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ACÓRDÃO N.º 514/2018

PROCESSO N.º 545-B/2017

(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO 

Rui Carlos dos Santos Paiva, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Despacho proferido pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, a 28 de Outubro de 2016, no Processo n.º 15454/2015, que o amnistiou do crime de dano em edificação ou construção pertencente a outrem, mas obrigou-o a pagar ao ofendido a indemnização de kz 13.050.000,00 (treze milhões e cinquenta mil kwanzas), no período de um ano.

A Veneranda Juíza Conselheira Presidente em exercício admitiu o recurso extraordinário de inconstitucionalidade por se tratar de um Despacho que pôs fim ao processo, tendo, por isso, esgotado a cadeia recursória, nos termos do § único, alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC).  

Inconformado, o Recorrente apresentou a este Tribunal as seguintes alegações de recurso:

  1. Os acórdãos dos tribunais devem respeitar o princípio da legalidade, pois, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil (CPC), uma sentença é nula “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
  2. Não se sabe se a decisão de que se recorre é um Acórdão ou um mero despacho, se emanou de um tribunal colectivo ou singular e se a assinatura pertence a um Juiz Conselheiro, escrivão de direito, ajudante ou a outro funcionário do Tribunal Supremo.
  3. Faltou a estruturação da decisão recorrida, que devia conter um relatório dos factos, seguindo-se a aferição da competência do Tribunal para conhecer do pedido, avaliação da legitimidade das partes, apreciação dos factos, subsunção jurídica e, por fim, decisão.
  4. Não se sabe como é que o Tribunal Supremo concluiu que o Recorrente deve pagar kz 13.050.000,00 (treze milhões e cinquenta mil kwanzas), uma vez que não fundamentou a própria decisão.
  5. O Tribunal Supremo, ao dizer apenas que o Recorrente está amnistiado e deve pagar o valor supracitado no prazo de um ano, violou os princípios da igualdade e legalidade, e o direito a um processo equitativo, previstos nos artigos 23.º, 29.º e 72.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA).
  6. O Tribunal Supremo violou o princípio da igualdade porque a decisão não trata de igual modo as partes e cingiu-se ao conteúdo do Acórdão do Tribunal Provincial do Huambo, com o qual não esteve de acordo e, por isso, recorreu.
  7. O Tribunal recorrido violou o princípio da verdade material porque a decisão não teve por base os factos alegados e nem apreciou o pedido, mas aplicou a Lei da Amnistia.

O Recorrente solicita, em síntese, que este Tribunal dê provimento ao presente recurso e declare inconstitucional a decisão do Tribunal Supremo.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II- COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º, e da alínea e) do artigo 3.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC). 

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente foi condenado pela 1.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial do Huambo, onde correu termos o Processo n.º 195/12, por ter praticado o crime de dano em edificação ou construção pertencente a outrem, punível nos termos do artigo 472.º do Código Penal (CP).

Da sentença proferida a 19 de Junho de 2014, o Recorrente interpôs recurso ordinário para o Tribunal Supremo, de que resultou Despacho que declarou o crime amnistiado e ordenou a baixa dos autos à primeira instância, para efeitos de execução do pagamento de indemnização.

Resulta, daqui, que o Recorrente tem interesse directo em contradizer, pelo que tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como prevê a alínea a) do artigo 50.º da LPC e o n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto verificar se é ou não inconstitucional o despacho proferido pelo Tribunal Supremo, que declarou amnistiado o crime de dano em edificação ou construção pertencente a outrem e obrigou o Recorrente a indemnizar o lesado sob condição resolutiva, nos termos do disposto no artigo 4.º da Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto, Lei de Amnistia.

V. APRECIANDO

Antes de entrarmos na análise do presente processo, convém no entanto referir que o objecto do presente recurso poderia ter recaído sobre um Acórdão da Câmara Criminal do Tribunal Supremo se o Recorrente fizesse uso da faculdade prevista no n.º 3 do artigo 700.º do Código de Processo Civil.

Não o tendo feito, é pois, sobre o despacho de fls. 254, datado de 28 de Outubro de 2016, que vai incidir a nossa apreciação. 

No Despacho recorrido, veio o Venerando Tribunal Supremo estabelecer que, não sendo o crime de dano em edificação ou construção pertencente a outrem punível com pena superior a 12 anos de prisão maior (artigo 472.º do CP), o Recorrente beneficia de amnistia, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º da Lei de Amnistia.

