ACÓRDÃO N.º 492/2018
PROCESSO N.º 617-C/2017
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
António Admar Gonçalves Rosa e Annick Catarina Mavungo, melhor identificados nos autos, vieram interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que os condenou, respectivamente, como cúmplice e autora de um crime de burla por defraudação, nas penas de 5 (cinco) e 9 (nove) anos de prisão maior e no pagamento solidário de uma indemnização, por contrariar, no caso do primeiro Recorrente, os princípios constitucionais consagrados nos artigos 67.º e 72.º da CRA e da segunda Recorrente, os artigos 6.º, 23.º, 29.º, 65.º, 67.º, 72.º, 174.º e 179.º, da mesma Lei Fundamental e, ainda, os artigos 98.º e 351.º do Código do Processo Penal, 423.º, 451.º e 453.º do Código Penal, alínea d) da Lei n.º 18/88, de 31 de Dezembro e 13.º da Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro.
O Recorrente António Admar G. Rosa invoca, resumidamente, em sede de alegações, o seguinte:
Annick Catarina Mavungo, por sua vez, concluiu nas suas alegações, resumidamente o seguinte:
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC).
Trata-se de uma deliberação que põe termo ao processo e, nessa medida, é este Tribunal competente para julgar o recurso.
III. LEGITIMIDADE
Os Recorrentes são Réus no Processo de Querela n.º 1638/13, que correu os seus trâmites na 5.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, pelo que têm direito a contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, de modo subsidiário, por previsão do artigo 2.º da LPC.
Assim, os Recorrentes têm legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso é o Acórdão do Tribunal Supremo na parte em que condenou o Recorrente António Admar Gonçalves Rosa, como cúmplice de um crime de burla por defraudação, numa indemnização solidária, e a Recorrente Annick Catarina Mavungo, como co-autora do mesmo crime, cabendo a este Tribunal analisar se foram violados os princípios da legalidade, igualdade, verdade material, do inquisitório, acusatório, da presunção de inocência e do direito a um julgamento justo.
V. APRECIANDO
António Admar Gonçalves Rosa
O Recorrente invoca, nas suas alegações, que o Venerando Tribunal Supremo não podia, como fez, convolar o crime de falsificação de documentos, pelo qual o arguido foi acusado, pronunciado e condenado, nem tão pouco o condenar solidariamente numa indemnização pela prática de um crime que não cometeu.
Constata este Tribunal que o ora Recorrente foi, efectivamente, acusado e pronunciado pela prática de um crime de falsificação de documentos, acabando por ser condenado, no Tribunal da 1.ª instância, na pena de 2 anos de prisão.
Interposto recurso, o Venerando Tribunal Supremo acabou por condená-lo como cúmplice de um crime de burla por defraudação, na pena de 5 anos de prisão e no pagamento solidário de usd.16.066.184.47 à ofendida Cabinda Gulf Oil Company ou Chevron.
Violação do artigo 67.º da CRA, por ter sido condenado pela prática de um crime diverso daquele porque foi acusado e pronunciado.
A este respeito, determina o artigo 447.º do Código de Processo Penal, sobre a convolação da acusação para infracção diversa: “O Tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente”.
Por sua vez, o artigo 448.º, do citado Código, dispõe: “O Tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela por que o réu vem acusado, com fundamento nos factos alegados pela defesa ou dos que resultem da discussão da causa, se, neste último caso, tiver por efeito diminuir a pena”.
Embora se trate de dois crimes – burla por defraudação e falsificação de documentos – com elementos comuns, já que a falsificação não deixa de ser um dos modos de execução do crime de burla, o certo é que são diferentes na sua configuração típica objectiva e subjectiva.
A acusação e a pronúncia apenas referem factos que integram o elemento material do crime de falsificação quanto ao ora Recorrente, esquecendo os que preenchem a componente subjectiva.
