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 ACÓRDÃO N.º 498/2018

 

PROCESSO N.º 635-A/2018

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional: 

I. RELATÓRIO 

Emerson Soares de Almeida Gomes, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade da sentença proferida no âmbito do processo sumário n.º 434-D do Tribunal Municipal da Ingombota, cujos depoimentos não foram reduzidos a escrito.

Alega a sua inocência por não ter qualquer implicação na prática dos crimes e invoca a violação por parte daquela decisão dos princípios constitucionais do Estado de direito (artigo 2.º), da igualdade (artigo 23.º), do julgamento justo e conforme à lei (artigo 72.º), do direito à liberdade física e segurança pessoal artigo 36.º, da presunção da inocência (n.º 2 do artigo 67.º), e artigo 177.º, todos da CRA).

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto, nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional, (LPC), da sentença proferida no âmbito de um processo sumário, porque, não tendo referido que não prescindiam de recurso, esgotou-se a cadeia de recurso ordinário.

Com efeito, trata-se de uma decisão que põe termo ao processo e, nessa medida, de acordo com a jurisprudência já firmada por este Tribunal Constitucional, é o mesmo competente para julgar o recurso.

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é Réu no Processo sumário n.º 434/D, do Tribunal Municipal da Ingombota, pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, de modo subsidiário, ao caso em estudo, por previsão do artigo 2.º da referida LPC.

Assim, o Recorrente tem legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso é a sentença proferida no processo sumário, cuja decisão pôs termo ao processo por estarem esgotados os meios de recurso ordinários para a jurisdição comum, em virtude de não se ter, em tempo, requerido a redução dos depoimentos a escrito, impedindo, assim, a sua impugnação para o Tribunal ad quem 

V. APRECIANDO

QUESTÃO PRÉVIA

O Recorrente veio invocar a violação de princípios constitucionais, sustentando que o Tribunal recorrido o condenou sem que se tenha apurado qualquer comportamento ilícito da sua parte, vendo, assim, os seus direitos à defesa e ao contraditório violados ao não lhe ser permitido apresentar contestação.

Ora, como o próprio Recorrente refere no seu requerimento de interposição de recurso, recorre para este Tribunal Constitucional por estarem esgotados os meios de recurso ordinários para a jurisdição comum, em virtude de não ter, em tempo, requerido a redução a escrito dos depoimentos.

Não vem, no entanto, como se esperaria, em sede de alegações e conclusões, impugnar a decisão com fundamento na violação do seu direito ao recurso.

Vem antes, impugnar questões de facto e de direito relativamente à decisão recorrida que, de modo algum, podem ser da competência deste Tribunal. E, ainda que o fossem, tal como, de igual modo refere, só estão esgotados os recursos ordinários para a jurisdição comum, por não ter requerido a redução a escrito dos depoimentos prestados em audiência.

Porém, nos termos do artigo 11.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, (LPC), este Tribunal pode conhecer da violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles que tenham sido invocados pelo requerente, pelo que se irá restringir a questão a conhecer a eventual violação do direito ao recurso (n.º 6.º do artigo 67.º da CRA) e do direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigo 29.º da CRA).

FUNDAMENTAÇÃO

Como se disse, este recurso teve na sua origem o facto de o Recorrente estar impedido de recorrer para a jurisdição comum, por não ter requerido, na audiência de discussão e julgamento, a redução a escrito dos depoimentos, por força do estatuído nos artigos 531.º do CPP e 6.º da Lei n.º 20/88 - Lei Sobre o Ajustamento das Leis Processuais Penal e Civil, de 31 de Dezembro que faz depender o direito a recorrer dos depoimentos escritos.

Determina, a propósito, o artigo 531.º do CPP que se as partes prescindirem do recurso, os interrogatórios dos réus, depoimentos das testemunhas, declarações dos ofendidos e outras pessoas serão verbais, resultando do seu parágrafo único, a presunção de renúncia de recurso, sempre que as partes não tenham expressamente declarado que dele não prescindem.

Também, o artigo 6.º, da referida Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro, consagra o princípio da oralidade do julgamento, determinando só haver redução a escrito caso as partes o requeiram, por não se tratar de recurso obrigatório.

O direito ao recurso pretende assegurar aos particulares a possibilidade de sindicarem as decisões judiciais de molde a conseguirem uma decisão mais justa.

É, por isso, obrigação de todos os Estados Democráticos de Direito garantir este acesso à justiça, entendido neste sentido mais amplo, sem nunca beliscar qualquer princípio constitucional e assegurar que as normas processuais sejam deles corolários.

Daí que o nosso legislador constituinte tenha consagrado, no n.º 6 do artigo 67.º da CRA, o direito ao recurso como um direito fundamental, corolário de um outro direito fundamental – o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, na medida em que este só tem total relevância se compreender o direito ao recurso, enquanto uma das manifestações do princípio “pro actione”, não na vertente de acesso à jurisdição (fase inicial), mas de acesso às sucessivas instâncias (fase posterior).

Trata-se, no entanto, de um direito fundamental de configuração legal, na medida em que se deixa para as leis processuais a tramitação do regime de recursos e, como se pode entender do conteúdo das normas acima expressas, há uma limitação desse próprio direito, uma vez que a Constituição consagra o direito de todo o cidadão a poder recorrer, enquanto as leis processuais permitem que alguns não possam exercer esse direito, porque o declararam expressa ou tacitamente.

O direito de acesso aos tribunais e o princípio da tutela efectiva, enquanto fundamento do direito geral à protecção jurídica, traduz-se na possibilidade de deduzir junto de um órgão independente e imparcial com poderes decisórios uma dada pretensão que, no caso, é o direito a recorrer de uma decisão da qual se discorda.

