ACÓRDÃO N.º 474/2018
PROC. N.º 588-D/2017
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Maria Amengue, melhor identificada nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pelo Tribunal Supremo, datado de 10 de Outubro de 2016, por ter violado alguns princípios constitucionais.
A Recorrente alega em síntese que:
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC).
Assim, o Tribunal Constitucional é competente para conhecer o presente recurso, nos termos da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.
III. LEGITIMIDADE
A Recorrente é Ré no Processo n.º 1708/2011 da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC) que se aplica de modo subsidiário, ao caso sub judice, por previsão do artigo 2.º da referida LPC.
Assim sendo, a Recorrente tem legitimidade para interpor o recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso é o de saber se o Acórdão do Venerando Tribunal Supremo que considerou nulo o contrato de arrendamento celebrado pela Ré, reconhecendo a posse dos ali Recorrentes (Autores) sobre o imóvel em litígio, contraria e viola princípios constitucionais, designadamente, o princípio a um julgamento justo, a obrigação de os Juízes cumprirem a Lei e o princípio do contraditório constante dos artigos 174.º e 177.º, ambos da CRA.
V. APRECIANDO
Antes de mais é mister referir que os fundamentos do recurso devem ser claros e concretos, pois aos Tribunais não incumbe averiguar a intenção dos recorrentes, mas apreciar as questões submetidas ao seu exame.
O âmbito dos recursos se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
Essas conclusões não podem limitar-se a mera repetição formal de argumentos, mas constituir uma resenha clara que proporcione ao Tribunal Superior uma correcta compreensão do objecto dos recursos.
No caso em apreço, a Recorrente invoca, nas suas alegações, que o Venerando Tribunal Supremo ao afastar as normas relativas à manutenção da posse, violou as normas do direito substantivo, na medida em que reside no imóvel há mais de dez anos e é detentora de um contrato de arrendamento que lhe confere uma posse titulada.
Mais alegou que, ao invocar que tem um contrato de arrendamento, possui um título mas não a posse, pelo que sempre estaremos perante um contrato que deve ser analisado no âmbito de uma acção declarativa e não numa acção de restituição de posse ou manutenção de posse.
Afirma, igualmente, não ser parte legítima porque não foi esbulhada, referindo, ainda, que a nulidade do contrato de arrendamento a favor da Ré, aqui Recorrente, não foi decidida, nem sujeita ao princípio do contraditório.
Por tudo o alegado, conclui a Recorrente que o Acórdão do Tribunal Supremo viola o princípio do direito a um julgamento justo, o princípio do contraditório e aplica erradamente normas processuais em manifesta violação do artigo 177.º da CRA.
Passemos, então, à análise das questões colocadas e saber se houve ou não violação de princípios constitucionais.
Para melhor compreensão das questões controvertidas achamos por bem fazer uma resenha dos factos.
A Autora, Maria Imaculada, ora Recorrida, com procuração passada pelo seu marido, intentou uma acção especial de restituição de posse contra a aqui Recorrente, Maria Amengue, alegando que, juntamente com o seu marido Bernardo Armando, ocupam desde 1976 o imóvel sito no bairro da Calomanda, Rua Nova, casa n.º 88, tendo, este último, celebrado um contrato de arrendamento com a Delegação Provincial do Huambo, sobre o referido imóvel.
Entretanto, por circunstâncias diversas, o marido da Autora teve de se ausentar do país em finais de Dezembro de 1989 e deixou o referido imóvel ao cuidado de João de Deus, marido da aqui Recorrente, tendo ficado acordado que este a restituiria logo que o marido da Autora regressasse ao Huambo.
Em 1997, o marido da Autora renovou o contrato de arrendamento e pagava a respectiva renda, sempre na perspectiva de regressarem e o marido da Recorrente cumprir o compromisso de deixar o imóvel.
Porém, em 2005, acabou por falecer e a ora Recorrente, ali Ré, apesar de, por diversas vezes instada a fazê-lo, nunca deixou o imóvel, acabando por, no dia 17 de Novembro de 2006, apresentar um contrato de arrendamento celebrado com a mesma entidade (a Direcção de Habitação do Huambo) em 2002.
A Ré veio defender-se por excepção alegando a ilegitimidade da Autora por não ser casada com o Bernardo Armando e a caducidade porque vive no imóvel há mais de um ano.
Por impugnação refere ter uma posse titulada há mais de um ano, facto que é do conhecimento da Autora, pelo que a acção tem de improceder.
O Tribunal da 1ª Instância veio julgar a acção improcedente e absolveu a Ré do pedido.