A acusação em momento algum refere que o ora Recorrente tivesse conhecimento do plano arquitectado pela co-ré Annick Mavungo que foi quem congeminou todo o plano, juntamente com os seus superiores hierárquicos, contando com a colaboração do co-réu Joselino e outros, sem fazer menção ao nome do aqui Recorrente.
Também, o Acórdão do Venerando Tribunal Supremo, objecto do presente recurso, na apreciação dos factos, refere expressamente que foram as alterações das coordenadas bancárias que permitiram ser creditados na conta do “enigmático” Gilson, a quantia de Usd. 16.066.184.47 e que essa substituição foi operada pelos co-réus Annik Mavungo e Adilson Félix, ambos funcionários da CABGOC e que os Réus Joselino e Fernando Silva agiram em coordenação com aqueles dois.
Quanto ao Réu, ora Recorrente, mantém a estrutura da acusação (vide fls. 35 e 38 do citado Acórdão).
Porém, apesar desta apreciação que parece excluir a participação do Réu António Admar Gonçalves Rosa e sem que o Venerando Tribunal Supremo tivesse sequer alterado a matéria de facto, em sede de subsunção jurídica e sem qualquer fundamento, concluiu que este Réu e outros facilitaram a transferência dos valores fraudulentamente creditados na conta do suposto Gilson para a conta de terceiros, com vantagens pessoais, contribuindo para a execução do projecto dos Réus Annick e Joselino Vieira, acabando por integrar esta conduta no crime de burla por defraudação como cúmplices.
Ora, o Acórdão recorrido, na parte do enquadramento jurídico-penal e não na fundamentação de facto como deveria ser, dá como provados factos que nunca foram referidos na acusação e na pronúncia e sem sequer sustentar, como era sua obrigação legal e constitucional, o seu processo de convicção.
Daí que, a alteração verificada, importa a modificação de um ou mais factos descritos na acusação, capazes de fazerem integrar a conduta acusada em crime distinto do acusado, não seja de facto permitida pelo artigo 447.º do CPP, nem pelos mais elementares princípios do processo penal, como sejam, o do acusatório e do contraditório.
As regras do mencionado artigo do CPP são uma emanação directa do artigo 67.º da Constituição e destinam-se a garantir eficazmente o exercício do contraditório e do direito de defesa em geral.
Assim, no caso “sub judice”, o Venerando Tribunal Supremo, ao fazê-lo, violou os mais elementares direitos de defesa do Recorrente.
Violação do princípio do julgamento justo
O alegado princípio do julgamento justo prende-se com a omissão de formalidades processuais objectivas inerentes ao decurso do julgamento (como por exemplo, não ter sido analisado um documento junto para prova de determinado facto; não ter sido ouvida uma das partes ou o arguido; não ter sido permitido um protesto para a acta; não ter sido dada a palavra ao advogado para exercer o contraditório ou alegações; não terem sido reduzidos a escrito os depoimentos, quando requerido; serem feitas perguntas capciosas, etc...) e, também, como alega o Recorrente, não lhe ter sido dada a possibilidade de se defender da prática do crime que lhe veio a ser imputado.
A condenação solidária do Recorrente na indemnização, foi resultado da convolação que, como já se referiu, não é permitida, quer porque contrária ao artigo 447.º do C.P.P., quer porque viola os mencionados princípios constitucionais.
Conclui-se, necessariamente, que também ela viola os mesmos princípios, porquanto, não constando da acusação e da pronúncia que o Réu, ao fabricar os diversos documentos, tivesse intenção de enganar o seu destinatário e de prejudicar terceiros para obter vantagem patrimonial, também, neste aspecto, foi-lhe coarctado o direito de se defender.
Porém, sempre se dirá, mesmo que a convolação fosse permitida, que o Réu Recorrente, ao ser condenado como cúmplice e estando restringida a sua actuação apenas a uma transferência no montante de €820.650.00 (oitocentos e vinte mil, seiscentos e cinquenta euros), a sua responsabilidade solidária só poderia, naturalmente, ser circunscrita a este montante e não aos Usd. 16.066.184.47.
