ACÓRDÃO N.º 504/2018
PROCESSO N.º 646-D/2018
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Bruno Alexandre Lopes dos Santos e outros, melhor identificados nos autos, vieram a este Tribunal interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no Processo n.º 1326, que confirmou a pena de 3 anos de prisão maior aplicada pela prática de crime de organização terrorista, nos autos do Processo n.º 948/17-A, que correu seus termos na 7.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, alegando que houve violação dos seus direitos previstos e protegidos pela Constituição da República de Angola (CRA).
Para fundamentar o seu recurso, os Recorrentes alegam, em síntese, o seguinte:
Pelo exposto, os Recorrentes pedem que este Tribunal dê provimento ao presente recurso e declare a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade interposto pelos Recorrentes, nos termos da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, ambos da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), assim como das disposições conjugadas da alínea a) e do § único do artigo 49.º, e da alínea e) do artigo 3.º, todos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC).
III. LEGITIMIDADE
O recurso interposto pelos Recorrentes foi julgado pelo Tribunal Supremo, a 20 de Fevereiro de 2018, e o Acórdão condenou-os na pena de 3 anos de prisão maior.
Os Recorrentes inconformados têm, assim, interesse directo em contradizer, resultando disso a sua legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC e do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto verificar se o Acórdão a fls. 1240 a 1243 dos autos, proferido pelo Tribunal Supremo, em que os Recorrentes foram condenados na pena de 3 anos de prisão maior, violou ou não os princípios da aplicação da lei mais favorável e o da legalidade, constitucionalmente protegidos.
V. APRECIANDO
a. Violação do princípio da aplicação da lei mais favorável
Os Recorrentes interpuseram o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade por entenderem que houve violação do princípio da aplicação da lei mais favorável, consagrado e protegido pela Constituição.
Essa alegação dos Recorrentes abrange o pedido de ver declarada a inconstitucionalidade do Acórdão do Tribunal “ad quem”, por este não ter aplicado a dosimetria penal de 1 ano, prevista no n.º 5 do artigo 25.º da Lei n.º 19/17, de 25 de Agosto, ao abrigo da qual “os actos preparatórios de constituição de uma associação, organização ou grupo de terrorista são puníveis com pena de prisão de 1 a 3 anos”.
Para os Recorrentes, a fls. 1271 verso, a supracitada disposição legal deveria ser aplicada no momento da condenação em primeira instância, mas o Tribunal “a quo” julgou com base na Lei n.º 34/11, de 12 de Dezembro, que condena os actos preparatórios de organização terrorista com a pena de 1 a 8 anos de prisão maior.
Em face disso, os Recorrentes consideram que houve violação do princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável, pois, se tivessem sido condenados com base na nova lei, a pena de prisão seria de 1 ano.
Este Tribunal entende que o dever de aplicação da lei penal mais favorável a cada crime concreto decorre da consagração e do respeito do princípio constitucional da mínima restrição necessária, proporcional e razoável dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, que se encontra previsto no artigo 57.º da CRA.
O princípio da aplicação retroactiva da norma de penalização branda decorre, por um lado, da proibição da retroactividade da lei desfavorável e, por outro, da imposição da lei penal mais favorável, trespassando, assim, a compreensão de que o cidadão não pode ser condenado senão em virtude de uma lei vigente que lhe seja vantajosa e útil no momento do seu julgamento.
A consagração do princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável é hoje usada contra o fim meramente jurídico-penal da prevenção da criminalidade atribuído às penas rígidas e à favor do constitucionalismo do Direito Penal, como uma garantia efectiva à protecção da dignidade humana dos cidadãos perante a justiça.
No caso concreto, os Recorrentes foram julgados e condenados pelo Tribunal de primeira instância com base na Lei n.º 34/11, de 12 de Dezembro, cujo crime de organização terrorista era punido com pena abstracta de 1 a 8 anos de prisão maior.
Contudo, à data do julgamento, a 24 de Novembro de 2017, já se encontrava em vigor a Lei n.º 19/17, de 25 de Agosto, que prevê uma moldura penal de 1 a 3 anos de prisão maior aplicável ao tal crime.
Embora esta nova lei revogue apenas os artigos 62.º a 64.º do diploma anterior e os Recorrentes tenham sido condenados ao abrigo do n.º 6 do artigo 61.º do mesmo diploma, com a entrada em vigor da Lei n.º 19/17, de 25 de Agosto, que, para aquele crime de que os Recorrentes vêm acusados e condenados, prevê uma moldura penal mais favorável, considera este Tribunal que aquela norma do artigo 61.º da Lei n.º 34/11, de 12 de Dezembro, tenha sido tacitamente revogada.
