ACÓRDÃO N.º 468/2017
PROCESSO N.º 511-D/16
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Judith Maria Graça da Silva, com os demais dados de identificação nos autos, interpôs, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Julho - Lei do Processo Constitucional – LPC, o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pelo Tribunal Supremo, no âmbito dos Processos n.ºs 1327/13-B e 3283/13-B, pela co-autoria da Recorrente na prática dos crimes de cárcere privado e prática de aborto e pela autoria dos crimes de homicídio voluntário simples e ocultação de cadáver.
A Recorrente alega essencialmente que:
A Recorrente concluiu as suas alegações pedindo que:
Em homenagem aos princípios que norteiam a justiça penal em Angola, mais concretamente, os princípios da legalidade, da igualdade, do acusatório, da presunção de inocência, do inquisitório, da verdade material, do in dubio pro reo e os direitos de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, à identidade, à privacidade e à intimidade, à liberdade física e à segurança pessoal, à proibição de tortura e de tratamento degradante, dos direitos dos detidos e presos, o direito de defesa e do direito a julgamento justo e conforme à lei, ex vi dos artigos 6.º, 23.º, 29.º, 32.º, 36.º, 60.º, 63.º, 67.º, 72.º, 174.º, 175.º 177.º e 179.º todos da CRA, dos artigos 11.º e 12.º da Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro- Lei do Ajustamento das Leis Processuais, Penal e Civil, dos artigos 468.º e 469.º do CPP, do artigo 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro- Estabelece os Princípios e as Regras Gerais de Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum, em conjugação com os n.ºs 2 e 7 do artigo 44.º do CP e, atento à vasta jurisprudência firmada pelo Tribunal Constitucional, por violação dos preceitos acima descritos, seja declarada a inconstitucionalidade das decisões recorridas, mandando-as conformar com a Constituição.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da LPC, norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
A legitimidade para o recurso extraordinário de inconstitucionalidade cabe, no caso de sentença à pessoa que, de harmonia com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, possa dela interpor recurso, nos termos da alínea a), do artigo 50.º da LPC.
Igualmente tem legitimidade para recorrer aquele que, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido, nos termos do nº 1, do artigo 680.º do CPC, aqui aplicado ao processo-crime ex vi do parágrafo único do artigo 1.º do CPP, conjugado com o artigo 2.º da LPC que estabelece a aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Civil aos processos de natureza jurídico-constitucionais.
No caso concreto, a aqui Recorrente, enquanto Ré nos Processos n.ºs 3283-B/13 e 1327-B/13, tendo sido julgada e condenada pelos crimes de homicídio voluntário simples, ocultação de cadáver, aborto e cárcere privado tem certamente legitimidade para recorrer.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem como objecto o Acórdão do Venerando Tribunal Supremo, proferido aos 14 de Janeiro de 2016, que confirmou a decisão do Tribunal a quo, em relação aos Processos n.ºs 3283-B/13 e 1327-B/13, na parte referente à alegada violação dos princípios e direitos constitucionalmente consagrados.
V. APRECIANDO
A Recorrente, não obstante ter invocado que diversos princípios e direitos constitucionais terão sido violados no acórdão recorrido, nas suas alegações procede ao elencamento de inúmeros factos que do seu ponto de vista, não foram correctamente valorados pelo Venerando Tribunal Supremo.
No entanto, importa esclarecer que não é competência do Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre os factos tidos como provados, nem sobre a forma como os mesmos foram valorados pelos Tribunais a quo ou ad quem, limitando-se a sua apreciação à verificação da existência ou não de violação de princípios e direitos constitucionalmente consagrados.
É sobre as alegadas violações aos referidos princípios e direitos que a apreciação do Tribunal Constitucional irá incidir:
A) SOBRE AS VIOLAÇÕES AOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE, IGUALDADE, DOS DIREITOS DOS DETIDOS E PRESOS, EX VI DOS ARTIGOS 6.º, 23.º, 63.º, 175.º E 177.º DA CRA
A Recorrente ao invocar que o Acórdão recorrido violou os princípios constitucionais supra mencionados, não fez uma demonstração clara do que foi violado, indicando que acto ou momento em concreto viola cada um dos princípios listados, limitando-se a fazer uma exposição em bloco.