O direito ao recurso pretende assegurar aos particulares a possibilidade de sindicarem as decisões judiciais de molde a conseguirem uma decisão mais justa.

A Constituição estabelece que todas as decisões são passíveis de recurso, tanto que consagra, no nosso caso, um duplo grau de jurisdição e, depois, disciplina esse direito ao recurso, normativando a forma de tramitação do mesmo, para que todos tenham a mesma informação e se possa, assim, salvaguardar, o superior princípio da igualdade e, também, no acesso ao direito e à tutela efectiva.

A propósito, o Tribunal Constitucional tem vindo a traçar o rumo jurisprudencial de que o legislador deve consagrar de forma genérica a faculdade de recorrer (vide Acórdãos 148/2011; 154/2012 e Processo 466-A/2015), bem como, não poderá restringir o direito ao recurso quando isso representar uma vulnerabilidade ostensiva desse direito, por corresponder a uma violação do direito a uma tutela jurisdicional efectiva.

A nível do direito comparado e por similitude de legislações, transcreve-se da Constituição Portuguesa, anotada por Jorge Miranda e Rui Medeiros (Tomo I - 2.ª Edição, página 715), sobre a renúncia antecipada ao direito de recurso, o seguinte: “Dado que o direito ao recurso é uma garantia estabelecida pela Constituição não parece que o arguido possa renunciar antecipadamente ao seu exercício futuro e por isso se nos afiguram de muito duvidosa constitucionalidade as regras processuais que permitam que, por renúncia antecipada ou por vício processual não arguido atempadamente, o arguido fique privado do direito de recorrer de qualquer decisão”.

A recorribilidade de todas as decisões proferidas em processo penal, consagrado no n.º 1 do artigo 67.º da Constituição, dispensa julgamentos com depoimentos orais. Assim, a disposição do artigo 6.º da Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro – Lei sobre o Ajustamento das Leis Processuais Penais e Civil, não é conforme a Constituição. A oralidade é o meio para se obter os depoimentos e, por este facto, o que acima fica exposto não prejudica a prática forense de os julgamentos serem orais. É preciso, no entanto, que fique claro que o que se pretende dizer é que o julgamento oral não é igual a depoimentos orais, estes últimos não são constitucionais, aquele é.

Porquanto, tal como estabelece a lei, só haverá recurso da decisão tendo a produção de prova sido reduzida a escrito” conforme dispõe o artigo 15.º da Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro. Ora, acontece que, em processo penal, é obrigatória a produção de prova por escrito, para assegurar a ampla defesa, como direito do arguido garantido e protegido pela Constituição.

O julgamento de um recurso sem depoimentos escritos dos sujeitos processuais, restringe o âmbito da apreciação da segunda instância, do que pode resultar em boa ou má decisão, quer a favor do arguido, quer contra ele.

Daí que, para assegurar uma tutela efectiva, se impõe e se fará boa justiça que os depoimentos dos intervenientes sejam reduzidos a escrito.

Convém aqui sublinhar que o nosso CPP e a referida lei são anteriores à Constituição, razão que, seguramente, está na origem destas inadmissíveis divergências entre as normas constitucionais e infra-constitucionais.

Ora, tendo em conta o já exposto, na situação em análise, não pode estar vedado o direito ao recurso.

Este Tribunal conclui que o direito ao recurso é um direito com tutela constitucional contemplado em vários normativos processuais em matéria de tramitação, sendo essa disciplina, também ela, corolário do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva ao garantir o princípio da igualdade.

Por isso, apesar de a lei processual determinar expressamente, nos citados normativos, a obrigatoriedade de a parte dizer que não prescinde do direito que tem a recorrer, seja expressa ou tacitamente, temos necessariamente de concluir que esses normativos contrariam princípios fundamentais com consagração constitucional e, nessa medida, devem ser declarados inconstitucionais, na esteira da jurisprudência deste Tribunal Constitucional, importando aqui sublinhar a conclusão do Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 466-A/2015, onde se pode ler: “... Decorre da essência do Estado de Direito, não apenas a supremacia da Constituição, como a interpretação conforme à Constituição, o que implica o afastamento das normas em desconformidade com a mesma, quer em sentido formal, quer em sentido material. Daí que não seja permitido a aplicação de normas e interpretações limitativas dos direitos, liberdades e garantias fundamentais. A Constituição, além de reafirmar o Estado democrático de direito, veio alargar os direitos, liberdades e garantias, situando-se neste âmbito as garantias a todos os arguidos ou presos consubstanciadas no direito de ampla defesa e de recurso, n.º 1, 2 e 6 do artigo 67.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 57.º, da CRA...” .

Na esteira deste entendimento jurisprudencial, naturalmente que a decisão recorrida viola o princípio constitucional do direito ao recurso e também da tutela efectiva.

Assim, nos termos das disposições conjugadas do n.º 2 do artigo 47.º e n.º 1 do artigo 52.º da Lei do Processo Constitucional, deve ser anulado o julgamento efectuado sem a redução a escrito dos depoimentos e, por se tratar de processo sumário, esgotado que está o prazo de 8 (oito) dias para a realização do mesmo na forma sumária, deverá o Tribunal recorrido remeter o processo para instrução preparatória e subsequentes actos processuais.

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 4 de Setembro de 2018.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)

Dr. Américo Maria de Morais Garcia

Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dr. Raul Carlos Vasques Araújo

Dr. Simão de Sousa Victor (Relator) 

Dra. Teresinha Lopes