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ACÓRDÃO N.º 506/2018

 

PROCESSO N.º 621 - C/2018

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

 

I.RELATÓRIO

  1. EMANUEL CHIJIOKE, t.c.p. Emanuel, Adilson ou Chijoke, com os demais sinais identificados nos autos, veio, com fundamento no n.º 6 do artigo 67.º da Constituição da República de Angola (CRA), na alínea a) do artigo 49.º e na alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, da 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional (LPC) - e da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro - Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP) - interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade contra a decisão proferida pela Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no dia 16 de Janeiro do corrente ano, no Processo n.º 191/17 "Habeas Corpus", que julgou improcedente o pedido de Habeas Corpus, oportunamente promovido pelo Recorrente.
  2. O Recorrente estava detido, desde Dezembro de 2016, por, alegadamente, integrar um grupo de cerca de 5 (cinco) nigerianos, que se dedicavam ao rapto de cidadãos estrangeiros (nomeadamente chineses, portugueses e indianos), utilizando armas e frequentemente com bastante violência, física e, principalmente, psicológica, para cobrança de resgates. Foi comprovada a prática de, pelo menos, 9 (nove) crimes dessa natureza, envolvendo vários ofendidos.
  3. Admitido o recurso no Venerando Tribunal Supremo e remetidos os autos ao Tribunal Constitucional, em 23 de Fevereiro de 2018, foi proferido despacho a ordenar que o Recorrente apresentasse as respectivas alegações no prazo de 20 dias, despacho que foi notificado ao Recorrente a 26 de Fevereiro.

As alegações foram apresentadas no dia 19 de Março do corrente ano, com fundamento nos artigos 66.º, 67.º e 68.º da CRA, do § único da alínea c) do artigo 315.º e do artigo 316.º, ambos do Código de Processo Penal (CPP) e do n.º 1, do artigo 40.º, da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro.

  1. Nas suas alegações, o Recorrente sustentou que:
  1. Foi detido no dia 16 de Dezembro de 2016, por suspeita da prática dos crimes de associação de malfeitores, ameaças, cárcere privado e outros, tendo a detenção sido ordenada pelo Magistrado do Ministério Público, junto dos Serviços de Instrução Processual/SIC Luanda;
  2. Apenas foi notificado da acusação no dia 30 de Agosto de 2017, "quando já se encontrava expirado o prazo legal da prisão preventiva";
  3. Não tinha sido julgado em 1ª instância decorridos 15 meses após a detenção (na data da apresentação das alegações), apesar dos sucessivos adiamentos do início do julgamento e sem que tenha tido conhecimento de qualquer prorrogação do prazo de prisão preventiva;
  4. E esse prazo só seria aplicável caso tivesse sido condenado por sentença transitada em julgado o que não aconteceu, uma vez que o julgamento nem tinha sido iniciado;
  5. Findo o prazo da prisão preventiva, o Recorrente deveria ter sido restituido à liberdade, sob pena de se consagrar, assim, a "perpetualidade da prisão";
  6. O Acórdão recorrido viola, assim, o n.º 1 do artigo 66.º, os nºs 4 e 5 do artigo 29.º e o artigo 72.º, todos da CRA.
  1. O Recorrente termina solicitando que:
  1. Seja declarada a inconstitucionalidade do douto Acórdão no Processo nº 191/17, de 16 de Janeiro do corrente ano, da Câmara Criminal do Tribunal Supremo;
  2. Consequentemente, seja dado provimento à providência de habeas corpus, com fundamento em excesso de prisão preventiva;
  3. Seja declarada a soltura do Recorrente.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos das disposições combinadas da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional - LOTC) e da alínea a) do artigo 49º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC).

Tem, pois, o Tribunal Constitucional competência para conhecer o presente recurso.

III. LEGITIMIDADE

Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, (LPC), têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.

