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ACÓRDÃO Nº 485/2018

PROCESSO N.º 580-D/2017

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional: 

I – RELATÓRIO 

JOÃO MACHADO PAIS DA CUNHA, melhor identificado nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão de 3 de Maio de 2017, da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do processo n.º 56/2017, que negou provimento ao seu pedido de providência de habeas corpus.

Inconformado com o referido Acórdão, o Recorrente apresentou a este Tribunal as seguintes alegações:

  1. Não é mais a lei própria ou especial que determina a extinção da garantia de habeas corpus ou as suas condições.
  2. A Constituição, por si só, determina a condição de providência de habeas corpus, que é a ilegalidade da prisão ou da detenção de qualquer cidadão.
  3. À lei cabe apenas a regulação do processo, isto é, dos actos e formalidades a obedecer para a concretização da garantia de habeas corpus.
  4. As normas infraconstitucionais que limitem esta condição, nomeadamente o § único do artigo 315.º do CPP, lido ou concebido como taxativo (como o fez o Digno Magistrado do Ministério Público junto da Câmara Criminal do Tribunal Supremo), contrariam o disposto no n.º 1 do artigo 68.º da CRA, logo, são inconstitucionais.
  5. Outro aspecto daquele contexto alterado pela Constituição é o efeito da acusação, pois, já dispõe o n.º 2 do artigo 67.º da CRA que se presume inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.
  6. Desde 2010 que o artigo 308.º do CPP é inconstitucional e está não só taxativamente revogado pela Lei n.º 18-A/92, de 17 de Julho, Lei da Prisão Preventiva em Instrução Preparatória, quanto aos prazos que prevê para a prisão preventiva, mas também pela Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal, quanto à duração da prisão preventiva depois de culpa formada.
  7. Esta condição de inconstitucionalidade é agravada por outra mudança no contexto constitucional actual, referente à proibição, nos termos do n.º 1 do artigo 66.º da CRA, que estabelece que “não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida”.
  8. Quando se admite que alguém fique preso até haver uma mudança que o absolva ou que anule o despacho de pronúncia, necessariamente se está a submeter a duração da sentença à maior ou menor velocidade dos tribunais na decisão da causa, ferindo o disposto no n.º 1 do artigo 66.º da CRA.
  9. Há violação do direito fundamental à liberdade, porque os n.º 1 e 2 do artigo 36.º da CRA estabelecem que “todo o cidadão tem direito à liberdade física e à segurança individual” e “ninguém pode ser privado da liberdade, excepto nos casos previstos pela Constituição e pela lei”.
  10. Dada a importância da liberdade para um sistema constitucional como o nosso, que tem a dignidade humana como o seu pilar fundamental, o legislador constituinte reforça a protecção deste valor e estabelece, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 64.º da CRA, que “a privação da liberdade apenas é permitida nos casos e nas condições determinadas por lei” e “a polícia ou outra identidade apenas podem deter ou prender nos casos previstos na Constituição e na lei, em flagrante delito ou quando munidas de mandado de autoridade competente”, respectivamente.
  11. Mesmo após o julgamento e publicação do Acórdão em primeira instância, o Tribunal Supremo assume a legalidade da prisão sem indicar qualquer lei, violando, com isto, o direito fundamental à liberdade, por isso, a decisão deve ser declarada inválida, nos termos do artigo 6.º da CRA.
  12. O Tribunal Supremo violou o dever de tutela dos direitos fundamentais, porque reza o legislador constituinte, nos termos dos n.ºs 1 e 2 dos artigos 174.º da CRA, que “os Tribunais são o órgão de soberania com competência de administrar a justiça em nome do povo”, sendo que, “no exercício da função jurisdicional, compete aos Tribunais dirimir conflitos de interesses público ou privado, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, bem como os princípios do acusatório e do contraditório e reprimir as violações da legalidade democrática”, respectivamente.
  13. Com o argumento acima exposto, depreendemos que o Tribunal Supremo não assegurou a defesa dos interesses legalmente protegidos.
  14. A violação de qualquer direito fundamental, dos deveres de tutela e do princípio da legalidade, implicam necessariamente a violação da dignidade da pessoa humana que, nos termos do artigo 1.º da CRA, é a base em que assenta a República de Angola.
  15. A dignidade da pessoa humana é adequadamente entendida com referência à liberdade responsável. Isto é, à liberdade que pressupõe que, na sua actuação, o ser humano desenvolva o máximo do seu potencial; e o desenvolva sem provocar danos a outrem ou provocando apenas danos que possa efectivamente reparar.
  16. É assim que a limitação da liberdade deve ser admitida apenas como consequência desta mesma liberdade, isto é, da verificação inequívoca de que o titular da liberdade não dispõe de capacidade para arcar as consequências do exercício da sua liberdade.
  17. É este entendimento que se adequa e inspira princípios como o da presunção de inocência, nos termos em que o concebemos hoje.
  18. A um Tribunal não se pode reconhecer a faculdade de limitar a liberdade de outrem de forma que não o possa vir reparar, pois, a liberdade, uma vez limitada, não pode ser restituída; a compensação da liberdade não é uma reparação, é apenas uma compensação.
  19. Neste caso, o Tribunal Supremo não só admitiu a prisão sem previsão legal como também assumiu tal facto como indiscutível, sendo, por isso, conivente com a violação da dignidade humana operada pelo Tribunal Provincial de Luanda.
  20. A providência de habeas corpus é a via adequada para a tutela provisória da liberdade, ou seja, o habeas corpus não é um recurso, é uma providência cautelar de tutela da liberdade.
  21. Sempre que houver prisão ilegal, nenhuma medida de tutela da liberdade pode ser mais adequada do que a providência de habeas corpus.
  22. O recurso é mais moroso, embora seja o meio normal para tutela definitiva do direito fundamental à liberdade. Foi por esta razão que, para além do recurso normal que corre termos no Tribunal Supremo, o Arguido requereu a providência de habeas corpus.
  23. A justiça só se realizará com a libertação imediata do Recorrente. mais

