tribunal Constitucional o pedido de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade do presente diploma.
IV. OBJECTO DO RECURSO
Conforme o pedido formulado pela Requerente, apreciará este Tribunal se:
V. APRECIANDO
À partida importa esclarecer que está fora do âmbito da apreciação do presente Acórdão a questão da direcção da instrução preparatória pois a CRA na aliena f) do seu artigo 186.º atribui tal competência ao Ministério Público.
Nessa medida está afastada liminarmente a hipótese da criação em Angola da figura de juízes de instrução e de tribunais de instrução criminal.
A questão de fundo colocada pela Requerente e que adiante se apreciará resume-se a saber se no quadro da Constituição de 2010 a competência para ordenar prisões durante a instrução preparatória é do Ministério Público, como ora sucede, ou deve ser de um juiz.
Quanto à alegada violação do n.º 3 artigo 9.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos fundamenta a Requerente que a formulação adoptada no artigo 3.º da Lei n.º 25/15 viola as obrigações internacionais do Estado Angolano, nomeadamente as previstas no n.º 3 do artigo 9.º do PIDCP, que prevê que o detido tem de ser apresentado diante do juiz ou outro funcionário autorizado por lei a exercer o poder judicial.
Para compreensão da questão suscitada pela Requerente, importa analisar o que vem disposto no n.º 3 do artigo 9.º do PIDCP, que dispõe que “qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infracção penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade…”
Se nos ativermos ao conteúdo do disposto na norma supra citada, depreende-se que o legislador internacional não pretendeu atribuir a competência exclusiva ao Juiz para a audição do arguido. Só assim se justifica a referência na norma a “outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais”, isto é, a exigência feita é unicamente de que tais actos sejam praticados por autoridades judiciais.
Neste sentido, o legislador deixou ao critério de cada Estado membro a prerrogativa de definir internamente, para além do juiz, quais as outras autoridades que deverão exercer funções judiciais e praticar as competências e os actos previstos no n.º 3 do artigo 9.º em referência.
O Estado angolano, no cumprimento das suas obrigações internacionais e em respeito ao preceituado no n.º 3 do artigo 9.º do PIDCP, determinou, na sua Constituição, quais são os órgãos habilitados a exercer as funções judiciais. Neste sentido definiu no Capitulo IV, relativo ao “Poder Judicial”, várias secções dentre as quais a Secção III, referente ao Ministério Público, enquanto autoridade judiciária com competência para promover o processo penal e a exercer a acção penal, nos termos da lei, lhe confere designadamente o poder de “dirigir a fase preparatória dos processos penais, sem prejuízo da fiscalização das garantias fundamentais dos cidadãos, por Magistrado Judicial, nos termos da lei”, conforme o previsto na alínea f) do artigo 186.º da CRA.
É entendimento deste Tribunal que a formulação adoptada no artigo 3.º da Lei n.º 25/15 não viola as obrigações internacionais do Estado Angolano, nomeadamente as previstas no n.º 3 do artigo 9.º do PIDCP.
A Requerente propõe ainda a declaração da inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 11.º da Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal, sustentando para o efeito que o facto de o magistrado do Ministério Público poder proibir a comunicação do arguido com “certas pessoas”, é passível de provocar a extensão da proibição ao contacto do arguido com o seu Advogado.
Não se retira deste texto legal, qualquer prerrogativa do Ministério Público de impedir o contacto entre o arguido e o seu advogado, seja antes ou depois do primeiro interrogatório. O mandatário legal é, precisamente, a única pessoa com quem é permitido o contacto antes do primeiro interrogatório, o momento mais delicado da fase da instrução preparatória.
O que o legislador pretendeu acautelar com aquela expressão “certas pessoas” é evitar o contacto com as pessoas que possam influir negativamente na instrução do processo.
A interpretação que a Requerente receia que possa vir a ser feita, não é sequer de admitir em face das disposições imperativas constantes das alíneas d), e), e f) do artigo 63.º da CRA que garantem a relação das pessoas privadas de liberdade com o seu advogado.