A condenação dos Recorrentes, no Tribunal a quo, com base no diploma legal anterior viola, desta feita, o princípio da aplicação da lei penal mais favorável.
No entanto, o Tribunal ad quem veio repor a justiça de que os Recorrentes reclamaram em virtude do recurso interposto, tendo, no seu Acórdão, a fls. 1242 verso, fundamentado que “a actividade concreta dos réus Angélico Bernardo da Costa, Joel Saide Salvador Paulo, Bruno Alexandre dos Santos e Landu Panzu José configura efectivamente a prática de um crime do tipo de organização terrorista, p. e p. pelo artigo 25.º, n.º 5, da Lei n.º 19/17 de 25 de Agosto, para o qual se convola, nos termos do artigo 447.º do CPP, porquanto, é a mais favorável em relação à Lei n.º 34/11, de 12 de Dezembro’’.
Assim sendo, o Tribunal “ad quem” não violou o princípio da aplicação retroactiva da disposição normativa mais favorável, já que a Lei n.º 19/17, de 25 de Agosto, foi aplicada, conforme requerido pelos Recorrentes.
Resulta disso que este Tribunal não perfilha do entendimento dos Recorrentes de que, com base na nova lei, o Tribunal ad quem devia ter aplicado a pena de 1 ano, correspondente à moldura penal de 1/3 de 3 anos de prisão maior, porque cabe tão-somente ao Juiz julgar e decidir, nos termos do artigo 175.º da CRA.
Ora, na formulação da decisão, importa ao julgador respeitar os limites mínimos e máximos de restrição da liberdade de locomoção definidos pela Lei n.º 19/17 de 25 de Agosto, e, ao que nos é dado a ver pelos autos a fls. 1242 e 1243, o Acórdão do Tribunal ad quem não aplicou uma pena acima da moldura penal abstractamente fixada.
Com efeito, é entendimento deste Tribunal que o Acórdão recorrido não violou o princípio da aplicação da lei mais favorável aos Recorrentes, uma vez que a pena de 3 anos de prisão maior aplicada vem prevista na Lei n.º 19/17, de 25 de Agosto.
b. Violação do princípio da legalidade
Os Recorrentes alegam que o Venerando Tribunal Supremo, com a condenação, violou o princípio da legalidade, defendendo que não há, na Lei sobre a Prevenção e o Combate ao Terrorismo, actos tipicamente criminosos imputáveis ao seu grupo, - “Predicar Angola”-, cujas actividades resumem-se apenas na divulgação das ideias do islão.
O princípio invocado pelos Recorrentes, com base no n.º 2 do artigo 65.º da CRA, é, precisamente, o da legalidade penal ou criminal, enquanto pressuposto fundamental do Estado de direito democrático, e visa prevenir sentenças condenatórias sem que haja antes uma lei que declare punível a acção ou omissão criminosas.
A legalidade penal abarca, antes de mais, a qualificação, através de uma lei do legislador ordinário, de um qualquer comportamento reprovável como crime e determina a medida da sua coacção.
Por essa razão, a lei criminal descreve, pormenorizadamente, em nome do princípio da tipicidade, a conduta considerada criminosa e a sua moldura penal, com vista a prevenir e facilitar a compreensão do cidadão sobre os factos passíveis de responsabilização criminal.
No caso vertente, os Recorrentes defendem, a fls. 1273 e 1274, que deviam ter sido condenados a 1 ano de prisão, à luz da Lei n.º 19/17, de 25 de Agosto, por este diploma legal, quanto à prática do crime de organização terrorista, consagrar aquela pena branda.
No entanto, a aplicação da referida lei não implica, automaticamente, a condenação dos Recorrentes na pena de 1 ano de prisão, porque a moldura penal abstracta prevista é de até 3 anos de prisão maior, cabendo ao Juiz decidir que pena a aplicar.
Neste sentido, houve o respeito pelo princípio da legalidade porque o Venerando Tribunal ad quem julgou com base numa lei vigente – a Lei n.º 19/17, de 25 de Agosto.
Em termos conclusivos, é entendimento deste Tribunal que o Acórdão do Venerando Tribunal recorrido não violou os princípios da aplicação da lei penal mais favorável e da legalidade, constitucionalmente protegidos.
DECIDINDO
Nestes termos
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 3 de Outubro de 2018.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. Carlos Magalhães (Relator)
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dr. Raul Carlos Vasques Araújo
Dra. Teresinha Lopes