ACÓRDÃO N.º 512/2018
PROCESSO N.º 598-B/2017
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Augusto Tchindombe Chonguela Pedro, melhor identificado nos autos, veio a este Tribunal interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo – que, pela prática do crime de violação, o condenou na pena de nove (9) anos de prisão maior e no pagamento de uma indemnização no valor de kz 400.000,00 (quatrocentos mil kwanzas) e beneficiou do perdão de ¼ da pena aplicada, à luz do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto, Lei de Amnistia, alegando que essa decisão violou os seus direitos e princípios constitucionalmente protegidos.
O Recorrente, no processo n.º 1155/10, que correu seus termos na 2.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial do Lobito, havia sido condenado, pelo crime de violação (artigo 393.º do Código Penal), na pena de seis (6) anos e dez (10) meses de prisão maior e na indemnização à ofendida por danos não patrimoniais, no valor de kz 800.000,00 (oitocentos mil kwanzas).
Para fundamentar o presente recurso, o Recorrente alega, em síntese, o seguinte:
Por tudo o que fica exposto, o Recorrente solicita que este Tribunal dê provimento ao presente recurso e, em consequência, declare a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer do recurso extraordinário de inconstitucionalidade interposto pelo Recorrente, nos termos da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, ambos da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), conjugados com as disposições da alínea a) e do § único do artigo 49.º, e da alínea e) do artigo 3.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC).
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente foi condenado pelo Tribunal a quo e, por não se conformar com a decisão, de fls. 280 a 288 dos autos, recorreu ordinariamente para o Tribunal Supremo que, por sua vez, agravou a pena no julgamento da causa. Disso resulta que o Recorrente, não se conformando com o Acórdão do Tribunal ad quem, tem interesse directo em contradizer, pelo que goza de legitimidade para interpor o presente recurso, nos termos e para efeitos da alínea a) do artigo 50.º da LPC e do n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto verificar se a decisão vertida no Acórdão de fls. 212 a 215 dos autos, proferida pelo Tribunal Supremo, viola os princípios da legalidade, da proibição da reformatio in pejus, do julgamento justo e conforme a lei e do in dubio pro reo.
V. APRECIANDO
Questão prévia
Consta das alegações, apresentadas a fls. 242 e 243 dos autos, que o Recorrente não foi notificado do Acórdão do Tribunal ad quem e que, relativamente ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade, a 1.ª instância não se pronunciou sobre a admissão do mesmo, tendo apenas se limitado a remeter o referido recurso directamente para o Tribunal Constitucional.
Ora, não tendo o Recorrente sido notificado do Acórdão do Tribunal ad quem, como alega, mas apenas do mandado de captura, e detido em consequência disso, constitui uma omissão de carácter procedimental, que só seria causa de nulidade se a lei o declarasse, como decorre do disposto no n.º 1 do artigo 201.º do CPC, aplicável por força do artigo 2.º da LPC.
É relevante, entretanto, aclarar que a função jurisdicional deste Tribunal, subsumível ao poder de administrar a justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional (n.º 1 do artigo 180.º da CRA), consiste, entre outras, em apreciar “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”, como prevê a alínea a) do artigo 49.º da LPC.
A irregularidade registada na fase da notificação não é, com efeito, objecto do presente recurso, tal como não o é o facto de o Recorrente ter dado entrada do recurso extraordinário de inconstitucionalidade no Tribunal a quo ao invés de o fazer junto do Tribunal ad quem, que proferiu o acórdão recorrido, nos termos do n.º 1 do artigo 41.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 42.º, ambos da LPC.
De acordo com as disposições legais acima referidas, a interposição do recurso é feita no Tribunal da causa (Tribunal Supremo, neste caso), competindo à referida instância apreciar a admissibilidade ou não do recurso.
Porém, a decisão do Tribunal a quo que admitiu o recurso, a fls. 237, não é vinculativa, ou seja, não interfere no poder legalmente reservado a este Tribunal de admitir o recurso, como o fez, em observância ao disposto no n.º 1 do artigo 5.º, n.º 1 do artigo 41.º e n.º 4.º do artigo 42.º, todos da LPC.