Ora, sendo função do Tribunal Constitucional, no âmbito da fiscalização concreta, apreciar a existência ou não de violação dos princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola, nas sentenças dos demais tribunais, cabe à Recorrente, concretizar em que medida cada princípio ou direito constitucional foi violado no acórdão de que recorre.
No entanto, não obstante a falta de concretização, vejamos os princípios alegadamente violados em relação ao Processo n.º 1327-B/13, referente aos crimes de homicídio voluntário simples e ocultação de cadáver, uma vez que nesta parte inicial das alegações a Recorrente apenas faz referência a este processo:
A.1 - Violação do princípio da legalidade
Estabelece este princípio que a elaboração de normas incriminadoras é função exclusiva da lei, ou seja, nenhum facto pode ser considerado crime e nenhuma pena pode ser aplicada sem que antes da ocorrência desse facto exista uma lei que a qualifique como crime e lhe imponha a sanção correspondente.
O artigo 5.º do Código Penal, sob a epígrafe “Nullum crimen sine legem”, dispõe que nenhum facto pode julgar-se criminoso, sem que uma lei anterior o qualifique como tal.
Este princípio obriga a uma actuação exclusivamente pautada por critérios de natureza legal.
Ora, no presente recurso o princípio da legalidade foi alegadamente violado quanto aos meios utilizados para a obtenção da prova e a valoração da mesma por parte do Tribunal a quo, pelo que importa uma análise sobre esta matéria.
Sendo objectivo da prova a verificação dos factos e a imputação dos mesmos à Ré, ora Recorrente, comecemos pela distinção entre a prova directa e a prova indirecta. No caso concreto é prova directa o cadáver da vítima e a autópsia realizada, que dá conta da causa da morte da vítima, a saber, morte por hemorragia externa provocada por arma branca, e prova indirecta todos os factos indiciadores ou circunstanciais da ocorrência do crime, que não obstante tratar-se de uma prova em segundo grau, se corroborados por outros meios de prova podem revelar-se bastante esclarecedores.
Assim, como prova indirecta da prática do crime, resultam dos autos fortes indícios que levaram a imputar à Recorrente a prática do crime de homicídio, nos termos como expende a doutrina de Grandão Ramos (in Direito Processual Penal- Noções Fundamentais, Colecção Faculdade de Direito, U.A.N, 3ª Edição, págs.226 e ss.), que nos propomos seguir em traços gerais, como consta infra:
Primeiro, declarou ter sido o crime cometido pelo amante da vítima, em seguida admitiu ser ela, Recorrente, a autora do crime e por último, em audiência de julgamento afirmou ter sido o crime perpetrado por três indivíduos dois de raça negra e um mestiço, sendo um deles agente da DPIC.
Constam dos meios de prova obtidos, a confissão da Recorrente, o registo de chamadas telefónicas e a reconstituição do crime. Terão tais provas violado o princípio da legalidade invocado pela Recorrente?
Vejamos:
Para que a confissão seja considerada, importa que tenha sido obtida em condições de perfeita liberdade, sem que se use de coacção física ou moral, e no presente caso alega a Recorrente ter sido coagida a confessar. Todavia, e ainda que obtida de forma livre e espontânea, a confissão não vale como prova absoluta, e carece sempre de fundamentação e conjugação com outros meios de prova.
A Recorrente proferiu a sua confissão diante de Magistrado do Ministério Público, entidade com competência constitucional para conduzir a fase de instrução preparatória. Se tivesse havido coacção moral ou física, esta coacção deveria ter sido perpetrada pelo ou na presença do referido Magistrado, ou pelo menos teria este magistrado tomado conhecimento disso. No entanto, em momento algum a Recorrente, mencionou tal facto, referindo-o apenas em sede de audiência de julgamento, onde conta mais uma vez, uma nova versão dos factos.
