ACÓRDÃO N.º 509/2018
PROCESSO N.º 626-D/2018
(Processo Relativo a Partidos Políticos e Coligações)
Em nome do Povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Borges Marcos e outros, com os demais sinais de identificação nos autos, vieram ao Tribunal Constitucional impugnar os actos praticados pelo Presidente da FNLA, Lucas Benghim Gonda, nas reuniões do Bureau Político (BP), realizada a 9 de Fevereiro de 2018, e do Comité Central (CC), realizada de 10 a 11 de Fevereiro de 2018, por alegadas irregularidades jurídico-estatutárias ocorridas durante a sua realização.
Para o pedido impetrado, os Requerentes, em síntese, apresentam a seguinte factualidade:
Os Requerentes concluem pedindo a nulidade dos actos praticados pelo Presidente da FNLA, nas inconclusivas reuniões do BP e do CC realizadas nos dias 9, 10, 11, 12 e 13 de Fevereiro de 2018, e dos efeitos jurídico-políticos pretendidos pelo Requerido.
O Requerido foi regularmente notificado tendo contra alegado, essencialmente, com fundamento no seguinte:
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
O Tribunal Constitucional tem competência para conhecer processos de impugnação de deliberações de órgãos de partidos políticos ou de resolução de quaisquer conflitos internos que resultem da aplicação de Estatutos e Convenções Partidárias, conforme as disposições combinadas da alínea c) do n.º 2 do artigo 180.º da Constituição da República de Angola (CRA), do artigo 30.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho - Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC) da alínea d) do n.º 1 do artigo 63.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional (LPC) e do n.º 2 do artigo 29.º da Lei n.º 22/10, de 3 de Dezembro - Lei dos Partidos Políticos (LPP).
III. LEGITIMIDADE
Nos termos do artigo 26.º do Código do Processo Civil (CPC), aplicável ex vi do artigo 2.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (LPC), as partes na qualidade de militantes e membros da direcção do Partido Político FNLA, têm interesse directo em demandar e contradizer, pelo que assiste-lhes legitimidade no presente processo.
IV. OBJECTO
O objecto do presente processo é verificar a conformidade jurídico-legal e estatutária das reuniões do BP e do CC do Partido Político FNLA, à luz da Constituição e da lei.
V. APRECIANDO
A “República de Angola é um Estado democrático de direito que tem como fundamento a soberania popular, o primado da Constituição e da lei (..)”, nos termos do artigo 2.º da CRA.
Os Partidos Políticos na sua constituição e funcionamento devem respeitar os princípios democráticos consagrados na alínea f) do n.º 2 do artigo 17.º da CRA.
Parafraseando os Professores Raul Araújo e Elisa Rangel, in Constituição da República de Angola, anotada, Tomo I, Luanda 2014, pág. 240 “Um dos princípios essenciais à constituição e funcionamento dos partidos políticos é o da sua organização e funcionamento democráticos. Significa que alguns pressupostos da estrutura democrática dos partidos políticos, como são os casos da não discriminação, de qualquer espécie, no acesso ao partido, na aprovação dos estatutos e programas pelos órgãos representativos e pela eleição periódica dos titulares dos órgãos de direcção, nos seus vários escalões”.
Daqui se infere que os órgãos deliberativos de cada partido político devem obedecer a uma forma de realização de reuniões que garanta a participação democrática dos seus membros e a expressão livre das suas opiniões, princípios estes consagrados nas alíneas b) do artigo 8.º e n) do artigo 20.º ambos da LPP.
Daí que o artigo 8.º da LPP, em homenagem ao princípio democrático, postula “ a organização dos partidos políticos obedece à aprovação dos estatutos e programas por todos os membros ou por assembleia dela representativa”. De facto, ressalta da lei e da doutrina que, apesar dos partidos serem entes jurídicos que perseguem interesses próprios, há uma preocupação acrescida da Constituição e da Lei em conferir protecção, amparo e dignidade constitucional aos seus actos.
No caso “sub judice” avulta claro, dada a sua fundamental importância na realização da democracia, a substantividade normativa das deliberações adoptadas pelos órgãos de direcção dos partidos políticos. Neste contexto, uma dimensão fundamental na vida dos partidos políticos é a necessidade de observância das regras básicas inerentes à sua organização interna.
Aqui chegados, urge saber se as deliberações adoptadas nas reuniões dos órgãos de direcção do partido FNLA (BP e CC) são válidas, isto é, se obedeceram ao primado da Constituição, da lei e das disposições estatutárias.
a. Conformação Jurídico-legal e Estatutária da Reunião Extraordinária do Bureau Politico do Partido FNLA
De acordo com o artigo 38.º dos Estatutos da FNLA, o BP reúne-se ordinariamente de 4 em 4 meses e, extraordinariamente, sob convocação do Presidente do Partido. Resulta assim da sobredita disposição que a competência para a convocação destas reuniões é do seu Presidente, mediante o cumprimento de formalidades estatutárias.
