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ACÓRDÃO N.º 491/2018

 

PROCESSO N.º 619-A/2018

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO 

Isaura da Silva Santana Nascimento, melhor identificada nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que a condenou na pena de 16 anos de prisão maior, quando havia sido absolvida pelo Tribunal da 1.ª instância.

Admitido o recurso e notificada para apresentar alegações, nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/80, de 17 de Junho, não o fez (vide fls. 221 e 222).

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC).

Trata-se, com efeito, de uma decisão que põe termo ao processo e, nessa medida, é o Tribunal Constitucional competente para julgar o recurso.

III. LEGITIMIDADE

A Recorrente foi Ré no Processo de Querela n.º 685/11.2TPLDA-D, que correu os seus trâmites na 5.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, pelo que tem direito a contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, de modo subsidiário, por previsão do artigo 2.º da LPC.

Assim, a Recorrente tem legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso é o Acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo e, neste âmbito, verificar se houve ou não violação dos princípios do contraditório, da reformatio in pejus e do julgamento justo e conforme, previstos nos artigos 667.º do Código do Processo Penal (CPP), 72.º e n.º 2 do 174.º da Constituição (CRA).

V. APRECIANDO

QUESTÃO PRÉVIA

A Recorrente não apresentou alegações nem conclusões quando notificada por este Tribunal para o fazer, conforme determina o artigo 45.º da LPC, o que implicaria a deserção do recurso, nos termos do artigo 690.º do CPC.

No entanto, da jurisprudência já firmada por este Tribunal resulta que,\ nos casos em que é possível compreender o sentido e a vontade da Recorrente que requer, mas não alega, nestas circunstâncias aproveitam-se os elementos substanciais do requerimento de interposição de recurso, em homenagem aos princípios da adequação funcional e da autonomia do processo constitucional, conforme os Acórdãos nºs 355/2015, 358/2015 e 364/2015.

Depreende-se da interposição de recurso que a Recorrente quer impugnar a sua condenação por entender que o Acórdão do Venerando Tribunal Supremo violou o princípio do contraditório e o da “reformatio in pejus”.

Vejamos:

  1. Violação do princípio do contraditório

Constata-se dos autos que a Recorrente não foi notificada do recurso interposto pelo Ministério Público para o Venerando Tribunal Supremo, conforme determina o artigo 742.º do CPC, ficando, assim, prejudicada a possibilidade de poder apresentar alegações no prazo de oito dias (vide artigo 743.º do CPC).

Determina o artigo 201.º, n.º 1 do CPC que a omissão de um acto que a lei prescreva produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. 

Não há dúvidas que a não notificação do recurso interposto pelo Ministério Público à ora Recorrente, coarcta o seu direito de defesa, dado que não lhe foi dada a oportunidade de contra-alegar, o que interfere na boa decisão da causa e, mais que isso, a condenação pelo Venerando Tribunal Supremo apanhou-a de surpresa, o que não deveria acontecer.

Com efeito, a garantia do exercício do direito do contraditório que se encontra plasmado no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, visa, como princípio estruturante de todo o nosso processo civil e penal, evitar “decisões surpresa”, ou seja, baseadas em fundamentos que não tenham sido previamente considerados pelas partes e, consequentemente, reforçar, assim, o direito de defesa.

A violação da garantia do exercício desse direito consubstancia uma nulidade de natureza processual.

O direito ao recurso pretende assegurar aos particulares a possibilidade de sindicarem as decisões judiciais de molde a conseguirem uma decisão mais justa.

É, por isso, obrigação de todos os Estados de Direito Democrático garantirem este acesso à justiça, entendido neste sentido mais amplo, sem nunca beliscar qualquer princípio constitucional e assegurarem que as normas processuais são deles colorários.

Esta exigência impõe que as normas processuais proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e paridade entre as partes, na posição que elas têm no processo. Um processo equitativo exige, sem dúvida, a efectividade do direito de defesa no processo, bem como, dos princípios do contraditório e da igualdade.