Feito este esclarecimento, importa agora apreciar as questões levantadas pelo Recorrente, relativamente à violação de direitos, princípios e garantias constitucionais.
Questões principais
a. Princípio da igualdade
O Recorrente alega que o Tribunal a quo, ao não reconhecer as suas declarações desacompanhadas de provas, também não podia considerar as acusações da suposta ofendida como sendo idóneas, por não estarem suportadas por elementos de prova, sob pena de violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 23.º e no n.º 4 do artigo 29.º, ambos da CRA.
É jurisprudência firmada neste Tribunal (Acórdãos nºs 121/2010 e 336/2014), que o princípio da igualdade de oportunidades consiste em conferir à defesa e à acusação igual oportunidade para intervir em todas as fases do processo.
Assim sendo, proibir o arguido de dispor de meios indispensáveis à sua própria defesa põe em causa a dignidade da pessoa humana e o Estado democrático de direito, por se traduzir numa violação ao princípio da igualdade material.
Nessa medida, uma acusação cujos vícios processuais não sejam evitados pode mais facilmente ocasionar um julgamento injusto e um processo não equitativo, contrariando as disposições legais do artigo 72.º e do n.º 4 do artigo 29.º da CRA.
No caso sub judice, este Tribunal entende que a defesa teve as mesmas possibilidades de intervenção no processo que a acusação dispôs, pelo que ficou salvaguardado o princípio da igualdade.
Essa questão é, por assim ser, totalmente diferente da alegada relevância que o Juiz terá atribuído às declarações sem provas da vítima, supostamente em detrimento daquelas prestadas pelo Recorrente.
Para o efeito, a alegação de que o Recorrente foi prejudicado pelas acusações sem provas da Recorrida não preenche os requisitos para um pronunciamento jurídico-constitucional, na medida em que a este Tribunal não compete valorar a forma como as declarações de partes processuais são ajuizadas por qualquer outro Tribunal.
É que a alegada existência da inversão do ónus da prova para prejudicar o Recorrente não se afere partindo da afirmação (a fls. 183) de que “em nenhum momento em audiência o Réu convenceu o Ministério Público … de que não tivesse sido ele o infractor…”.
Consta dos autos, a fls. 9 e seguintes, provas de realização de interrogatórios e prestação de declarações, pois, independentemente do processo ser de partes, com direito à apresentação de provas, coube ainda ao órgão jurisdicional, na fase de audiência de julgamento (a fls. 96-102, 108-111, 127-129, 133-134, 146-147, 156, 170-172 e 173), buscar a verdade material e objectiva, quer quanto à ocorrência do acto criminoso, quer quanto à identidade do autor do crime.
Assim, este Tribunal considera que não houve violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 23.º e no n.º 4 do artigo 29.º, ambos da CRA.
b. Princípio da proibição da reformatio in pejus
O Tribunal de 1.ª instância condenou o Recorrente na pena de seis (6) anos e dez (10) meses de prisão maior, e no pagamento de uma indemnização no valor de kz 800.000,00 (oitocentos mil kwanzas), pelo crime de violação.
Interposto o recurso dessa decisão, o Recorrente viu a sua pena agravada pelo Tribunal ad quem, que o condenou a nove (9) anos de prisão maior e no pagamento de indemnização no valor de kz 400.000,00 (quatrocentos mil kwanzas), razão pela qual, alega que houve violação do princípio da reformatio in pejus, já que, a seu ver, tendo recorrido da decisão condenatória, não competia ao Tribunal ad quem agravá-la.
Na verdade, o artigo 667.º do CPP proíbe a reformulação da pena sempre que o recurso tenha sido interposto pelo Recorrente ou por este e pelo Ministério Público em simultâneo, mas no interesse daquele.
Da análise dos autos, a fls. 214 e verso, resulta a constatação de que o Tribunal recorrido reformulou a pena com o fundamento na agravação especial, que estabelece a substituição da moldura penal por uma superior se o criminoso for tutor (n.º 2 do artigo 398.º do CP).