Cabe referir que o n.º 5 do artigo 23.º estabelece que “as convocatórias para as reuniões ordinárias do CC e do BP devem ser elaboradas e entregues nominalmente aos seus membros com a antecedência de trinta (30) dias”. Dispõe ainda o n.º 8 desse mesmo artigo que “ as reuniões extraordinárias podem ter lugar sempre que as circunstâncias o exigirem”, ou seja, subentende-se que a lei não atribui o mesmo ritualismo formal quando se trata de reuniões extraordinárias.
Ora, os Requerentes alegam que, em momento algum, foi convocada a reunião do BP, realizada em 9 de Fevereiro e que desta não saíram conclusões e recomendações.
Contudo, tratando-se de uma sessão extraordinária parece-nos evidente pelas razões acima aduzidas que os Estatutos dispensam formalismos para a sua convocação, conforme preceitua a disposição legal citada. Daí que, mesmo não se vislumbrando nos autos prova bastante da existência de convocatórias nominais para a reunião do BP, a verdade é que a mesma parece ter registado a presença numérica necessária de 58 membros, para que este órgão reúna e delibere (fls. 88 a 90).
Em tese geral, a falta de convocatória viola o disposto no n.º 5 do artigo 23.º dos Estatutos, mas aqui essa questão não se coloca nesse prisma, por não se tratar de uma sessão ordinária, pelo que, em sede das sessões extraordinárias, devemos entender no rigor o que estabelece o princípio do consensualismo, em relação a informalidade dos actos.
Os Requerentes alegam, ainda, que a reunião não observou o quórum exigido, nos termos do artigo 24.º dos Estatutos.
Na esteira do artigo 42.º do ROFEP “as decisões do Bureau Politico são tomados ao abrigo do quórum estabelecido no artigo 24.º dos Estatutos do Partido ou por unanimidade dos seus membros”.
Apreciado o artigo 37.º dos Estatutos, este Tribunal constata que “o BP é composto de 81 membros, sendo 75 efectivos e 7 suplentes (…)” Entretanto, compulsados os autos, pode verificar-se que na reunião do BP estiveram efectivamente presentes 54 membros (Fls. 88 a 89).
Por isso, quer utilizando o critério dos 2/3, ou o critério da representatividade (50% + 1), em obediência ao estipulado no artigo 24.º dos Estatutos vislumbra-se que o quórum foi observado, uma vez que, o número de participantes exigido legalmente é de 54 (critério dos 2/3) ou 41 membros (critério da representatividade).
Logo, não têm razão de ser, porque infundadas, as alegações dos Requerentes sobre essa matéria.
Relativamente às outras questões impugnadas pelos Requerentes, respeitantes a exclusão de membros influentes, a não aceitação pela maioria da proposta de revisão dos Estatutos, a recusa pelos membros dos órgãos de direcção da proposta de convocação do Congresso Extraordinário não electivo e a falta de apresentação dos relatórios de conta dos exercícios de 2016, 2017 e da campanha eleitoral de Agosto de 2017, verificados os autos é de convir que os impetrantes não foram suficientemente diligentes na apresentação de provas bastantes para sustentarem as suas alegações, limitando-se a juntar alguns recortes de jornais, cartas trocadas entre o Presidente da FNLA e o Gabinete do Presidente da Assembleia Nacional e a lista do Comité Central (fls. 22, 23, 24, 25 e de 28 a 37).
Quanto às reuniões inconclusivas, o Tribunal Constitucional reconhece que existem nos autos, nomeadamente no Comunicado Final e na Acta da Reunião Extraordinária evidências contrárias às alegadas pelos Requerentes, porquanto os mencionados documentos contém recomendações e conclusões finais saídas da reunião do BP (fls. 87)
Por isso, é de ter em conta que, no âmbito da democracia intrapartidária, consagrada no já citado artigo 8.º da LPP, o princípio da livre expressão de opiniões (alínea e) do artigo 9.º), não prevalece sobre a vontade da maioria previsto nas disposições combinadas dos artigos 24.º dos Estatutos e 42.º do ROFEP.
Neste contexto, à luz da Constituição, as questões ora suscitadas em sede da reunião do BP concretizam e conformam-se ao princípio democrático abrangendo uma das suas dimensões clássicas: liberdade de expressão e de igualdade, em consonância com a afirmação do princípio da maioria, como um princípio constitucional geral.
b. Conformação Jurídico-legal e Estatutária da Reunião Ordinária do Comité Central
Estabelecem as disposições conjugadas dos artigos 28.º dos Estatutos da FNLA e 33.º do ROFEP que o CC reúne de 12 em 12 meses e extraordinariamente sempre que for necessário, por convocação do Presidente, ouvido o Bureau Politico.
Como pode ver-se não tem razão de ser a questão arguida pelos Requerentes ao invocarem a falta de convocatória, uma vez que constam dos autos, quer no requerimento inicial (fls. 3 a 9) quer na contestação (fls. 65, 71, 72, 73,74, 75,76,77, 78, 79 e 80) cópias de várias convocatórias assinadas pelo Presidente do Partido, com data de 8 de Janeiro de 2018, convocando os membros para uma reunião ordinária no dia 8 de Fevereiro de 2018, sem descurar ainda a sua publicação no jornal de Angola (fl. 65), pelo que constata este Tribunal que as convocatórias foram enviadas, tempestivamente, com base nos prazos previstos nos Estatutos.