Assim, recorrendo à prova testemunhal, constata este Tribunal que por intermédio das declarações das testemunhas são corroborados não só muitos dos indícios constantes do processo, como inclusive, interligam com a versão confessada pela Recorrente. Mais, por intermédio da prova testemunhal constante dos autos, vê-se que a versão dos factos contada pela Recorrente, em sede de audiência de julgamento, não encontra suporte em qualquer outro dos meios de prova arrolados nos autos.
Em boa verdade, da leitura dos autos é possível perceber que a confissão da Recorrente, surge na sequência de uma tentativa da parte desta, de incriminar um cidadão inocente, tendo apontado casualmente uma viatura de marca Toyota Sequóia, de cor marron (fls.71), conduzida por um cidadão de raça branca, o declarante Fernando Jorge de Sousa Fallé (fls.51), como sendo “Eric”, o suposto amante da vítima e autor do crime, cidadão que após ter sido abordado pelos agentes de investigação criminal e conduzido à DPIC, declarou, em sede de instrução preparatória e na audiência de julgamento, ter sido confrontado pela Recorrente, na sala em que se encontrava na DPIC, acusando-o pela morte da vítima, quando à data dos factos o mesmo sequer se encontrava no País e não conhecia a Recorrente e muito menos a vítima.
A Recorrente ao ver frustrados os seus planos, quando já havia admitido ter sido testemunha ocular da morte da vítima, como tendo sido perpetrada pelo amante desta, supostamente o declarante supracitado, viu-se, claro, pressionada por força das circunstâncias a confessar.
Pelo que este Tribunal considera não ter havido qualquer violação ao princípio da legalidade por valoração da confissão pois a mesma não foi obtida sob coacção física e moral.
Alega a Recorrente que foram juntos aos autos registos de chamadas telefónicas suas à data dos factos que os autos reportam, sem que tal acto fosse autorizado por entidade competente, nos termos do n.º1 do artigo 34.º da CRA, constituindo tal acto uma violação ao princípio da inviolabilidade da correspondência.
No entanto e fazendo uma análise ao Acórdão do Tribunal Supremo, em momento algum, os registos das chamadas telefónicas foram valorados como meios de prova e, em boa verdade, falta nenhuma fazem aos autos, pois se a intenção da dita prova era a de determinar as pessoas com quem a vítima teve contacto na véspera do seu desaparecimento, tais dados foram fornecidos por vários declarantes arrolados nos autos.
Assim, não podem as decisões recorridas ser julgadas inconstitucionais por violação ao princípio da inviolabilidade da correspondência, se tais documentos não estiveram na base da condenação da Recorrente pelo Acórdão recorrido.
Sobre a reconstituição do crime, importa clarificar que este meio de prova não se encontra expressamente previsto no CPP. Logo, não resulta da lei a existência de quaisquer requisitos a observar na sua realização, no entanto, é com frequência usado pelos Serviços de Investigação Criminal como forma de recriar acontecimentos.
Mas não pode o facto de não ter sido previamente ordenado por Magistrado competente servir como fundamento para arguir a nulidade da mesma. Até porque, tendo sido realizada a reconstituição do crime, a mesma apenas foi junta aos autos após despacho do Magistrado do Ministério Público aos 27 de Junho de 2013 (fls. 255 e seguintes).
Pelo que não se verifica, em relação à reconstituição do crime, violação do princípio da legalidade.
A.2 - Violação ao Princípio da Igualdade
Em relação ao princípio da igualdade, não explica a Recorrente, nas suas alegações, em que medida o Acórdão recorrido violou o referido princípio, sendo que não se antevê de que modo possa ter sido a Recorrente prejudicada, privilegiada ou privada de qualquer direito ou isenta de qualquer dever em razão da sua ascendência, sexo, raça, etnia, cor, deficiência, língua, local de nascimento, religião, convicções políticas, ideológicas ou filosóficas, grau de instrução, condição económica ou social ou profissão, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 23.º da CRA.
O que leva este Tribunal a concluir que não houve violação ao princípio da igualdade, uma vez que a Recorrente não conseguiu apresentar dados concretos em que incidiu a alegada violação ao princípio da igualdade.