Arguiu, ainda a Requerente a inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 36.º e n.º 3 do artigo 39.º em virtude da alínea b) do artigo 61.º da CRA ter previsto a possibilidade de serem insusceptíveis de liberdade provisória outros crimes, para além dos crimes de genocídio e crimes contra a humanidade.
Também aqui foi uma questão de opção legislativa do legislador constituinte e tal deveu-se ao facto do fenómeno criminal ser dinâmico, não se compadecendo com a complexidade exigida para uma revisão constitucional.
Cabe, assim ao legislador ordinário, diante da ocorrência de novos fenómenos criminais, cuja gravidade se possam assemelhar aos crimes de genocídio e contra a humanidade, inclui-los nesse leque de crimes. Foi o que entendeu fazer o legislador com a inserção dos crimes de terrorismo na Lei das Medidas Cautelares.
Não pode vingar a pretensão da Requerente, além do acima dito, pelo facto da própria Constituição na alínea b) do seu artigo 61.º atribuir ao legislador ordinário competência para qualificar como insusceptíveis de liberdade provisória outros tipos legais de crimes, além do genocídio e dos crimes contra a humanidade. E foi o que este fez.
Face aos argumentos supra referenciados, conclui este Tribunal que as normas, cuja verificação da conformidade se suscitou, não violam o disposto na CRA.
À primeira vista pode parecer que o legislador constituinte remete para o legislador ordinário a definição de quem é a entidade competente, referida na alínea h) do artigo 63.º da CRA, a quem atribuiu a competência para confirmar ou não a prisão e que, por esse facto, não a concedeu, de modo expresso e inequívoco, ao Magistrado Judicial.
Não pode o Tribunal Constitucional deixar de reafirmar a competência do Ministério Público para promover o processo penal e exercer a acção penal, alínea c) do artigo 186.º da CRA. Promover significa, propor, proceder, indiciar, acusar e intervir em defesa da comunidade. Já o exercício da acção penal tem, na sua essência, a direcção da instrução preparatória.
A Constituição de 2010 trouxe não só uma extensa e significativa carta de direitos fundamentais em geral e, especificamente de direitos, liberdades e garantias fundamentais, como consagrou, de forma mais clara e expressa, as garantias dos arguidos e dos presos. Essa mudança permitiu a revogação das Leis n.º 4-D/80, 18-A/92 e das normas do Código do Processo Penal de 1929 e legislação avulsa, relativas a: detenção, medidas de coacção pessoal, medidas de garantia patrimonial e imunidades. Em substituição entrou em vigor a Lei n.º 25/15, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal, que voltou a atribuir ao Ministério Público poderes para fazer o primeiro interrogatório do arguido detido, conforme se lê na alínea a) do n.º1 do artigo 4.º, no n.º1 do artigo 12.º e, por interpretação da 2.ª parte do n.º 2 do artigo 13.º, validar a detenção, aplicar ao detido medidas restritivas da liberdade (prisão preventiva ou outra, conforme o caso, n.º1 do artigo 15.º) e restituir o detido à liberdade, caso considere não estarem reunidos os pressupostos para a detenção, alínea b) do artigo 15.º Contudo, no espírito da Constituição a função de prender ou soltar, não pode ser de quem é parte no processo. Daqui a necessidade de um juiz de garantias, tal como previsto na alínea f) do artigo 186.º da CRA.
A justificação dessa necessidade decorre da conjugação dos artigos 2.º e 186.º, da natureza do sistema/modelo processual penal adoptado no n.º 2 do artigo 174.º todos da CRA e ainda da verificação, da eficácia ou ineficácia do sistema constitucional de garantias da CRA, relativamente às convenções internacionais de que Angola é parte.
No novo quadro constitucional de 2010, o legislador constituinte introduziu normas que permitem “abandonar” ou afastar as características do modelo processual penal do tipo inquisitório, tendo optado pelo modelo processual penal de matriz acusatória, interpretação que decorre da leitura das normas dos artigos 174.º e 186.º da CRA, como acima referidos.
