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ACÓRDÃO N.º 490/2018

 

PROCESSO N.º 629-C/2018

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO 

Jukelas Lourenço de Oliveira, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que o condenou numa pena de 8 anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio voluntário simples, a título de dolo eventual, p.p. pelo artigo 349.º do Código Penal, quando havia sido condenado, em 1.ª instância, como autor material de um crime de homicídio involuntário na pena de 2 anos de prisão e multa de 1 ano. Notificado para o efeito, apresentou as alegações que constam de folhas 262 e 263, com as seguintes conclusões:

  1. Dar provimento ao presente recurso, julgando inconstitucional a reformatio in pejus, por violação do disposto no artigo 667.º do C.P.P.;
  2. Declarar inconstitucional a violação do princípio do contraditório e do acusatório previstos pelo artigo 174.º da CRA;
  3. Declarar inconstitucional a violação do direito de defesa, nos termos do artigo 67.º, n.º 1 e 5, da CRA e da presunção da inocência (artigo 67.º, n.º 2, da CRA).
  4. Declarar nulo o Acórdão recorrido, devendo, nesse passo, ser o arguido absolvido do crime de homicídio voluntário e mandado em liberdade.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC).

Trata-se de um recurso de um Acórdão do Tribunal Supremo que põe termo ao processo e, nessa medida, é o Tribunal Constitucional competente para julgar o presente recurso.

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é Réu no Processo de Querela n.º 685/11.2TPLDA-D, que correu os seus trâmites na 5.ª secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, de modo subsidiário, ao presente caso, por remissão do artigo 2.º da LPC.

Assim sendo, o Recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto o Acórdão proferido pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo e, nesse âmbito, verificar se o Acórdão impugnado violou o princípio da “reformatio in pejus”, artigo 667.º do Código de Processo Penal; os princípios do contraditório e do acusatório previsto no artigo 174.º; o direito de defesa e presunção da inocência, previstos nos n.ºs 1 e 2, do artigo 67.º, ambos da CRA.

V. APRECIANDO 

  1. O Recorrente acaba, em sede de alegações, por referir terem sido violados os princípios do acusatório e contraditório, bem como o de defesa, por não lhe ter sido dada a possibilidade de se defender face ao agravamento da pena, por aquele Tribunal de última instância ter alterado a qualificação jurídica dos factos de crime de homicídio involuntário para voluntário.

Entende este Tribunal que não lhe assiste razão neste aspecto.

Se não, vejamos:

Como diz e bem o Recorrente, o princípio acusatório, um dos princípios estruturantes da nossa constituição processual penal, postula que a decisão final há-de incidir apenas sobre a acusação, havendo o tribunal de ajuizar dos fundamentos dela, pronunciando ou não o arguido, condenando-o ou absolvendo-o pelos factos acusados – e só esses – de modo a permitir-se que alguém só possa ser julgado por qualquer crime precedendo acusação por parte de órgão distinto do julgador, sendo tal acusação condição e limite do julgamento.

E, no caso sub judice, já na acusação e na pronúncia lhe foi imputado um crime de homicídio voluntário, pelo que o Réu pode defender-se da sua prática.

Também, não existe qualquer violação do princípio do contraditório no que toca à decisão recorrida nem, por consequência, o seu direito à defesa, nos termos do n.º 2 do artigo 174.º da CRA.

  1. Porém, as alegadas violações antecedem a decisão recorrida e determinam a nulidade do processado.

Com efeito, pode constatar-se que o Assistente, tal como o Réu, veio recorrer da decisão da primeira instância por discordar da alteração da qualificação jurídica, de homicídio voluntário simples para homicídio involuntário e, consequentemente, da brandura da pena imposta (vide fls. 205).

Este recurso foi admitido a fls. 207 e dele foram notificados os mandatários do Assistente que apresentaram alegações a fls. 211 a 213, admitidas por despacho de fls.215.

Este despacho de admissão foi uma vez mais notificado ao Assistente, na pessoa do seu mandatário, conforme folhas 217 e 218.

Entretanto, foram os autos remetidos ao Tribunal Supremo e distribuídos ao Juiz relator.

No despacho preliminar, o Venerando Juiz Relator admite o recurso do Réu por não conformação, com efeito e regime devidos, e manda ao Ministério Público e aos vistos legais.

Seguidamente, há uma promoção do Digno Magistrado do Ministério Público a solicitar a extinção do crime pelo qual o Réu foi condenado, uma vez que estava abrangido pela Lei da Amnistia.

Aqui, não se pode deixar de fazer um reparo. Se houve recurso, com efeito suspensivo, não havia qualquer condenação, pelo que o crime a atender seria aquele pelo qual o Réu foi acusado e pronunciado, o crime de homicídio voluntário simples, punível com pena de 16 a 20 anos de prisão maior, pelo que não está abrangido pela Lei da Amnistia.

Não existe qualquer despacho sobre esta promoção e segue-se o envio para tabela e o Acórdão.

No referido Acórdão, aqui impugnado, pode constatar-se que o Venerando Tribunal Supremo não se refere ao recurso do Assistente e a Digníssima Magistrada do Ministério Público, no seu parecer, também repete, apesar de o processo estar em recurso, que sendo um crime de homicídio involuntário está, por isso, abrangido pela amnistia (fls.222).

