ACÓRDÃO N.º 486/2018
PROCESSO Nº 533-B/2016
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Manuel Ferreira Neto, melhor identificado nos autos, interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 1ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 127/2010, que revogou a decisão do Tribunal a quo, alegando essencialmente que:
O Recorrente concluiu alegando que deve o Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo ser revogado, por violação dos princípios constitucionais do direito à defesa e do contraditório, ao direito ao trabalho e à justa indemnização e, em consequência, a entidade empregadora seja condenada à luz dos efeitos emergentes do artigo 228.º da Lei Geral do Trabalho.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional – LPC, norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
A legitimidade para o recurso extraordinário de inconstitucionalidade cabe, no caso de sentença à pessoa que, de harmonia com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, possa dela interpor recurso, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC.
Igualmente tem legitimidade para recorrer, aquele que, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido, nos termos do nº 1, do artigo 680.º do Código de Processo Civil – CPC, aqui aplicado ex vi do artigo 2.º da LPC, que estabelece a aplicação subsidiária das normas do CPC aos processos de natureza jurídico-constitucionais.
No caso concreto, o aqui Recorrente, enquanto Apelante no Processo n.º 127/2010, que não viu a sua pretensão atendida, tem certamente legitimidade para recorrer.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem como objecto o Acórdão da 1ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, proferido aos 27 de Abril de 2016, no âmbito do Processo n.º 127/2010.
V. APRECIANDO
É submetida à apreciação do Tribunal Constitucional o Acórdão da 1ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo proferido em relação ao Processo n.º 127/2010, que apesar de ter revogado a decisão do Tribunal a quo, que motivou a interposição do recurso de apelação, não atendeu à pretensão do Recorrente no sentido de qualificar como nulo o despedimento de que o mesmo foi alvo, nos termos do artigo 228.º da anterior LGT, em vigor à data dos factos, e não como improcedente, nos termos do artigo 229.º da referida LGT, o que tem como consequência, na perspectiva do Recorrente, a violação do n.º 4 do artigo 76.º da CRA.
Na verdade, o Acórdão recorrido julgou ilícito e improcedente o despedimento sofrido pelo aqui Recorrente e condenou a entidade empregadora, entre outros, ao pagamento dos salários de base com limite máximo de nove meses, nos termos do artigo 229.º da Lei n.º 2/00, de 11 de Fevereiro, Lei Geral do Trabalho vigente à data, entretanto já revogada pela Lei n.º 7/15, de 15 de Junho.
Defende o Recorrente, em alegações, que a qualificação dos factos, que culminaram com o seu despedimento, como despedimento improcedente ao invés de despedimento nulo, violou os princípios constitucionais do direito ao trabalho e à justa indemnização.
Nas palavras dos Doutores Raul Araújo e Elisa Rangel (em Constituição da República de Angola anotada, tomo I, pág. 409) “O direito ao trabalho pressupõe a protecção do trabalhador contra medidas que ponham em causa este direito fundamental. De entre estas medidas assume um papel importante a aprovação de legislação que sancione o despedimento ilegal e que imponha à entidade empregadora o dever de justa indemnização ao trabalhador despedido.”
Ora, terá o Acórdão do Venerando Tribunal Supremo violado o direito fundamental do Recorrente ao trabalho e à justa indemnização?
A resposta a esta questão passa necessariamente pela clarificação dos conceitos de despedimento nulo e de despedimento improcedente, nos termos da anterior LGT, de forma a determinar como é qualificado o despedimento de que o Recorrente foi alvo, em que houve uma ausência total de procedimento disciplinar.
A. Da nulidade do despedimento e seus efeitos
Nos termos do artigo 228.º da anterior LGT, (artigo 208.º da Lei n.º 7/15, de 15 de Junho, nova LGT), “O despedimento é nulo sempre que ao trabalhador não seja remetida ou entregue a convocatória para a entrevista, a que se refere o n.º 2 do artigo 50.º, sempre que esta não se realize por causa do empregador ou sempre que ao trabalhador não seja feita a comunicação de despedimento nos termos do artigo 52.º”.
O procedimento disciplinar para o despedimento obedecia às regras estabelecidas no artigo 50.º da Lei n.º 2/00 (procedimento actualmente previsto no artigo 48.º da nova LGT). Este artigo estabelecia que a aplicação de qualquer medida disciplinar, salvo a admoestação simples e a admoestação registada, é nula se não for precedida de audiência prévia do trabalhador e no caso de decidir aplicar uma medida disciplinar, deve o empregador convocar o trabalhador para uma entrevista (cf. o n.º 2 do artigo 50.º da citada lei).