Com efeito, estabelece o n.º 2 do artigo 174.º que, “no exercício da função jurisdicional, compete aos tribunais dirimir conflitos de interesses públicos ou privados, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, bem como os princípios do acusatório e do contraditório e reprimir as violações da legalidade democrática”. Por sua vez, na alínea f) do artigo 186.º, o Ministério Público recebe competência para “dirigir a fase preparatória dos processos penais, sem prejuízo da fiscalização das garantias fundamentais dos cidadãos por Magistrados Judicias, nos termos da lei”. Da interpretação conjugada dessas normas constitucionais, pode concluir-se que o legislador optou por um sistema processual penal de cariz acusatória.
Na nova matriz constitucional, o legislador estabeleceu uma divisão funcional clara e equilibrada dos poderes do Ministério Público e do Juiz. Ou seja, ao Magistrado do Ministério Público atribuiu a função de dirigir a instrução preparatória do processo e ao Magistrado Judicial, no exercício da sua função jurisdicional, a tarefa não só de defender os direitos nas fases subsequentes mas também a de assegurar as liberdades dos cidadãos na fase preparatória do processo. Ao afirmar-se que o processo penal não é um processo de partes, ou o é apenas em sentido formal (Grandão Ramos, As Garantias do Arguido e a Lei das Medidas Cautelares, in Juris Penal e Processo Penal V. I, FDUCA, p. 139) quer-se dizer que, na busca da verdade material, o Ministério Público não procura apenas provas para a condenação do arguido, pois pode também procurar meios para o absolver. Nestes termos a sua função, como acima referido, tem natureza objectiva (de defesa da legalidade) e, entende-se ser esta a essência do acusatório, expressa pelo legislador constitucional de 2010, já que é ela que, do nosso ponto de vista, melhor se “harmoniza” com o princípio democrático expresso no artigo 2.º da CRA.
Pelas razões expostas, considera-se que o legislador da Lei n.º 25/15, ao atribuir ao Ministério Público poderes para proceder ao primeiro interrogatório do arguido detido, validar as detenções e aplicar aos detidos medidas restritivas da liberdade contraria os princípios da divisão tripartida de poderes (cfr. o artigo 105.º da CRA) onde se inclui a específica divisão entre a função do Ministério Público no processo penal e a do Juiz (Magistrado Judicial) (cfr. o artigo 186.º e 174.º), bem como o princípio da jurisdição, nos termos definidos no n.º 2 do artigo 174.º da CRA.
Com efeito e, segundo Grandão Ramos, (in Juris, pp. 142,143) “ a jurisdição consiste no poder de julgar, que cabe exclusivamente a um dos três poderes do Estado, o judicial. E os juízes não “julgam” só no julgamento a final, “julgam” em todas as fases do processo. Julgam sempre que tiver de ser decidido um conflito de interesses. Trata-se do poder de compor litígios ou conflitos de interesses, através de decisões susceptíveis de serem impugnadas, mediante recurso para tribunais superiores (meio ordinário de impugnação). O n.º 2 do artigo 174.º da CRA é, a este respeito, inequívoco. Como consequência do princípio da jurisdição, entende a doutrina que os actos jurisdicionais – actos próprios de juiz - praticados por quem o não é e não dispõe, por conseguinte, do poder de julgar, ficam feridos de um vício a que se chama inexistência jurídica (veja-se, no direito português FERNANDO GONÇALVES e MANUEL JOÃO ALVES, in A Prisão Preventiva e as Restantes Medidas de Coação, 136)”.
Por outro lado, o artigo 3.º da Lei n.º 25/15 é desconforme com a CRA, porque na alínea h) do artigo 63.º da CRA, o legislador determina que toda a pessoa privada da liberdade tem direito a ser (…) conduzida perante o Magistrado competente para a confirmação ou não da prisão e de ser julgada (…) e, no n.º 2 do artigo 64.º se estabelece que (…) outra entidade pode aplicar medidas restritivas de liberdade (…) nos casos previstos na Constituição e na lei. É verdade que nessas normas o legislador constitucional não clarifica a que entidade se refere, se magistrado judicial ou se, do Ministério Público. Todavia, por interpretação sistemática dessas normas constitucionais (conjugadas com a prevista no artigo 186.º) pode concluir-se que a expressão “entidade competente” quer referir-se ao magistrado judicial (interpretando no mesmo sentido, Prof. Raúl Araújo, in Constituição da República Anotada, p. 377).