A Autora recorreu, alegando a ausência de caducidade, na medida em que a Ré e marido nunca exerceram a posse em nome próprio, mas em nome da Autora e marido e foram diversas vezes interpelados para saírem do imóvel.
Entretanto, o Venerando Tribunal Supremo, com base nos factos provados na audiência de discussão de julgamento, afastou e bem a caducidade, por já ter sido conhecida pelo Tribunal “a quo” e, com base nos factos apurados, reconduziu a relação existente entre o marido da Autora e da Ré, à figura do comodato previsto nos artigos 1129.º e seguintes do Código Civil, passando a transcrever “...por se tratar de um contrato gratuito devendo este último na qualidade de comodatário restituir o imóvel logo que lhe foi exigido nos termos do art.º 1137.º n.º 2 do mesmo diploma legal. Mais refere que, tendo o marido da Ré morrido, deve considerar-se findo o contrato por caducidade, nos termos do art.º1141.º do CC. Por isso, deveria a Ré, de boa fé, restituir o imóvel em causa (...) por força do n.º 2 do art.º 1137.º do CC...”.
De igual modo, concluiu pela nulidade do contrato de arrendamento celebrado entre a Ré e a Direcção de Habitação do Huambo, porque feito ao arrepio dos princípios da boa fé e em desrespeito do disposto no artigo 28.º do Decreto n.º 43525 de 7 de Março de 1961, Lei do Inquilinato.
Também pela nulidade decorrente dos artigos 280.º n.º 1 e 281.º, ambos do Código Civil, porquanto “... com base no princípio geral do direito “prior in tempore, potior in jure (o primeiro no tempo, preferente no direito), ou seja, caso exista controvérsia entre as partes que aleguem iguais direitos sobre a mesma coisa, terá preferência o direito daquele que o adquiriu em primeiro lugar (artigo 407.º do CC).
Concluiu, o Venerando Tribunal Supremo, pela revogação da decisão recorrida, considerando nulo o contrato de arrendamento da Ré e reconhecendo a posse da ali Apelante (Autora) sobre o imóvel.
A Ré, ora Recorrente, discordando desta decisão, interpôs o presente recurso com os fundamentos acima aduzidos.
Porém, não tem qualquer razão.
Vejamos:
A garantia de um julgamento justo é dada, entre outros, pelo direito ao recurso nos termos em que a lei o prevê. Esta garantia do duplo grau de jurisdição representa uma garantia acrescida de um julgamento correcto e justo e também a constatação de que os julgadores não estão livres de cometerem erros judiciários.
Por outro lado, o alegado princípio do julgamento justo prende-se com a omissão de formalidades processuais inerentes ao decurso do julgamento, como, por exemplo, não ter sido analisado um documento junto para prova de determinado facto; não ter sido ouvida uma das partes; não ter sido permitido um protesto para a acta; não ter sido dada a palavra ao advogado para exercer o contraditório ou alegações; não terem sido reduzidos a escritos os depoimentos, quando requerido; serem feitas perguntas capciosas, entre muitas outras. Não, como pretende a Recorrente, com a aplicação do direito substantivo ao caso concreto.
No caso concreto, a interpretação feita pelo Venerando Tribunal Supremo não conduziu a uma decisão injusta. Pelo contrário, acabou por repor a justiça na medida em que não se constatou qualquer vício que deva ser corrigido à luz de um juízo de constitucionalidade.
Com efeito, a acção foi desenhada como de restituição de posse pela Autora, com base na existência de um contrato de arrendamento.
Ora, a este propósito, perfilhamos o entendimento comungado pela generalidade da doutrina de que a posse, como poder de facto sobre a coisa, constitui um direito real embora de natureza provisória.
Em princípio, o uso deste tipo de acções só é facultada ao possuidor em nome próprio e não ao mero detentor.
É que, manifestando-se a posse com a actuação por forma correspondente ao direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251.º do Código Civil) tem como pressupostos o “corpus” e o “animus”, aquele como o poder de facto exercido sobre a coisa e este como o propósito de exercer estavelmente aquele poder em consonância com o correspondente direito real.
Já o mero detentor (ou possuidor precário), embora detendo a coisa, não o faz com “animus possidendi”, ou se limita ao aproveitamento da tolerância do titular do direito ou age como mandatário ou representante, a qualquer título, do possuidor (artigo 1253.º do Código Civil).
O arrendatário é um mero detentor, ponderando a anteriormente referida concepção subjectiva de posse, com exigência, não só de poderes de facto sobre a coisa, mas, também, com o propósito de se comportar como titular do direito (cf., por todos, Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 111, 2.ª edição, nota 6 ao art.º 1251.º).