Ao dispor de tal modo, parece-nos que o legislador pretendeu obrigar efectivamente a entidade empregadora a cumprir determinados requisitos antes de o trabalhador ser confrontado com a comunicação do despedimento. Fica assim salvaguardado o princípio da estabilidade do emprego, consagrado no n.º 2 do artigo 76.º da CRA e ainda no artigo 211.º da anterior LGT, (artigo 198.º da nova LGT).
Ora, se a anterior LGT considera como nulo o despedimento que ocorra sempre que seja desrespeitado algum dos formalismos previstos nos artigos 50.º a 52.º da LGT, a ausência do procedimento disciplinar no seu todo deve ser entendida como uma ausência total dos formalismos previstos nos artigos 50.º a 52.º da LGT, pelo que em tais situações o despedimento deve ser qualificado como nulo.
Senão vejamos:
O empregador detém o poder disciplinar sobre os trabalhadores ao seu serviço e exerce-o em relação às infracções disciplinares por estes cometidas. Nos termos do n.º 1 do artigo 48.º da anterior LGT, esse poder disciplinar no entanto deve obediência a alguns princípios e realçamos aqui um dos mais importantes, que é o princípio da defesa.
Nas palavras do Dr. Norberto Moisés Moma Capeça, na sua obra intitulada “Da Ilicitude do Despedimento Disciplinar e suas Consequências”, o princípio da defesa garante ao trabalhador o exercício do contraditório, onde o trabalhador deve apresentar a sua versão sobre os factos que lhe estão a ser imputados.
Em obediência ao princípio da defesa, deve o empregador, ao convocar o trabalhador, indicar na convocatória detalhadamente os factos de que o trabalhador é acusado, para que o trabalhador possa preparar convenientemente a sua defesa, sendo que a realização da entrevista garante o exercício do contraditório, o momento em que o trabalhador apresenta ao empregador os argumentos de que disponha para sua defesa e posteriormente o processo culmina com a decisão, fase em que é comunicada ao trabalhador a medida disciplinar que lhe será aplicada.
A comunicação ao trabalhador de que está despedido é feita pelo empregador no uso do seu poder disciplinar. A sanção ou medida disciplinar aplicada é uma das medidas previstas na Lei Geral de Trabalho.
O artigo 49.º da LGT elenca as medidas que podem ser aplicadas ao trabalhador que pratique uma infracção disciplinar e essas medidas são taxativas, isto é, não podem ser aplicadas outras que não estas.
A medida disciplinar de despedimento imediato vem prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 49.º da anterior LGT, ao dispor que “Pelas infracções disciplinares praticadas pelos trabalhadores, pode o empregador aplicar as seguintes medidas disciplinares:
a)Admoestação simples;
b) Admoestação registada;
c) Despromoção temporária de categoria, com diminuição do salário;
d) Transferência temporária do centro de trabalho com despromoção e diminuição do salário;
e) O despedimento imediato.
Assim, convém enfatizar que, nos termos do n.º 1 do artigo 50.º da anterior LGT, “A aplicação de qualquer medida disciplinar, salvo a admoestação simples e a admoestação registada, é nula se não for precedida de audiência prévia do trabalhador, segundo o procedimento estabelecido nos números e artigos seguintes”.
O Dr. Norberto Moisés Moma Capeça, na sua obra intitulada “Os Despedimentos à Luz da Nova Lei Geral de Trabalho”, pág. 145, na parte em que aborda a ilicitude do despedimento disciplinar, refere que “Sendo o despedimento imediato uma das medidas disciplinares previstas no artigo 47.º da LGT, precisamente na alínea d) do n.º 1 a sua aplicação deve ser precedida do correspondente processo disciplinar ”.
O que significa dizer que para que ocorra a nulidade do despedimento é necessário que se verifique o incumprimento de pressupostos formais, incumprimento esse que pode ser parcial, desrespeito de um determinado passo do procedimento disciplinar, ou total com o desrespeito completo de todo o procedimento disciplinar.
Relativamente aos efeitos da declaração de nulidade do despedimento dispõe o n.º 3 do artigo 228.º da anterior LGT “Quando o despedimento seja nulo, o empregador é obrigado a proceder a reintegração do trabalhador e pagar-lhe os salários e complementos que este deixou de receber até a reintegração”.
B. Da Improcedência do despedimento e seus efeitos
Ao contrário da nulidade em que está em causa o cumprimento obrigatório de formalismos prévios à aplicação de uma medida disciplinar, no regime jurídico da improcedência está em causa o fundamento insuficiente que o empregador utiliza para despedir o trabalhador.