É com fundamento nos argumentos supra apresentados e, principalmente, com base nas novas exigências processuais, democráticas e constitucionais, que se entende que o poder de decidir sobre a aplicação de medidas de restrição da liberdade não pode ser entregue ao Magistrado do Ministério Público (órgão vocacionado para o controlo da legalidade). Esta competência pertence ao Magistrado Judicial (órgão naturalmente independente e imparcial) por imperativo constitucional, resultante não só da norma da alínea f) do artigo 186.º mas por interpretação doutras normas constitucionais, nomeadamente as previstas no n.º 2 do artigo 34.º (que garante a todos os cidadãos a intervenção de autoridade judicial ante a ingerência em certos direitos fundamentais por parte de autoridades públicas, como por exemplo, o das correspondências e comunicações) e no n.º 2 do artigo 194.º. Dessa demonstração conclui-se, efectivamente, que o legislador constitucional pretendeu consagrar no ordenamento jurídico angolano uma entidade que pudesse garantir as liberdades ou assegurar as garantias constitucionais dos cidadãos. É a entidade com esta natureza que, na dogmática processual penal se atribui o nome de juiz das liberdades ou juiz das garantias.
De resto, não se consegue muito bem compreender, em termos de dogmática processual penal, que o primeiro interrogatório do arguido detido seja feito pelo Ministério Público, como estabelece o artigo 12.º da Lei n.º 25/15. Este interrogatório tem como finalidade legal a “defesa” da pessoa a quem se está a imputar a prática de um crime. Será compreensível que essa entidade seja aquela que depois o vai acusar? É que a autoridade que interroga tem de decidir (no sentido de julgar) no pré-processo se “ a suspeita, primeiro de que o crime existe e de que há razões para lhe ser imputado (questão de “culpabilidade”) têm suficiente fundamento (tão só que seja face aos indícios) para que ela assuma a posição, estatuto e qualidade de arguido (sujeito processual) e, ainda a ser assim que se verificam, no caso concreto, os pressupostos de aplicação de algumas das medidas de coacção previstas na lei, nomeadamente, se há perigo de fuga, de perturbação da instrução do processo, de continuação da actividade criminosa ou de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas… quem interroga o arguido fá-lo para decidir (julgar) se a detenção tem fundamento legal e estão reunidos os pressupostos de aplicação de medidas que poderão importar para o detido uma restrição ou, mesmo, uma privação da sua liberdade e, consequentemente, dos direitos fundamentais que lhe são concedidos e estão garantidos pela Constituição.” (Grandão Ramos, in Juri, pp. 143, 144).
Acresce que, essa mesma entidade, autoridade judiciária, poderá ainda ter de decidir se, se verificam causas de exclusão da responsabilidade criminal do arguido e, como este é um sujeito processual, tem o direito de autonomamente participar da construção da verdade material, negando os factos, contando a sua versão, negando a aplicação de medidas de coacção, para o que deve haver contraditório. É ainda nesta fase, que o defensor do arguido pode arguir nulidades (nº4 artigo 13º da Lei nº 25/15). Pergunta-se, neste sentido se, é o Ministério Público que deve julgar a arguição das nulidades e decidir das respectivas consequências e efeitos?
O direito de defesa exercido nesta fase de instrução preparatória tal como o contraditório, embora se reconheça que deve ainda e apenas ser o possível, conduz a que a autoridade judiciária que pela primeira vez interrogue formalmente o detido, tenha independência e seja dotada de um grau suficiente de imparcialidade de molde a que, face aos indícios, possa julgar os pressupostos de facto e de direito da infracção, autorizar a detenção e decidir se há razões para que se apliquem medidas cautelares e quais.
Ora, o Ministério Público é imprescindível à realização da justiça. Todavia, porque é ele que dirige a fase inicial do processo, ou seja, ele prepara a acusação, organiza as diligências de investigação da instrução que promove ou ordena, a fim de posteriormente poder acusar e, neste sentido, “transforma-se, ele próprio, em parte acusadora (parte em sentido formal) em confronto dialéctico, após a acusação, com o acusado em que o arguido se transforma”. (Grandão Ramos, in Juris, pp. 144, 145).