O Recorrente foi requerente da providência de habeas corpus no processo que, com n.º 191/17, correu os seus termos na Câmara Criminal do Tribunal Supremo, tendo, por essa razão, legitimidade para interpor o presente recurso.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso é apreciar se o indeferimento da providência de habeas corpus pelo Acórdão proferido pela Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no dia 16 de Janeiro do corrente ano, no Processo n.º 191/17, viola as garantias do processo criminal, consagradas no artigo 67.º, o direito à providência de habeas corpus, estabelecido no artigo 68.º ambos da CRA.

V. APRECIANDO 

A.1. QUESTÕES PRÉVIAS

  • Em despacho de sustentação, defende o Venerando Relator do Tribunal Supremo, sobre o processo da providência de habeas corpus que correu termos no Venerando Tribunal Supremo, que o recurso extraordinário de inconstitucionalidade é inaplicável às providências de habeas corpus, em virtude de as suas decisões não constituírem caso julgado, podendo o preso, perante o indeferimento de um pedido, voltar a apresentar tantos pedidos da mesma providência quantos entender, ao invés de recorrer ao Tribunal Constitucional, que é uma instância essencialmente vocacionada a julgar normas e não factualidades.

Não acompanhamos este entendimento, uma vez que, com o recurso extraordinário de inconstitucionalidade ao Tribunal Constitucional de Angola, foram reconhecidas competências que vão mais além do que outras jurisdições constitucionais que nos são próximas, competindo-lhe, enquanto tribunal dos direitos humanos, conhecer os recursos de sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na CRA.

No caso concreto da providência do habeas corpus, tratando-se de um expediente excepcional para proteger princípios, direitos, liberdades e garantias previstas na CRA, é pacífico que a competência para seu julgamento é do Venerando Tribunal Supremo, que, dentro do sistema de controlo difuso da constitucionalidade vigente no nosso país, deve fiscalizar a observância das previsões constitucionais aplicáveis.

Este facto não pode, contudo, restringir o direito fundamental de interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade da decisão contra si proferida, nos termos combinados do no n.º 6 do artigo 67.º da CRA e do § único do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, uma vez que, com o Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal Supremo, ficam esgotados os recursos em tribunais comuns. Sugerir que se interpusessem novas providências, para um mesmo tribunal, sobre os mesmos factos, não dá satisfação ao direito de recurso das decisões desfavoráveis em processo penal. Seria inconstitucional, portanto. E claramente ineficaz, também.

  • Pelo Acórdão emitido no Processo nº 650/17-C, emitido a 31 de Julho último, pela 6ª Secção Criminal do TPL, constata-se que, embora a acusação e pronúncia respeitassem a 5 (cinco) arguidos, paradoxalmente 3 (três) deles foram julgados num outro processo, com o número 13/17-C, na 14ª Secção dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, com o mesmo objecto e réus, desconhecendo-se o respectivo resultado.

A.2. APRECIAÇÃO

Nos termos do artigo 68.º da CRA, o interessado pode requerer, perante o tribunal competente, a providência de habeas corpus em virtude de prisão ou detenção ilegal.

São exigidos, cumulativamente, dois requisitos:

  1. Abuso de poder, lesivo do direito à liberdadee
  2. Detenção ou prisão ilegal.

Ora, nos termos do § único do artigo 315.º do CPP, a ilegalidade da prisão pode advir de:

  1. ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
  2. ser motivada por facto pelo qual a lei não a permite;
  3. se manter para além dos prazos fixados por lei ou decisão judicial;
  4. se prolongar para além do tempo fixado.

Isto é, a interposição da providência de habeas corpus só é possível se se verificarem estes requisitos e só pode ser deferida se se confirmar a existência de, pelo menos, algum deles.

O Recorrente alega que a sua detenção é ilegal por se ter mantido para além dos prazos estabelecidos pela Lei n.º 25/15, na medida em que:

  1. Foi detido no dia 16 de Dezembro de 2016;
  2. Apenas foi notificado da acusação no dia 30 de Agosto de 2017, quando já se encontrava expirado o prazo legal da prisão preventiva;
  3. O início do julgamento foi sendo sucessivamente adiado.

