ACÓRDÃO N.º 507/2018
PROCESSO N.º 652-D/2018
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Nickolas Gelber da Silva Neto, com os demais sinais de identificação nos autos, veio, aos 3/07/2018, interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, datado de 29/05/2018, fls. 26 a 31 dos autos (Processo n.º 309/18), que negou provimento à providência de habeas corpus, por si requerida.
O referido Acórdão negou provimento à pretensão do Recorrente, por não ter havido excesso de prisão preventiva, nos termos do disposto na Lei n.º 25/15 de 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP), facto que, aliás, o Recorrente não alega.
Inconformado, veio dele recorrer para este Tribunal, alegando em síntese que:
Conclui, o Recorrente, nas suas alegações, pedindo que a decisão recorrida seja declarada inconstitucional porque violadora dos princípios e direitos: da legalidade e supremacia da Constituição; da proporcionalidade; da presunção de inocência; do direito à liberdade de ir, vir e ficar; do direito a um julgamento justo, legal e conforme; consagrados nos artigos 6.º n.º 2, 29.º n.º 4, 36.º n.º1, 57.º n.º 1, 64.º n.º 1, 66.º n.º 1, 67.º n.º 2 e 72.º n.º 1, todos da CRA, permitindo que o Recorrente aguarde o julgamento em liberdade, substituindo-se a medida de coacção de prisão preventiva por outra menos gravosa.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar, para decidir.
II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC).
III. LEGITIMIDADE
Para intervir no processo como parte, é necessária a existência de um interesse directo em demandar ou em contradizer. É este interesse que, nos termos da alínea a) do artigo 50º da Lei n.º 3/08, (LPC), determina a legitimidade do Recorrente.
Tem, assim, o Recorrente, legitimidade para interpor o recurso que submeteu à apreciação do Tribunal Constitucional, na medida em que é o principal interessado, pois a sua situação carcerária depende do pronunciamento do Tribunal e, neste processo, se vão discutir aspectos relacionados com os seus direitos fundamentais.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido a fls. 26 a 31 dos autos, datado de 29/05/2018, que negou provimento à providência de habeas corpus.
Cabe ao Tribunal Constitucional analisar se houve violação de direitos, liberdades e garantias estabelecidos na CRA.
V. APRECIANDO
O Recorrente interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 1.º Secção da Câmara Criminal do Venerando Tribunal Supremo.
Como questão primordial, cumpre asseverar que o Tribunal Constitucional, na sua missão de guardião da Constituição da República de Angola, está legitimado para tratar das questões atinentes à defesa das violações da Carta Magna, que o Recorrente alegar, a fim de ver declarados os efeitos decorrentes da violação da Lei Suprema.
No caso em apreciação, o ora Recorrente foi detido no dia 10 de Outubro de 2017, tendo-lhe sido aplicada a medida cautelar de prisão preventiva, nos termos do que vem consagrado no artigo 36º e seguintes da LMCPP. Impõe-se saber se houve violação dos prazos de duração da medida cautelar em causa. Para o efeito, devemos atender ao que vem consagrado no artigo 40º do citado Diploma.
Ora, o Recorrente foi acusado em 11 de Novembro de 2017 (1 mês depois da detenção, sendo o limite quatro meses); pronunciado a 1 de Fevereiro de 2018 (4 meses, limite 6 meses); e o julgamento foi marcado para 1 de Junho de 2018 (8 meses, limite 12 meses).
Não se verificam, por isso, quaisquer violações à Constituição da República de Angola, em matéria de prazos, pois a aplicação da medida de coacção resultou do que vem consagrado numa lei ordinária cujo conteúdo é conforme à Constituição.
A CRA permite restrições à liberdade e a outros direitos fundamentais, em determinadas situações. Estão devidamente asseguradas pelas normas constitucionais as restrições - mas não por tempo indeterminado - a direitos fundamentais, como a liberdade, pelo que podem ser claramente aplicadas restrições temporárias a este bem jurídico.