Essa caracterização como possuidor precário do titular do arrendamento é unânime na jurisprudência e até na doutrina que discute a qualificação da locação como contrato obrigacional ou como de natureza real, a considera “jure constituto” como predominantemente obrigacional (Prof. Henriques Mesquita, “Obrigações Reais e Ónus Reais”, 1990, pág. 177).
O conceito de posse e do facto de a relação locatícia não ter ínsito um dever geral de abstenção (dever esse que apenas recai sobre o locador – artigo 1031.º, alínea b) do Código Civil – resulta inequivocamente que nem o locatário, nem o sublocatário sejam considerados possuidores (cf. Prof. A. Varela, RLJ, 117-338).
E assim também é em relação a qualquer cessionário do local arrendado, como é o caso da Autora, que são sempre meros detentores em nome de outrem.
Porém, a lei concede a utilização dos meios de tutela possessória a quem não é possuidor por falta de “animus possidendi”, a quem é mero detentor, em casos excepcionais, como o locatário, o parceiro pensador, o comodatário e o depositário (cf. artigos 1037.º n.º 2, 1125.º n.º 2, 1133.º e 1188.º n.º 2, todos do Código Civil e P. Lima e A. Varela, ob. Cit., pág. 6 do Vol. III).
Todavia, esse alargamento da tutela possessória a uma situação de mera detenção ou posse precária não significa que esse detentor seja considerado possuidor. No mesmo sentido, e em sede de direito comparado, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, de 15.4.86, no BMJ, 356-293.
Nestes casos, a causa de pedir não é a posse, mas antes a relação jurídica de mera detenção.
Por isso, entendemos que no caso, a Autora deveria ter intentado uma acção de simples apreciação requerendo o reconhecimento do seu contrato de arrendamento e a nulidade do contrato de arrendamento celebrado à posteriori pela Ré sobre o imóvel.
Porém, considerando tudo o exposto e a matéria dada como assente pelo Tribunal da 1.ª Instância, concluímos que o Venerando Tribunal Supremo acabou por encontrar a solução justa, na medida em que, efectivamente, resulta evidente dos autos que a Recorrente, ao não proceder à entrega do imóvel e ao fazer um outro contrato de arrendamento sobre o mesmo, agiu com manifesta má fé, por saber que ocupou o imóvel porque o marido da autora permitiu que o seu marido, já falecido, o fizesse, enquanto não regressasse ao Huambo, tendo sido sempre este a pagar as rendas ao senhorio, no caso, a Direcção de Habitação daquela Província.
Daí o Venerando Tribunal Supremo ter integrado a relação entre a Autora e a Ré na figura do comodato, uma vez que se tratava de um contrato gratuito.
Assim, contrariamente ao alegado pela aqui Recorrente, não existe qualquer violação do princípio do julgamento justo, por tudo o que expusemos anteriormente, e, de igual modo, porque se fez a interpretação correcta e se encontrou a solução capaz de repor essa justiça que foi negada pelo Tribunal da 1.ª Instância.
Alegou a Recorrente que o Tribunal recorrido ao ter decidido sobre a anulação do contrato, violou a regra do contraditório, constante do artigo 3.º do Código do Processo Civil e do n.º 2 do artigo 174.º da CRA.
Não assiste razão à Recorrente na medida em que é a própria Ré que, em 2006, vem juntar esse contrato, até então desconhecido pela Autora.
Logo, trata-se de um facto que consta do processo e a Ré pronunciou-se sobre a sua existência, tendo o Venerando Tribunal Supremo aplicado apenas o direito substantivo de acordo com a interpretação que lhe pareceu mais justa e com a qual concordamos, acolhendo os argumentos fácticos e legais expendidos.
Com efeito, a nulidade do contrato é de conhecimento oficioso (artigo 286.º do Cód. Civil) e implica a não produção, ab initio, dos efeitos que lhe corresponderiam (cfr. artigo 289.º do Código Civil).
Assim, por se tratar de contrato nulo, o alegado contrato não produz efeitos. E, não os produzindo, não pode, fundando-se nele, a Recorrente obter quaisquer efeitos que, com ele, validamente celebrado, obteria ou seja a defesa da coisa como titular do arrendamento.
Deste modo, o Tribunal Constitucional conclui pela inexistência de qualquer violação de princípios constitucionais, mormente o princípio a um julgamento justo e o princípio do contraditório.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:
Custas pela Recorrente nos termos do regime geral de custas (Código das Custas Judiciais e artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 21 de Fevereiro de 2018.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Imaculada Lourenço C. Melo
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dr. Raul Carlos Vasques Araújo
Dr. Simão de Sousa Victor (Relator)
Dra. Teresinha Lopes