Pelo acima exposto, entende este Tribunal que a reformulação da condenação foi, por excepção, legalmente admissível por ter havido uma qualificação diversa dos factos respeitantes às circunstâncias modificativas da pena.
Assim, a alteração da pena recorrida de seis (6) para nove (9) anos de prisão maior não violou o princípio da proibição da reformatio in pejus, por tal procedimento resultar da observância, pelo Venerando Tribunal Supremo, do disposto no n.º 1 do § 1.º do artigo 667.º do CPP.
c. Violação do princípio do julgamento justo e conforme a lei
Alega o Recorrente que o Tribunal a quo violou a norma do artigo 72.º da CRA, que reconhece a todo o cidadão o direito a um julgamento justo e conforme a lei.
No entender do Recorrente, o referido Tribunal descurou por completo a relevância da falsidade do exame ginecológico apresentado pela acusação, ignorou o conteúdo do teste médico, mas usou-o para retirar parcialmente a conclusão de que a vítima foi forçada a ter relação sexual, sem, no entanto, o fundamentar.
Sobre a questão colocada pelo Recorrente, é importante realçar que, no domínio do direito probatório, vigora no ordenamento jurídico angolano o princípio da livre apreciação da prova, como consagra o artigo 655.º do CPC (§ único do artigo 1.º do CPP), segundo o qual, “o tribunal colectivo aprecia livremente as provas e responde segundo a convicção que tenha formado acerca de cada facto quesitado”.
Com efeito, em virtude do princípio supracitado, as provas são apreciadas livremente, sem que estejam subordinadas a escalas de hierarquização, e consideradas de acordo com a convicção que possam gerar no Juiz em relação à prática e autoria do acto criminoso.
No caso em concreto, a fls. 187, o Tribunal a quo considerou que ficou plenamente provada a prática do crime pelo Recorrente através das declarações elucidativas da ofendida, que não criaram dúvidas no espírito do julgador, pelo grau de maturidade, capacidade demonstrada e pelo modo natural como narrou os factos e agressões de que diz ter sido vítima.
A 1.ª instância exerceu, por assim dizer, a liberdade de julgamento, consubstanciada na livre apreciação de provas de fls. 98 e 99 e na convicção que formou quanto à execução do acto criminoso e identidade do seu autor.
Assim, entende este Tribunal não ter havido violação do direito a um julgamento justo e conforme a lei, porquanto, a condenação teve como fundamento elementos probatórios legalmente admissíveis.
d. Violação do princípio in dubio pro reo
O Recorrente alega que, até ao julgamento, o Tribunal a quo não havia formado a sua convicção sobre quem teria sido o autor do crime, tendo, por isso, ordenado novas diligências para a descoberta da verdade.
Ora, o princípio do in dubio pro reo, enquanto substrato do direito à presunção de inocência, tem sido recorrentemente objecto de fundamentação na jurisprudência deste Tribunal (Acórdãos nºs 122/2010, 464/2017 e 508/2018).
A falta de provas sobre a ocorrência de um ilícito criminal e a mínima existência de dúvida relevante sobre a autoria do crime implica, como consequência incontornável, a aplicação do princípio in dubio pro reo, e a absolvição do arguido.
No entanto, a condenação do aqui Recorrente está relacionada com o poder da livre apreciação da prova exercido legalmente pelo Tribunal de 1.ª instância. Ademais, através dos autos de instrução processual, o Tribunal ad quem veio aferir, em sessão de julgamento, da responsabilidade criminal do Recorrente no crime de violação contra menor de 13 anos de idade.
Com este procedimento, é entendimento deste Tribunal que o Acórdão do Venerando Tribunal Supremo não violou o princípio in dubio pro reo, corolário do direito à presunção de inocência, previsto no n.º 2 do artigo 67.º, nem pôs em causa o direito fundamental a um julgamento justo e conforme, consagrado no artigo 72.º, ambos da CRA.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 24 de Outubro de 2018.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr. Carlos Magalhães (Relator)
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dr. Raul Vasques Araújo
Dra. Teresinha Lopes