Tanto é assim que o n.º 1 do artigo 67.º da CRA permite a detenção de cidadãos e o legislador constituinte é claro ao remeter para a lei ordinária o estabelecimento das situações em que pode haver privação de liberdade.
A aplicação da medida de coacção ao Recorrente, seguiu a tramitação e respeitou os prazos legalmente estabelecidos, pelo que, neste sentido, não se vislumbra qualquer violação ao princípio constitucional da legalidade.
É o princípio da proporcionalidade que determina, em termos gerais, a aplicação de medidas de coacção, porquanto elas constituem um meio para o alcance de um fim. A prisão preventiva visa, dentre outros, garantir a continuidade do processo investigativo, finalidade directamente ligada ao ius puniendi do Estado, na sua missão de garantir a paz e a estabilidade social. Ora, não se verifica qualquer desconformidade entre o meio (prisão preventiva) e o fim a ser materializado com a prisão (paz social). Neste caso concreto, e por aplicação da ponderação dos interesses, a liberdade pode ceder face a um bem circunstancialmente mais importante. Tal orientação resulta do n.º 1 do artigo 57.º da CRA, que legitima in casu a aplicação da medida cautelar, que está sujeita a prazos, nos termos do n.º 1 do artigo 66.º da CRA.
O raciocínio imposto pelo princípio da proporcionalidade olha, acima de tudo, para o fim que se quer prosseguir com a restrição de um direito fundamental, devidamente seguido e acompanhado pela ideia do peso, do sacrifício que se impõe com a restrição. Devemos, neste sentido, construir uma relação entre o bem que se pretende proteger com a restrição e o bem que será desvantajosamente afectado com essa restrição, assim, esta relação deve ser edificada com auxílio dos princípios da justiça, da adequação e da razoabilidade.[1]
Contudo, o direito fundamental só deve ceder se os interessados na restrição demonstrarem, por via de argumentos de direito e de facto, a prevalência do bem, interesse, valor ou princípio que se opõe à liberdade protegida ou restringida. A vinculação imposta pelos direitos fundamentais pressupõe que as restrições sejam devidamente fundamentadas sob pena de ilegalidade. Para que seja legítima, a restrição deve ser fundamentada por recurso à Constituição, elemento que poderá ditar a sua aceitação pelos operadores jurídicos.[2]
A aplicação dos direitos fundamentais deve ser feita em respeito a outros valores constitucionais, na medida em que a efectivação dos valores ínsitos aos direitos fundamentais depende da sua harmonização, porquanto existem outros valores - também eles importantes - que resultam da ordem pública, ética moral ou social, autoridade do Estado, a segurança nacional entre outros, que devem ser atendidos no momento em que se vai fazer a conciliação.[3]
Pela análise feita, a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva enquadra-se nas restrições aos direitos fundamentais expressamente autorizadas pela Constituição da República de Angola, não se verificando, no presente caso, qualquer inconstitucionalidade. Há, por conseguinte, uma restrição ao conteúdo de um direito fundamental, operada através de uma intervenção do legislador ordinário, cujo objectivo é proteger outros valores constitucionais.
A aplicação de uma medida de coacção não significa a imputação ao arguido de qualquer facto; é, antes, um acto normal a praticar no decurso do processo penal, sem que daí se retire qualquer conclusão à cerca da autoria dos factos em investigação. Por outro lado, a aplicação de uma medida de coacção resulta de um processo de ponderação, cujos padrões de orientação constam da LMCPP, no entanto elas podem ser ou não arbitradas. Neste sentido, não cabe ao Tribunal Constitucional avaliar se a medida aplicada foi a mais justa ou adequada.
Considera, assim, este Tribunal que o Acórdão recorrido não violou preceitos constitucionais, nem os princípios invocados pelo ora Recorrente.
DECIDINDO
Neste termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 3 de Outubro de 2018.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia (Relator)
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dr. Raúl Carlos Vasques Araújo
Dra. Teresinha Lopes
[1] Jorge Reis Novais, As restrições aos Direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2º edição Coimbra editora 2010 p 755.
[2] Jorge Reis Novais, As restrições… ob cit…p 757.
[3] José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 4º edição Almedina p 266.