O Recorrente entende, por fim, que o Tribunal Supremo violou: (i) as normas dos n.ºs 1 e 3 do artigo 68.º da CRA, que consagra o direito a habeas corpus contra o abuso de poder, em virtude de prisão ou detenção ilegal, de forma incondicional; (ii) o disposto no n.º 2 do artigo 36.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 64.º, ambos da CRA, que prevêem a legalidade da privação da liberdade; (iii) o artigo 66.º da CRA, que consagra o princípio da determinação e limitação das medidas restritivas de liberdade e (iv) as normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 174.º da CRA.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir. 

II – COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL

O recurso extraordinário de inconstitucionalidade interposto pelo Recorrente vem previsto na alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), e na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC).

Em consequência, o artigo 53.º da LPC estabelece que “a competência para decidir os recursos extraordinários de inconstitucionalidade previstos no artigo 49.º da presente lei é do Plenário de Juízes do Tribunal Constitucional”.

Este Tribunal tem, assim, competência para conhecer do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por se achar esgotada a cadeia recursória, como prevê o § único do artigo 49.º da LPC. 

III – LEGITIMIDADE

Estando na condição de arguido preso no processo n.º 16311/15, que correu termos na 14.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, o Recorrente intentou no Tribunal Supremo uma acção de providência de habeas corpus.

O Recorrente tem, assim, legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, conforme prevê a alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao estabelecer que há legitimidade de recorrer extraordinariamente para “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.   

IV – OBJECTO

O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é o Acórdão prolactado no processo n.º 56/2017, pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que negou provimento ao pedido de habeas corpus formulado pelo ora Recorrente.

V – APRECIANDO

V.I - Questão Prévia

Contrariamente ao dever legal de indicar o recurso extraordinário de inconstitucionalidade como a espécie de processo adequada, o Recorrente impetrou, a fls. 70, um recurso ordinário de inconstitucionalidade.

O processo de interposição desse recurso obedece a regras com cominação legalmente prevista no artigo 687.º do CPC – aplicável ex vi do artigo 2.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, LPC.

Por isso, independentemente de o Recorrente ter fixado uma espécie de recurso distinto, é aplicável ao caso concreto a parte final do disposto n.º 3 do artigo 687.º do CPC, pelo que neste Tribunal o recebe como recurso extraordinário de inconstitucionalidade (n.º 6 do artigo 67.º da CRA).   

Por outro lado, o Recorrente, nas suas alegações, de fls. 78 e seguintes, não clarifica no seu pedido se pretende a declaração de inconstitucionalidade do Acórdão recorrido, conforme direito que lhe assiste, nos termos do n.º 1 do artigo 690.º do CPC. Contudo, limitou-se a alegar que existe violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente tutelados, indicando os artigos da Constituição que alegadamente o Acórdão do Tribunal “ad quem” terá posto em causa.

Embora o pedido não seja claro, consta dos autos, a fls. 89, a manifestação de interesse do Recorrente em ver realizada a justiça para a sua “libertação imediata”.    

É sobre a indicação desse fundamento da razão de pedir que este Tribunal se pronunciará, apreciando as questões jurídico-constitucionais em causa. 

 V.II - Apreciação  

Entende o Recorrente que, por ter interposto recurso ordinário com efeito suspensivo, o Meritíssimo Juiz da causa não devia ordenar o seu regresso à prisão, independentemente da situação privativa da liberdade em que se encontrava antes da prolação do acórdão condenatório da primeira instância.

Contrariamente ao que defende o Recorrente, este Tribunal perfilha do entendimento de que o efeito suspensivo mantém os termos do processo e suspende apenas os seus efeitos, ou seja, causa somente a suspensão da condenação proferida em primeira Instância até que o Tribunal “ad quem” decida do recurso interposto.

Ora, dito noutros termos, mantém-se a prisão do Recorrente que existia antes da condenação, pois, o efeito suspensivo sustou a decisão proferida pelo Tribunal a quo, devendo-se aguardar pelo aresto do Tribunal ad quem.

Assim sendo, a prisão do Recorrente não viola os princípios e direitos fundamentais previstos nos n.ºs 1 e 3 do artigo 68.º, n.º 2 do artigo 36.º, n.ºs 1 e 2 do artigo 64.º, artigo 66.º e n.ºs 1 e 2 do artigo 174.º, todos da CRA.

No entanto, este Tribunal soube oficiosamente que, no recurso do Processo n.º 16311/2015, que correu trâmites na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, por crime de roubo concorrendo com homicídio, o Recorrente já foi condenado, no dia 13 de Dezembro de 2017, na pena de 23 anos de prisão maior, sem prejuízo do perdão de ¼ da pena, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto, Lei da Amnistia.  

Uma vez que o Tribunal recorrido já julgou a acção principal, o que consubstancia inutilidade superveniente da lide, o que implica a extinção da instância nos termos da alínea. e) do artigo 287.º do Código Processo Civil.

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 3 de Julho de 2018

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)

Dr. Américo Maria de Morais Garcia

Dr. Carlos Magalhães (Relator)

Dra. Josefa Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango 

Dr. Simão de Sousa Victor­­­­­

Dr. Raul Carlos Vasques Araújo