Na mesma esteira, o BP debruçou-se sobre esta matéria, tendo adoptado por, unanimidade, a realização da reunião do CC para o dia 8 de Fevereiro (fls. 87) muito embora, a mesma não se tenha realizado na data inicialmente prevista, ocorrendo apenas nos dias 10 e 11 de Fevereiro. Porém, por si só, este adiamento não constitui uma violação do disposto no n.º 5 do artigo 23.º dos Estatutos como, erradamente, os Requerentes pretendem fazer crer, pois foi observado amplamente o princípio da publicidade do acto.
Sustentam os Requerentes que a mesma não observou o quórum legalmente exigido, porquanto, do universo de 411 membros, apenas 138 estiveram presentes, 26 dos quais não são militantes do Partido, pelo que cumpre apreciar a composição do CC. Vejamos:
Dispõem os artigos 27.º n.º 2 e 29.º, ambos, dos Estatutos da FNLA que o CC é composto por 411 membros, sendo 374 efectivos e 37 suplentes.
Assim, no sentido de ser devidamente salvaguardado o princípio democrático, os artigos 24.º dos Estatutos conjugados com o artigo 42.º do ROFEP estabelecem como regra o quórum presencial de 2/3. No entanto, em caso de inobservância deste critério aplica-se o princípio da representatividade (50% + 1).
Entretanto, o Requerido nas suas contra-alegações refere que participaram 225 membros, apresentando como elementos de prova 5 listas, nomeadamente:
Da apreciação das referidas listas, este Tribunal constatou que os membros que efectivamente participaram da reunião são os constantes de fls. 97 a 102 dos autos, que perfazem um total de 134, pois os demais não contam para efeito de quórum participativo ou deliberativo, por terem estado ausentes e, como tal, não participaram naquele fórum.
Por sua vez, comparada a lista de presenças constantes de fls. 97 a 102 com a relação nominal dos membros do CC anotada neste Tribunal em 2015, na sequência da realização do IV Congresso Ordinário, de fls. 28 a 39, apuramos que 5 dos participantes nas posições 30, 32, 113, 119, e 122 não são membros do CC. Além disso, verificou-se, ainda, que um dos participantes assinou duas vezes nas posições 18 e 52 da referida lista devendo, por isso, ser validada, apenas uma presença e uma assinatura.
Deste modo, da enunciação das listagens que acabamos de mencionar e analisar, fácil é de intuir que o número de membros que efectivamente estiveram presentes no CC é de 128 participantes, quórum inferior ao estatutariamente definido para que este órgão pudesse reunir e deliberar sobre as matérias nucleares da sua competência plasmadas no artigo 26.º dos Estatutos.
Assim sendo, a falta de quórum é, por um lado, um requisito impeditivo da realização da reunião sub judice e, por outro, causa directa de nulidade dos actos desencadeados e dos seus efeitos jurídicos, nos termos do n.º 1 do artigo 201.º do Código de Processo Civil.
Atendendo às razões de direito ora esgrimidas, ancoradas na inobservância dos formalismos legais e estatutários, conclui-se que a reunião do CC está eivada de irregularidades e, por via disso, os actos praticados são considerados inválidos.
Nos termos dos artigos 9.º e 24.º dos Estatutos, a inobservância do quórum de presenças legalmente exigido viola o princípio da representatividade, enquanto consequência da democracia representativa (artigo 8.º da LPP e alínea f) do n.º 2 do artigo 17.º da CRA), sempre exigível para salvaguarda jurídica do direito à expressão da vontade democrática.
Assinala-se que o princípio da democracia intrapartidária é entendido como uma faceta da democracia participativa para cuja realização a Constituição atribui e reconhece fulcral importância. Assim, como corolário lógico desse princípio e do princípio da legalidade devem prevalecer como um paradigma na organização e funcionamento dos partidos políticos, particularmente no que subjaz a adopção de deliberações importantes para a vida do Partido, como parece ser o caso em apreço.
No mesmo sentido, sustenta o Acórdão n.º 119/2010, do Tribunal Constitucional que julgou procedente o pedido de anulação da Reunião Extraordinária do CC do partido PDP-ANA, por violação do disposto no artigo 40.º dos Estatutos, referente à observância do quórum presencial de 2/3 dos seus membros para que este órgão reúna e adopte deliberações válidas. Neste caso, o Tribunal Constitucional declarou nulas as decisões tomadas na mencionada reunião com fundamento na falta de quórum presencial.
Assim compreendido, à luz da Constituição, da Lei e dos Estatutos entende este Tribunal que assiste razão ao pedido feito pelos Requerentes, no que respeita ao quórum presencial dos membros do Partido FNLA na reunião do CC, devendo por isso, considerar-se que não foram observados os procedimentos formais cabíveis
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas (artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional).
Tribunal Constitucional, em Luanda, 16 de Outubro de 2018.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite Silva Ferreira (Relatora)
Dra. Teresinha Lopes