Sem prejuízo da eventual violação dos prazos para a acusação e pronúncia (feita a 21 de Setembro de 2017 - 1 dia depois da interposição do pedido de habeas corpus), até à data da prolação do Acórdão da Câmara Criminal do Venerando Tribunal Supremo, 16 de Janeiro de 2018, o Recorrente completava 13 (treze) meses de prisão preventiva, desconhecendo-se se houve ou não prorrogação dos prazos, face aos limites e regras impostos pelos nºs 1, 2 e 3 do artigo 40.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro (LMCPP), nomeadamente com fundamento na complexidade do processo e na gravidade dos factos que se imputam ao requerente (factos, entretanto, alegados pelo Ministério Público no seu parecer).

No seu douto Acórdão, o Venerando Tribunal Supremo, seguindo de perto a promoção do Ministério Público, considerou que era sustentável manter-se a prisão preventiva à luz desta mesma Lei (n.º 25/15, de 18 de Setembro), alegando que, graças à complexidade do processo e à gravidade dos factos imputados ao requerente, se afigurava legal a manutenção da medida de coacção pessoal de prisão preventiva.

Neste momento, o Recorrente foi já julgado pela 6.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, através do Acórdão datado de 31 de Julho último, no processo n.º 650/17-C, tendo sido condenado (i) na pena única de 10 anos de prisão maior, (ii) no pagamento de kz. 400.000,00 de taxa de justiça, (iii) no pagamento de uma indemnização a um dos ofendidos, em kwanzas e valor equivalente a 1.500.000,00 euros e mais 11.000,00 euros e, ainda, (iv) a expulsão imediata do país logo após o cumprimento da pena, pela prática dos crimes de posse ilegal de arma de fogo, associação de malfeitores, ameaças, cativeiro, cárcere privado, "homicídio", mudança ilegal de nome, uso de documento falso, rapto e roubo qualificado.

Neste momento, sabe-se que foi interposto recurso deste Acórdão, que não foi, ainda, decidido pelo Venerando Tribunal Supremo.

Ora, nos termos do ponto 1º do artigo 658.º do CPP, só têm efeito suspensivo "... os recursos interpostos das sentenças ou acórdãos finais condenatórios...". Assim, o referido Acórdão não deveria produzir quaisquer efeitos, nomeadamente em matéria de prisão preventiva - e, consequentemente, o Recorrente deveria ser restituido à liberdade, tendo em conta o decurso dos prazos de prisão preventiva - enquanto não fosse confirmado pelo Tribunal ad quem, uma vez que o Réu se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória.

Esta conclusão é reforçada pelas disposições da CRA e da Lei n.º 25/15, das Medidas Cautelares em Processo Penal, que assentam num Estado de Direito Democrático, que faz uma clara aposta nas medidas não privativas da liberdade, tendo a prisão preventiva sido consagrada com um carácter excepcional.

Contudo, tendo em conta outros valores também consagrados pela CRA, como a paz social e a tranquilidade pública, agravada, neste caso concreto, pelo perigo de fuga e pelo perigo de continuação da actividade criminosa, é defensável que se mantenha a situação carcerária do Recorrente.

E, embora não exista uma hierarquia entre os princípios e normas constitucionais e os direitos fundamentais sejam indivisíveis e carreguem, em si, a unidade, em cada caso concreto pode mostrar-se necessária a sobreposição de uns em detrimento de outro ou outros.

Pelas razões expostas, considera o Tribunal Constitucional que o presente recurso é improcedente, não só pelo perigo de fuga e continuação da actividade criminosa e com vista à salvaguarda da paz, tranquilidade e ordem públicas, mas também por já ter sido condenado em 1ª instância.

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:

Sem custas, nos termos do regime geral de custas (Código das Custas Judiciais e artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho).

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 3 de Outubro de 2018.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Américo Maria de Morais Garcia

Dr. Carlos Magalhães

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto 

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira 

Dr. Raul Carlos Vasques Araújo

Dra. Teresinha Lopes (Relatora)