A.3 - Violação do direito dos detidos e presos
Estabelece o artigo 63.º da CRA quais os direitos que assistem às pessoas privadas de liberdade.
Nas suas alegações, diz a Recorrente ter sido o seu mandatário impedido de acompanhar a diligência de reconstituição do crime, tal efectivamente verificou-se, na parte inicial da diligência. No entanto esqueceu a Recorrente apenas de mencionar que o seu mandatário, tão logo se deparou com tal atropelo à lei, de imediato contestou, usando dos meios de que dispunha no momento, o que o levou a contactar o Sr. Director Nacional da Investigação Criminal que, como diz o mandatário da Recorrente na exposição que juntou aos autos a fls. 271 e seguintes, prontamente foi reposta a legalidade e o mandatário da Recorrente pôde assim acompanhar a diligência que já decorria.
Se tal acto não satisfez plenamente a Recorrente e o seu mandatário, tinha o mesmo a faculdade de imediatamente se opor, e aí solicitar a repetição da parte da reconstituição do crime que não acompanhou.
Não pode a Recorrente alegar violação dos seus direitos enquanto presa, se sobre essa violação, o seu mandatário, e muito bem andou, prontamente agiu de forma a ver reposta a legalidade e assim garantir a protecção dos direitos da sua constituinte.
O que leva este Tribunal a concluir que não se verificou qualquer violação ao princípio constitucional aqui em causa, que justifique a declaração de inconstitucionalidade do acórdão recorrido.
B) SOBRE AS VIOLAÇÕES AOS PRINCÍPIOS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, DO ACESSO AO DIREITO E TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA, DO DIREITO DE DEFESA E O DIREITO A JULGAMENTO JUSTO, CÉLERE E CONFORME À LEI EX VI DOS ARTIGOS 29.º, 67.º Nºs 1, 2 E 3 E 72.º, DA CRA
B.1 - Violação ao princípio da presunção de inocência
Alega a Recorrente ter havido violação ao princípio da presunção de inocência, previsto no n.º 2 do artigo 67.º da CRA, na medida em que as provas arroladas nos autos dizem justamente o contrário do que consta no acórdão recorrido, assim, vejamos:
Importa reter aqui alguns detalhes que podem ser lidos nas declarações da Recorrente, prestadas diante do Magistrado do Ministério Público.
Será dada ênfase às referidas declarações, em detrimento das outras duas anteriormente prestadas, por ser esta a versão que melhor coincide com as diversas declarações prestadas no processo pelos demais declarantes:
Que informado pela Recorrente, que a mala continha carne de animal, destinada à prática de ocultismo e que tinha o mesmo material de ser jogado em local ermo e com bastante capim, conduziu a mesma a um local com tais características, onde a mesma pedindo a ele que se afastasse, pois mais ninguém podia testemunhar o acto, se desfez do conteúdo da mala.
Tendo o crime acontecido dentro de uma habitação, por sinal arrendada pela Recorrente, em que a única testemunha ocular é a Recorrente, é relevante para o julgador poder reconstituir os factos como uma sequência lógica de acontecimentos e, se ficou provado que a Recorrente e a vítima tiveram contacto com terceiros, todos eles devidamente arrolados como declarantes no processo, é mais do que lógico que haja pontos coincidentes entre as declarações de uns e outros.
Ora, o princípio da presunção de inocência, estabelece que “presume-se inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”, resulta daqui que só através da produção de prova inequívoca e infalível é que se pode produzir sentença acusatória contra o arguido, acompanhada de uma determinada sanção penal.
Ou seja, coube ao Ministério Público enquanto entidade acusadora o dever de provar indubitavelmente a prática do crime de que a arguida, ora Recorrente, é acusada, sendo que no caso concreto, todos os indícios constantes dos autos, conjugados com a vasta prova testemunhal, foram considerados pelo julgador, como sendo fortes o bastante para justificar a condenação da Recorrente pelo crime de homicídio voluntário simples e ocultação de cadáver.