Deste modo, tendo sido violado o direito de exercício do contraditório e o de defesa em geral, o Acórdão recorrido padece da violação do mencionado princípio constitucional que, a propósito, o Recorrente lhe assaca em via de recurso.
Relativamente ao recurso apresentado pela ora Recorrente, tem de se dizer que, mais que alegar a violação de princípios constitucionais por parte da decisão recorrida (o Acórdão do Venerando Tribunal Supremo), vem outra vez impugnar a decisão da 1.ª instância.
Pretende, ainda, fazer equivaler este Tribunal Constitucional a um Tribunal de reapreciação, o que é inadmissível.
Com efeito, sustenta a violação dos princípios constitucionais na contradição entre as respostas aos quesitos e a decisão, o que configuraria uma nulidade prevista no artigo 668.º do C.P.C. e determinaria a nulidade do acórdão, bem como, na valoração da prova feita pelo tribunal “a quo”.
Tais questões foram suscitadas e analisadas pelo Venerando Tribunal Supremo que acolheu a prova produzida em audiência de julgamento.
Diz-se, no Acórdão recorrido que “… a Ré Annick Mavungo negou os crimes, mas o facto de ter plena consciência que o pedido expresso a fls. 227, não tinha como destinatário a CABINDA GULF OIL CQMPANY; ter concertado com o seu colega da DYNAMIC ANGOLA CONTRACTORES Luemba Ideya Franque Sebastião para este usar o documento de fls. 227 para justificar a projectada substituição das coordenadas da conta bancária da DINAMIC ANGOLA CONTRACTORES, pela da conta bancária de Gilson Manuel Van-Dúnem; ter recebido, do dinheiro defraudado ao empregador com a sua arte e engenho, uma transferência, por débito na conta bancária do seu colega e namorado, o revel Adilson Jorge Andrade Félix, engenheiro informático da CABGOC, a quantia monetária de AKZ 12.000.000.00 (doze milhões de kwanzas) que no dia 4/6/2013, o co-réu Joaquim José Campos, director da empresa CORTEX-TECNOLOGIAS LIMITADA transferiu para a conta bancária do revel; ter comprado um veículo de marca TOYOTA LEXUS, modelo LX, com a matrícula LD-46-16-DU, no pretérito dia 11 de Junho de 2013, pago pelo réu Joaquim José Campos, mediante transferência da conta da sua empresa CORTEX-TECNOLOGIAS LIMITADA para a SMPS Import e Export, prestação de serviço limitada, de Sérgio Ferreira dos Santos, a quantia monetária de AKZ 9.000.000.00 (nove milhões de Kzs); ter comprado com o dinheiro que defraudou do empregador mediante engenhosa arte, no condomínio “Jardim de Rosas”, dois apartamentos e um prédio, n.º 47, rua Dr. Marcelino Dias, n.º 47, 5.º andar, junto ao largo Sagrada Família, bairro Maculusso, por preço que não quis revelar, aditado a coincidência entre o período de 6 de Maio a 12 de Junho de 2013, em que ocorreu a fraude e aquele que comprou os apartamentos, o veículo e lhe foi transferido o dinheiro, este tribunal dá como certo que ela foi uma das arquitectas do projecto criminoso.”
A sustentação da prova dos factos está devidamente explicada e, na sua recolha, não se descortina qualquer violação de princípios constitucionais.
A agravação da pena operada pelo Venerando Tribunal Supremo, também não consubstancia a violação de qualquer princípio constitucional.
Assim, entende este Tribunal que, no concernente à Recorrente Annick Catarina Mavungo, a decisão proferida pelo Venerando Tribunal Supremo não violou qualquer princípio constitucional, sendo, pois, improcedente o recurso.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.ºda Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 11 de Julho de 2018.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel da Costa Aragão (Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. Cargos Magalhães
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Josefa Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dr. Simão de Sousa Victor (Relator)