Ensina o Prof. Alberto dos Reis (v. Comentário ao Código de Processo Civil, 2º, pág. 485 e 486), que  “é ao tribunal que compete, no seu prudente arbítrio, decretar ou não a nulidade, conforme entenda que a irregularidade cometida pode ou não exercer influência no exame ou na decisão da causa… Os actos de processo têm uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, actos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram actos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela. É neste sentido que deve entender-se o passo «quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa». O exame, de que a lei fala, desdobra-se nestas duas operações: instrução e discussão da causa”.

Ora, não pode de forma alguma dizer-se que uma decisão ou despacho foi justo, se não se deu à parte a possibilidade de a poder contestar.

Na verdade, foi tomada pelo Venerando Tribunal Supremo uma decisão com carácter essencialmente jurídico, de sentido contrário aos interesses da ora Recorrente, sem que a mesma tivesse sequer conhecimento que, com a leitura de uma decisão que a absolveu, o processo não estivesse já finalizado.

Concluímos, por isso, pela existência de uma nulidade processual que influência na boa decisão da causa e viola os princípios constitucionais do contraditório (n.º 2 do artigo 174.º) e do direito a um julgamento justo e conforme (artigo 72.º).

  1. Violação do princípio da reformatio in pejus

Este princípio encontra-se previsto no artigo 667.º CPP onde se estipula que, interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes.

O referido princípio encontra consagração constitucional na parte em que, a par das garantias de defesa, eleva à dignidade de princípio constitucional o direito ao recurso. 

Daqui resulta claramente que o tribunal de recurso está limitado na possibilidade de condenar em pena superior, sempre que o Ministério Público não recorra ou o faça no exclusivo interesse do Réu.

No caso, o Ministério Público interpôs recurso por imperativo legal, tendo em conta que o co-Réu Francisco foi condenado numa pena de 16 anos de prisão maior. Esse recurso, nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Penal, é extensivo ou aproveita aos demais co-réus.

A ora Recorrente estava legalmente impedida de apelar da sentença em 1.ª instância, já que tinha sido absolvida, vide § 3.º, n.º 2 do artigo 647.º do CPP.

O § 1.º do artigo 667.º do Código de Processo Penal diz que a proibição da reformatio in pejus, ou seja, de não se permitir a modificação da decisão recorrida, cessa quando o Tribunal Superior qualificar diversamente os factos ou quando o Ministério Público junto do Tribunal Superior se pronunciar, no seu visto inicial, pela agravação da pena, caso em que serão notificados os Réus.

No caso em apreço, não houve recurso no interesse da Ré pelo que não se verifica a violação do princípio da proibição da refomatio in pejus.

Porém, ao constatar-se que o Digníssimo Representante do Ministério Público junto do Venerando Tribunal Supremo se pronunciou no seu visto inicial pela agravação da pena, deveria ter sido notificada a Recorrente para poder contradizer.

Deste modo, houve violação do princípio do contraditório e não da proibição da reformatio in pejus.

Assim, deve o processo ser devolvido ao Venerando Tribunal Supremo para que, nos termos das disposições conjugadas do n.º 2 do artigo 47.º e n.º 1 do artigo 52.º, ambos do CPC, o Venerando Juiz Relator da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Venerando Tribunal Supremo reformular o Acórdão, notificando para o efeito a Ré da admissão do recurso interposto pelo Ministério Público junto do tribunal “a quo” e do visto inicial do Ministério Público junto do Venerando Tribunal Supremo, nos termos do n.º 2 do § 1.º do artigo 667.º do CPP.

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em: 

 Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 11 de Julho de 2018.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

 Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)

Dr. Américo Maria de Morais Garcia 

Dr. Carlos Magalhães 

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango 

Dra. Josefa Neto 

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira 

Dr. Simão de Sousa Victor (Relator)