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ACÓRDÃO Nº483/2018

                           

PROCESSO N.º 606-B/2017

(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO 

Domingos Feijó Sobrinho e Francisca Antónia da Silva Feijó, Recorrentes vieram nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional – LPC, interpor o presente Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, contra o Acórdão do Processo n.º 1773/2011, da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo que confirmou a decisão proferida em 1.ª instância pela – 2.ª Secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda.

Os Recorrentes apresentaram neste Tribunal as alegações para sustentarem o pedido e, em síntese, asseveraram o seguinte:

  1. Há cerca de 30 anos, a ex. Secretaria de Estado da Habitação atribuiu aos Recorrentes uma moradia sita na Maianga, tendo celebrado com essa entidade um Contrato de Arrendamento, no dia 12 de Fevereiro de 1985, onde residem actualmente (Cfr. a fls. 14 dos autos).
  2. Em troca os Recorrentes entregaram o apartamento situado no prédio J. Pimenta – 7.º andar, devido ao estado de saúde do Recorrente Domingos Feijó Sobrinho, que não lhe permitia todos os dias subir sete andares.
  3. Os Recorrentes realizaram obras de reabilitação na moradia, porque se encontrava em estado de degradação, estabeleceram o acordo do então senhorio – Secretaria de Estado da Habitação, tendo aí investido o valor equivalente a USD 50.000,00.
  4. O imóvel em litígio foi objecto de confisco, aos 7 de Maio de 1988, e transferido para esfera patrimonial do Ministério da Agricultura (Cfr. a fls. 15 dos autos).
  5. Em 1990, a Secretaria de Estado da Habitação comunicou aos Recorrentes que a moradia em causa era propriedade privada, e foi devolvida ao proprietário.
  6. Em Janeiro de 1991, a Secretaria de Estado da Habitação aconselhou-os a celebrar um contrato de Arrendamento com o Sr. Bernardino do Coito (Cfr. a fls. 13 dos autos).
  7. A partir de 1994, o senhorio deixou de receber as rendas e, no dia 2 de Dezembro de 1999, propôs, por escrito, a compra do imóvel aos Recorrentes, que manifestaram o interesse em comprar atendendo ao facto de terem gasto avultados valores com a sua reabilitação.
  8. Decorrido algum tempo, foram surpreendidos com a informação de que a moradia em causa havia sido alienada a terceiros – Lukeni Oliveira Nunes da Costa e esposa, alegadamente a um parente do Sr. António da Silva Diogo – mandatário do proprietário (Cfr. a fls. 9 a 11 dos autos).
  9. A venda ocorreu sem observância do direito de preferência e o novo proprietário exigiu que os Recorrentes abandonassem o imóvel.
  10. Por essa razão, intentaram no Tribunal Provincial de Luanda uma acção de anulação do contrato de compra e venda do imóvel, nos termos da qual foi julgada improcedente com fundamento que o regime de arrendamento para habitação não existe direito de preferência do arrendatário, a menos que as partes celebrem um pacto de preferência (Cfr. a fls. 111 a 120 dos autos).
  11. Alegam os Recorrentes que no momento em que o Tribunal Supremo proferiu o seu Acórdão, estava em vigor a Lei n.º 26/15, de 23 de Outubro, que na alínea a) do n.º 1 do artigo 58.º que consagra o direito de preferência do arrendatário à semelhança da legislação sobre a venda do património habitacional do Estado.
  12. Refere ainda que o Tribunal Supremo fez uma interpretação à letra da Lei do Inquilinato, que face à mesma não consagra o direito de preferência para o inquilino, no entanto poderia ter lançado mão ao mecanismo de integração da lacuna desta lei estabelecido no artigo 10.º do CC.

Os Recorrentes consideram que o Acórdão do Processo n.º 1773/2011, além de violar o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à habitação e à qualidade de vida previsto nos artigos 2.º e 85.º da Constituição da República de Angola – CRA, violou, igualmente, as disposições legais que estabelecem o direito de preferência, previsto nos artigos 416.º, 418.º, 1117.º, 1409.º, 1410.º e 2130.º do CC, a Lei sobre a venda do Património Habitacional do Estado – Lei n.º 19/91, de 25 de Maio, e a Lei n.º 26/15, bem como, os artigos 515.º e 668.º n.º 1 alíneas b), c) e d) do Código de Processo Civil (CPC).

Concluíram, requerendo a procedência do recurso, e por via dele, ser revogado o Acórdão do Tribunal Supremo que confirmou a decisão proferida pelo Tribunal a quo, no âmbito da acção de nulidade de contrato de compra e venda do imóvel onde residem actualmente.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Plenário do Tribunal Constitucional é o órgão competente para apreciar e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 24/10, de 03 de Dezembro, do artigo 53.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho e da alínea b) do artigo 23.º do Regulamento Geral do Tribunal Constitucional.

III. LEGITIMIDADE

Tem legitimidade activa quem possui interesse directo em demandar e legitimidade passiva quem tem interesse directo em responder à demanda.

Os ora Recorrentes têm legitimidade activa nos termos da alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – LPC, porquanto, viu o seu recurso indeferido, in totum

IV. OBJECTO DO RECURSO 

O objecto do presente recurso é o Acórdão do processo n.º 1773/2011, da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo que confirmou a decisão proferida em 1.ª instância pela 2.ª Secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda.  

V. APRECIANDO 

Em sede do recurso extraordinário de inconstitucionalidade os Recorrentes consideram que o Acórdão do Venerando Tribunal Supremo objecto do presente recurso e com interesse para a questão de fundo violou o direito à habitação e qualidade de vida.

Pelo que essa questão, necessariamente nos conduz para fundamentação legal do Acórdão, isto é, a existência ou não do direito de preferência na compra do imóvel por parte dos Recorrentes.