A Recorrente alega violação ao princípio da presunção de inocência quanto ao crime de aborto pelo qual foi também condenada, porém nas suas alegações afirma que apenas auxiliou a ofendida Criselda de Melo a pôr fim a uma gravidez indesejada pela própria gestante, porém a confissão de que apenas auxiliou, por si só, afasta a presunção de inocência, uma vez que o auxílio ao aborto também é punido por lei, inclusive o consentimento ou não da mulher grávida, não altera a moldura penal imposta por lei para o crime de aborto, nos termos do artigo 358.º, 1.º parágrafo do CP.
É contraditório a Recorrente considerar-se inocente e ao mesmo tempo admitir que praticou o crime de que vem acusada, ainda que apenas como forma de auxiliar ou atender a um pedido da própria ofendida.
No entanto e não obstante a Recorrente assumir-se como inocente, entende este Tribunal não ter havido qualquer violação ao princípio da presunção de inocência no Acórdão recorrido.
B.2 - Violação aos princípios do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e direito à defesa
Sobre a violação destes princípios na decisão recorrida, alega a Recorrente terem sido os mesmos princípios violados, na medida em que o Tribunal, que deve assegurar essa tutela jurisdicional efectiva, condenou a Recorrente sem provas válidas, prejudicando o seu direito à defesa.
Ora, o acesso ao direito e aos tribunais é um dos princípios do regime geral dos direitos fundamentais, que garante a todos os cidadãos o direito de recorrer aos tribunais, independentemente da sua condição económica, sendo-lhes garantindo o acesso ao patrocínio judiciário por lei.
Este princípio também pressupõe o acesso de todas as partes do processo à informação e consulta jurídica e ao segredo de justiça como forma de garantir o acesso das partes a todos os elementos constantes do processo, ao mesmo tempo que se salvaguarda a intimidade e privacidade dos arguidos, mantendo o processo oculto da opinião pública em geral, permitindo assim uma maior eficácia da investigação criminal e maior imparcialidade no julgamento.
Quanto ao direito à defesa, este surge como corolário ao princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, como forma de garantir ao arguido o direito de audição e ao consequente interrogatório, bem como o direito de ser assistido por advogado ou defensor oficioso.
Dito isto, verifica este Tribunal que a Recorrente em todas as fases do processo, teve acesso à justiça, por intermédio dos seus mandatários.
O único momento em que foi impedido a presença do advogado da Recorrente, aquando da realização do acto de reconstituição do crime, o mesmo advogado rapidamente interveio, recorrendo às instâncias superiores para que fosse reposta a legalidade, e não obstante todo o mediatismo criado à volta do crime que vitimou Bárbara de Sá Nogueira, foi assegurado o respeito pelo segredo de justiça durante a instrução preparatória do processo, não obstante se ter tratado de um acontecimento que chocou a sociedade angolana.
Referiu ainda a Recorrente, nas suas alegações, ter sido apresentada à imprensa, sem o seu consentimento, criando condições para um pré-julgamento da mesma em praça pública, em violação do seu direito à identidade, à privacidade e à intimidade, consagrado no artigo 32.º da CRA, bem como da jurisprudência firmada pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 122/2010.
Ora, analisadas as declarações prestadas pela Recorrente em audiência de julgamento (fls. 565v) a mesma sobre o facto de ter sido conduzida à sala de reuniões com o objectivo de participar do referido encontro com a imprensa, respondeu que manifestou o interesse em falar com o Senhor Amaro Neto, a quem disse que não iria dizer nada porque não iria assumir publicamente o crime, ao que o Senhor Amaro Neto se mostrou aborrecido e pediu a ela que pelo menos entrasse e dissesse que não queria falar, tendo de seguida ela regressado à sala e respondido apenas a algumas perguntas.
Pelas declarações prestadas na audiência de julgamento vemos que a Recorrente em nenhum momento mencionou que não consentia em participar do referido encontro, deixando claro apenas que não iria assumir publicamente, que não iria dizer nada, no entanto a própria conclui dizendo que limitou-se a responder a algumas perguntas, mesmo tendo sido, como a mesma diz, orientada a entrar e a pelo menos dizer que não queria falar.