Ou seja, nem o Réu foi notificado do recurso interposto pelo Assistente, o que viola o princípio do contraditório, entendido como uma forma a possibilitar a discussão entre a acusação e a defesa, viabilizando o princípio da igualdade de armas, ao colocar ambas as partes numa posição de debate, em que lhes é possibilitado argumentar e contra - argumentar as suas posições e fundamentar as mesmas com factos e provas.

De igual modo, viola os seus mais elementares direitos de defesa, na medida em que não lhe deu a possibilidade de conhecer e contradizer o alegado pelo Assistente.

Mas, viola ainda o direito ao recurso que tem consagração constitucional por parte do Assistente, ao não o conhecer e nem sequer o admitir.

Ficaram, pois, por conhecer as questões impugnadas pelo Assistente.

Como se sabe, o direito ao recurso pretende assegurar aos particulares a possibilidade de sindicarem as decisões judiciais de molde a conseguirem uma decisão mais justa.

É, por isso, obrigação de todos os Estados de Direito Democrático garantirem este acesso à justiça, entendido neste sentido mais amplo, sem nunca beliscar qualquer princípio constitucional e assegurarem que as normas processuais são deles corolários.

O processo encontra-se submetido à conformação de uma série de normativos que regulam a sua tramitação e, como reza a doutrina, “naturalmente que é informado por princípios materiais da Justiça nos vários momentos processuais” (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.a ed., Coimbra editora, Coimbra, 2007, anot. XVI ao art. 20.o, p. 415).

O Acórdão ora impugnado não é completo, como deveria ser e a tramitação que a antecedeu ignora os tais princípios materiais da justiça, mormente, o recurso apresentado pelo Assistente.

Tem que se verificar se os vícios ocorridos antes da prolação do Acórdão, que violam princípios constitucionais, constituem por si também uma nulidade processual. O mesmo é dizer, se a não admissão do recurso interposto pelo Assistente (que já tinha sido admitido, determinado o regime e modo de subida pelo Tribunal da primeira instância) e a não notificação deste recurso ao Réu, são nulidades que se encontram sanadas ou, pelo contrário, terão de conduzir à anulação do processado por parte do Tribunal.

A este propósito, determina o artigo 201º, nº 1 do CPC que a omissão de um acto que a lei prescreva produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. 

Não há dúvidas de que a não notificação do recurso interposto pelo Assistente ao ora Recorrente coarta o seu direito de defesa, dado que não lhe foi dada a oportunidade de contra-alegar, o que interfere na boa decisão da causa.

Também, a não admissão daquele recurso pelo Relator do processo junto do Venerando Tribunal Supremo e a consequente não notificação do mesmo ao Réu, bem como o não conhecimento por parte daquele Tribunal das questões nele suscitadas, influem de forma acentuada na melhor decisão da causa.

Dir-se-á mesmo, que se está perante uma decisão pela metade.

Acresce que a interposição do recurso pelo Assistente tem ainda influência sobre a invocada questão da “reformatio in pejus”, tanto mais que a Digníssima Magistrada do Ministério Público, junto deste Tribunal, na sua vista, também, sem atender a esta situação, refere: “... No caso em apreço, o recurso foi interposto pelo Assistente e pelo Recorrente pelo que, não se aplica o princípio da proibição da reformatio in pejus, na medida em que no presente recurso embora se tenha agravado a pena de dois para oito anos, não foi interposto no exclusivo interesse da defesa...”.

Como já se referiu, o Assistente e o Recorrente interpuseram recurso. Mas, o recurso do Assistente não foi conhecido e nem sobre ele se exerceu o contraditório. Tudo se processou como se não existisse recurso do Assistente.

Ora, como ensina o Prof. Alberto dos Reis, aqui referenciado pela similitude de legislações (v. Comentário ao Código de Processo Civil, II, págs. 485 e 486),  “é ao tribunal que compete, no seu prudente arbítrio, decretar ou não a nulidade, conforme entenda que a irregularidade cometida pode ou não exercer influência no exame ou na decisão da causa… Os actos de processo têm uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, actos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram actos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela. É neste sentido que deve entender-se o passo «quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa». O exame, de que a lei fala, desdobra-se nestas duas operações: instrução e discussão da causa”.

Assim, este Tribunal conclui que se trata de invalidades determinantes da nulidade de todo o processado, devendo, nos termos das disposições conjugadas do artigo 44.º e n.º 1 do artigo 52.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, o Venerando Juiz Relator da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo admitir o recurso do Assistente, notificar o Réu e o Digno Magistrado do Ministério Público e, seguidamente, reformular o Acórdão onde se deverá tratar, também, das questões colocadas pelo Assistente.

Com as referidas omissões foram violados princípios constitucionais estruturantes do processo penal, como o princípio do contraditório, o direito ao recurso e, também, o direito a um julgamento justo e equitativo.

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 10 de Julho de 2018.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Américo Maria de Morais Garcia 

Dr. Carlos Magalhães 

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Josefa Neto 

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira 

Dr. Simão de Sousa Victor (Relator)