Em síntese, sempre que há fortes suspeitas de que alguém cometeu um crime e é detido, porque o Ministério Público ou as autoridades da polícia criminal, em caso de urgência ordenam a sua detenção, ocorre ipso facto um conflito de interesses entre, por um lado, o direito à liberdade desse alguém e outros que a Constituição lhe reconheça e, por outro, o direito público do Estado de o deter e contra ele organizar um processo criminal e, nesse contexto aplicar-lhe medidas de coacção de natureza processual. Esse conflito que é de natureza muito relevante só pode ser dirimido por quem tem jurisdição penal e, esse é o Juiz que ali está, na instrução preparatória, para “fiscalizar as garantias fundamentais dos cidadãos”.
Nesta fase do processo (instrução preparatória), a intervenção do magistrado judicial destina-se ao julgamento de incidentes de alienação mental ou ao exercício de funções de garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos detidos, mais concretamente, serem ouvidos pela primeira vez, a violação do sigilo da correspondência e comunicações (n.º 2 do artigo 34.º da CRA) as buscas e apreensões em escritórios de advogados, estações de correios, que são ordenadas pelo juiz (n.º 2 do artigo 194.º da CRA), ou de buscas em órgãos de comunicação social (n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 2/14 de 10 de Fevereiro).
Com esta compreensão fundada na interpretação dos princípios que emanam da Constituição para caracterizar o sistema processual penal angolano, entende o Tribunal Constitucional ser parcialmente inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 3.º da Lei das Medidas Cautelares, na parte em que atribui ao Ministério Público competência para ordenar medidas restritivas da liberdade, a saber, a prisão preventiva e a prisão domiciliária.
As necessidades próprias da dinâmica e da celeridade da instrução preparatória justificam que as demais medidas de coacção possam continuar a ser aplicadas pelo Ministério Público e ser fiscalizadas posteriormente pelo juiz de garantias como já previsto no n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 25/15.
5. Os efeitos da inconstitucionalidade declarada
A declaração de inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 3.º tem como normal consequência a sua invalidade a partir da entrada em vigor da respectiva Lei (18 de Setembro de 2015), como se prevê no n.º 1 do artigo 231.º da CRA, sem prejuízo da ressalva dos casos julgados (n.º 3 do mesmo artigo).
Tal efeito significa que a partir da presente data de declaração dessa inconstitucionalidade, nenhuma ordem restritiva da liberdade pode ser proferida por qualquer magistrado do Ministério Público.
A ser assim poderiam advir consequências graves para a segurança jurídica e a ordem pública na medida em que não existem de facto, em funções e disponíveis, o número suficiente de magistrados judiciais para poderem, a nível de todo o país, atender as necessidades mínimas de presença de um juiz de garantia junto dos órgãos responsáveis pela instrução preparatória. Seguramente a marcha processual ficaria muito afectada e, quiçá, paralisada.
Dispõe a Constituição no n.º 4 do seu artigo 231.º que em situações como esta, quando está em causa a segurança jurídica e um excepcional interesse público, o Tribunal Constitucional pode limitar os efeitos normais da inconstitucionalidade. Igual disposição consta do n.º 5 do artigo 30.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.
Com este fundamento entende o Tribunal Constitucional, que, transitoriamente e até que as competentes autoridades providenciem, com a urgência requerida, a admissão e colocação de juízes de garantia junto dos órgãos de instrução preparatória, devem os magistrados do Ministério Público continuar a ordenar as supramencionadas medidas restritivas da liberdade que poderão ser, posteriormente, fiscalizadas pelos actuais juízes de turno previstos na lei.
CONCLUINDO
Entende o Tribunal Constitucional que:
DECIDINDO
Nestes termos
Tudo visto e ponderado acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:
Sem custas nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 15 de Novembro de 2017.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Rui Constantino da Cruz Ferreira (Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Guilhermina Prata
Dra. Luzia Bebiana de Almeida Sebastião (Relatora)
Dra. Maria da Imaculada Lourenço C. Melo
Dr. Onofre Martins dos Santos
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Teresinha Lopes