Assim, não resulta claro para este Tribunal a falta de consentimento da Recorrente, ao contrário do que sucedeu no Acórdão n.º 122/2010, mencionado pela Recorrente, onde os ali Recorrentes apresentaram um requerimento ao Juiz a quo com vista a não captação da imagem deles na sala de audiência, por os mesmos não consentirem, mas foi o requerimento indeferido pelo Juiz a quo.
Ora, se sobre a sua participação na conferência de imprensa, a Recorrente em momento algum manifestou oposição por ter sido fotografada ou filmada, durante a fase de instrução preparatória ou em audiência de julgamento, isso porque das suas declarações resulta que a sua única preocupação era a de não “assumir publicamente” o crime, não entende esse tribunal que tenha havido violação ao artigo 32.º da CRA.
Pelo acima exposto, entende este Tribunal que não se verifica na decisão recorrida qualquer violação ao princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva e do direito de defesa da Recorrente.
B.3- Violação ao direito a julgamento justo, célere e conforme a lei
Alega a Recorrente que o Acórdão recorrido violou o direito a um julgamento justo, célere e conforme à lei, previsto no artigo 72.º da CRA, apesar de não concretizar no articulado 26.º das suas alegações, em que medida foi este princípio violado, limitando-se a remeter para as mesmas razões já citadas anteriormente.
Convém referir, que o direito a julgamento justo é um pressuposto do Estado democrático de direito e uma garantia que pressupõe a existência de uma administração da justiça funcional, imparcial e independente. Este princípio constitucional tem como objectivo assegurar um julgamento justo, cujo processo deve ser equitativo, capaz de garantir a justiça substantiva e uma decisão dentro de um prazo razoável respeitando os procedimentos judiciais, tais como a celeridade e prioridade de modo a obter a tutela efectiva em tempo útil contra ameaças ou violações dos seus direitos.
Um julgamento é considerado justo quando são acautelados e respeitados, pelos tribunais, os princípios da imparcialidade, independência e de equidade no tratamento das partes e seus representantes.
Entende este Tribunal que não resulta dos autos qualquer violação ao direito a julgamento justo, tanto assim é que a Recorrente não obstante ter suscitado a inconstitucionalidade do acórdão recorrido por violação deste princípio, não foi capaz de indicar um momento em que tenha sentido tal direito violado.
Quanto ao julgamento célere, há pois que ter aqui em conta o princípio da razoabilidade, neste caso concreto estão em causa dois processos, sendo que um deles com 27 declarantes, que tendo iniciado no dia 30 de Maio de 2013, com a participação do desaparecimento da vítima, o julgamento iniciou aos 27 de Março de 2014 e findou com o Acórdão condenatório proferido aos 11 de Julho de 2014.
Durante todas as fases do processo foram vários os requerimentos e exposições apresentadas pela defesa e pela acusação.
Este Tribunal entende ser perfeitamente razoável o prazo que decorreu desde a participação do desaparecimento da vítima aos 30 de Maio de 2013 até a leitura do Acórdão condenatório aos 11 de Julho de 2014, tendo em conta a complexidade do processo, sendo de se realçar que a celeridade processual não pode nunca, prejudicar o direito das partes à justa defesa dos seus direitos.
Em relação à conformidade do Acórdão recorrido à lei, por ter sido já abordado a propósito da violação ao princípio da legalidade, limitamo-nos a reforçar que o Acórdão recorrido regeu-se pela legislação penal vigente e não constatou este Tribunal qualquer desconformidade com a Constituição.
Pelo que o Tribunal Constitucional conclui que não há neste processo qualquer inconstitucionalidade por violação ao direito da Recorrente a julgamento justo, célere e conforme à lei.
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado,
Acordam em plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em:
Sem custas (nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 5 de Dezembro de 2017.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dra. Guilhermina Prata (Relatora)
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria da Imaculada Lourenço da C. Melo
Dr. Raul Carlos Vasques Araújo
Dr. Simão de Sousa Victor (declarou-se impedido)
Dra.Teresinha Lopes