O empregador procede ao despedimento do trabalhador, ainda que respeitando o competente procedimento disciplinar para o despedimento, no entanto, o fundamento invocado não é justificação suficiente para legitimar a aplicação da medida disciplinar de despedimento, pelo que nesta situação o despedimento deve ser considerado improcedente.
Nas palavras do Dr. Norberto Moisés Moma Capeça, na sua obra intitulada “Os Despedimentos à Luz da Nova Lei Geral de Trabalho”, pág. 166, refere que “ a falta de justa causa não se traduz em o trabalhador não ter praticado a infracção disciplinar de que é acusado. Não quer com essa falta de justa causa dizer que não possa haver um comportamento reprovável e censurável do trabalhador, querendo apenas demonstrar-se que tal comportamento não é “de per si”, suficiente que possa dar lugar a um despedimento.”
No despedimento improcedente está em causa a ausência de um justificativo plausível para o despedimento.
Logo, concluímos que cabem no âmbito de aplicação do artigo 229.º da anterior LGT, todos os despedimentos que tenham sido praticados, sem que houvesse justa causa para essa mesma medida disciplinar.
Nos termos do n.º 1 do artigo 224.º da anterior LGT é justa causa “ a prática de infracção disciplinar grave pelo trabalhador ou a ocorrência de motivos objectivamente verificáveis, desde que num ou noutro caso se torne praticamente impossível a manutenção da relação jurídico-laboral”.
Quanto aos efeitos da declaração de improcedência do despedimento, estabelece o n.º 3 do artigo 229.º “Além da reintegração ou indemnização previstas, no n.º 1 deste artigo, são sempre devidos ao trabalhador os salários de base que teria recebido se estivesse a prestar o trabalho, até à data em que obteve novo emprego ou até à data do trânsito em julgado da sentença, se anterior ao novo emprego, mas sempre com o limite máximo de 9 meses de salário”.
Ora,
Uma vez clarificados os dois institutos, importa uma tomada de posição face ao presente processo.
Como acima expendido, considera-se como despedimento nulo sempre que não seja precedido do correspondente processo disciplinar, nos termos do artigo 228.º da antiga LGT.
Ademais, o despedimento deve ser igualmente nulo nos casos em que tenha sido iniciado um procedimento disciplinar que entretanto não tenha sido integralmente respeitado, como nos casos em que há o desrespeito de todo o procedimento, que não chega a ser instaurado, mas no entanto culmina com a aplicação da medida disciplinar de despedimento.
No presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade em que não houve convocatória, nem entrevista, mas tão-somente o Recorrente tomou conhecimento do despedimento, o Tribunal Constitucional conclui que o despedimento é nulo e não improcedente, nos termos do n.º 1 do artigo 228.º da Lei n.º 2/00, de 11 de Fevereiro. Quer isto dizer que a entidade empregadora, com a declaração de nulidade do despedimento, deve pagar ao trabalhador, ora Recorrente, todos os salários e complementos que este deixou de receber até à reintegração, ainda que pelos dados pessoais do Recorrente constantes dos autos, este Tribunal tenha constatado que até ao momento, o mesmo já estaria em idade de reforma, a saber, 68 anos de idade.
C. O direito à justa indemnização
O n.º 4 do artigo 76.º da CRA estabelece que o despedimento sem justa causa é ilegal e a entidade empregadora constitui-se no dever de indemnizar o trabalhador com justiça, nos termos da lei.
No caso em apreciação, a lei para a qual o legislador constituinte remeteu os termos da justa indemnização é a Lei n.º 2/00, de 11 de Fevereiro – Lei Geral do Trabalho - LGT, vigente à data dos factos.
De facto, se o Tribunal ad quem tivesse decidido pela aplicação do regime da nulidade previsto no artigo 228.º da LGT, a consequência seria ordenar o empregador a pagar os salários e complementos que o Recorrente deixou de receber até à reintegração, como decorre do espírito e da letra do n.º 3 do artigo 228.º da LGT.
Assim, entende este Tribunal que assiste razão ao Recorrente, uma vez que o despedimento feito sem que seja precedido do correspondente procedimento disciplinar é nulo e não improcedente, logo a justa indemnização devida nos termos do que a Constituição impõe, passa por pagar todos os salários e complementos devidos ainda que decorridos já 13 anos desde a data do despedimento ilegal.
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado,
Acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em:
Sem custas (nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 3 de Julho de 2018.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) - Relatora
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Josefa Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dr. Raul Carlos Vasques Araújo
Dr. Simão de Sousa Victor