O exercício do direito de preferência consiste no poder que tem o titular do direito de sobrepor o seu direito ao de outrem. A preferência pressupõe a concorrência de direitos opostos sobre a mesma coisa, sendo o do preferente superior, este direito emerge de duas fontes, uma convencional e outra legal.

Será ainda de considerar que os autos contêm elementos para aferirmos que há preferência convencional ou legal?

Ora, quer em sede da primeira instância, quer do Tribunal Supremo em função dos factos e da prova produzida, não se logrou concluir pela existência de um pacto de preferência, nem de obrigação legal que legitimasse a pretensão dos Recorrentes, uma vez que a acção nestas duas instâncias foi julgada à luz da antiga Lei do Inquilinato, lei esta aplicável à data dos factos, que não tutelava o direito de preferência no caso do arrendamento para fins habitacionais, pelo que, à partida, a decisão recorrida não está, assim, ferida de ilegalidade, considerados os pressupostos em que assenta o juízo decisório do Tribunal Supremo.  

Com efeito, numa subsunção directa dos factos à norma, o argumento de violação de algum direito legal de preferência em virtude da inexistência de amparo legal fica afastado.

Alegam ainda os Recorrentes que, estando em vigor, à data da prolação do Acórdão do Venerando Tribunal Supremo, a Lei n.º 26/15 de 23 de Outubro – Lei do Arrendamento Urbano, conjugada com os artigos 414.º e 416.º do CC, deveria ser aplicada ao caso sub judice. Ora, no entender deste Tribunal andou bem o Venerando Tribunal Supremo ao não aplicar este diploma, sob pena de violação do princípio sobre a aplicação da lei no tempo que proíbe a retroatividade da lei, tempus Regis factum.

Na perspectiva constitucional, da natureza tendencial do direito à habitação como direito social decorre um amplo espaço de liberdade de conformação do legislador, mas é de sublinhar que a plena efectividade deste direito está dependente da reserva do possível, em termos políticos, económicos e sociais.

Assim, o direito à habitação à semelhança de outros direitos fundamentais sociais, tem uma dupla limitação dirigida não apenas ao Estado como aos particulares, sendo uma positiva e outra negativa.

Relativamente à negativa interdita não só ao Estado como aos particulares de adoptarem comportamentos que perturbem o gozo e fruição da habitação de modo injustificado, e é exactamente esta a ratio na perspectiva de manter o arrendamento e não anular o contrato de compra e venda.  

Portanto, é dever do Estado proteger o direito do cidadão à habitação, assim como criar políticas de fomento à habitação.

É evidente que, como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, Volume I, pág. 1327o direito à habitação não se confunde com o direito de propriedade mesmo na sua dimensão positiva enquanto direito à aquisição de propriedade. O direito à habitação, por si só, “ não se esgota ou, ao menos, não aponta, ainda que de modo primordial ou a título principal, para o direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão.

Daí que o direito à habitação, constitucionalmente consagrado, visa assegurar a todos o direito a habitar, e não o direito de não habitar, sendo que o direito a habitar decorre quer pela via do direito à propriedade quer pelo direito ao arrendamento.

Aparentemente, surge o conflito entre o direito de habitação do inquilino e o direito de propriedade do senhorio, todavia, atendendo à necessidade primária de habitação do inquilino, o facto de ser uma pessoa idosa, e que já habita há mais de 30 anos na casa. Neste caso o direito de habitação apresenta-se tendencialmente mais forte face à autonomia privada do proprietário.

Certamente, este Tribunal admite a constitucionalidade da generalidade das limitações ao direito do proprietário-senhorio previstas na lei, sendo limitada pela norma que impede o senhorio de denunciar o contrato de arrendamento urbano, uma vez que os Recorrentes habitam há mais de 30 anos no imóvel, por razões de segurança jurídica, justiça social e solidariedade, e quer, ainda, pelos limites ao direito de propriedade privada.

Atendendo à sua sensibilidade e aos valores e direitos envolventes à luz quer da tutela constitucional de pessoas idosas e o direito à habitação e a qualidade de vida, artigos 82.º e 85.º da CRA, a decisão nunca poderia ter sido pela improcedência do pedido formulado pelos Recorrentes, tanto mais que, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 514.º, do Código de Processo Civil, “não carecem de alegação os factos de que o Tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções”.

A protecção das pessoas de terceira idade constitui uma obrigação do Estado, competindo às respectivas famílias e às instituições vocacionadas para o seu acolhimento e assistência desenvolverem todas as acções adequadas e tendentes a proporcionarem-lhes uma melhor qualidade de vida, optimizando condições no sentido da possibilidade da sua afirmação pessoal e social.

Significa que, no âmbito do direito fundamental à habitação os senhorios estão igualmente obrigados a dar cumprimento àquele desiderato constitucional, evitando perturbações aos inquilinos, que cumpram as respectivas obrigações, assumindo uma posição de protecção sem prejuízo do seu direito fundamental à propriedade privada.  

Deste modo, a transmissão do direito de propriedade para um terceiro não implica, assim, qualquer alteração ao contrato de arrendamento, que se transmite nos seus termos e fundamentos para o novo proprietário (compreensão que se retira do artigo 1057.º do CC), ficando salvaguardada uma das dimensões do direito à habitação dos Recorrentes: a de não ser arbitrariamente privados de habitação, o que igualmente implica para o proprietário do imóvel o dever de se abster de impedir o exercício deste direito, que deverá ficar salvaguardado com a manutenção do contrato de arrendamento.

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado,

Acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:

Custas nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 8 de Maio de 2018.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)

Dr. Américo Maria de Morais Garcia

Dr. Carlos Magalhães

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dr. Raul Carlos Vasques Araújo (Relator) 

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Teresinha Lopes