No entanto, o Tribunal recorrido, tal como decidiu o Tribunal “a quo”, no seu acórdão proferido no Processo n.º 195/12, fixou o valor de kz. 13.050.000,00 (treze milhões e cinquenta mil kwanzas) a título de indeminização a favor do lesado pelos danos patrimoniais decorrentes do comportamento do arguido.

As alegações de recurso permitem a este Tribunal extrair as seguintes questões que servirão de base à fiscalização da conformidade ou desconformidade do despacho com a Constituição e as leis em vigor:

  1. Violação do princípio da legalidade;
  2. Violação do princípio da verdade material e do julgamento justo;
  3. Violação do princípio da igualdade e do direito a processo equitativo.

Fixados os limites da abordagem deste Acórdão, cumpre apreciar o seguinte:

  1. Violação do princípio da legalidade

O Recorrente defende que os acórdãos dos tribunais devem respeitar o princípio da legalidade, fundamentando as matérias de facto e de direito, pelo que, a não fundamentação da decisão por parte do Venerando Tribunal Supremo torna o seu Despacho nulo, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC. 

Ora, a disposição supracitada diz respeito às causas da nulidade dos arrestos, que estabelece que “é nula a sentença: quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.    

Contrariamente ao que alega o Recorrente, o Tribunal ad quem fundamentou a sua decisão nas disposições legais da norma do n.º 1 do artigo 1.º da Lei de Amnistia, que estabelece que “são amnistiados todos os crimes comuns puníveis com pena de prisão até 12 anos, cometidos por cidadãos nacionais ou estrangeiros até 11 de Novembro de 2015”.

Assim, o Tribunal recorrido não violou o princípio da legalidade, uma vez que o Venerando Juiz Conselheiro, a fls. 254, prolatou o Despacho com fundamento no seguinte: “o réu foi condenado pela prática de um crime de dano em edificação ou construção pertencente a outrem, p.e p. pelo art.º 472.º, n.º 1, do CP. Não sendo tal crime punível com pena superior a 12 anos, beneficia o réu da amnistia, nos termos do art.º 1.º, n.º 1, da Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto, pelo que deve pagar no período de um ano a indemnização ao ofendido Frederico Vitungayala, no valor de Kz: 13.050.000,00 (treze milhões e cinquenta mil kwanzas). Baixem os autos a 1.ª instância para os devidos efeitos”.

O princípio da legalidade vem previsto no n.º 2 do artigo 6.º da CRA e implica a subordinação dos tribunais à Constituição, devendo respeitar e fazer respeitar as leis.

Desta feita, o princípio da legalidade só seria violado caso o despacho recorrido não tivesse sido fundado nas disposições legais da Lei de Amnistia. No entanto, resta saber se a forma de aplicação respeitou ou não o princípio do julgamento justo, subsumível à administração de uma justiça funcional, independente e baseada na verdade material.   

  1. Violação do princípio da verdade material e do julgamento justo

Observando o princípio da suficiência do direito penal (artigo 2.º do CPP), o lesado requereu a indemnização por danos patrimoniais dentro da própria acção penal.

Ora, aparentemente, faria sentido a decisão preferida pelo Tribunal ad quem quando obriga o Recorrente a pagar a indemnização em virtude de, a 19 de Junho de 2014, ter sido já condenado para o efeito, no processo de polícia correcional, sob o n.º 195/12, de fls. 250.

Tal obrigação, reconfirmada no despacho do Tribunal ad quem, respalda-se no n.º 2 do artigo 4.º da Lei da Amnistia, que determina o seguinte: “tratando-se de crime patrimonial em que haja condenação por indemnização, o benefício da amnistia ou perdão é concedido mediante reparação ao lesado pelo período de até um ano”.

No entanto, esse normativo padece de vícios de inconstitucionalidade e encerra uma inadvertida contradição em face do espírito e da letra da Constituição de 2010.

A verdade é que a Constituição vigente disciplina, no seu artigo 62.º, que “são considerados válidos e irreversíveis os efeitos jurídicos dos actos de amnistia praticados ao abrigo da lei competente”, que, neste caso concreto, é a Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto.

O disposto no n.º 2 do artigo 4.º da Lei de Amnistia contém uma clara contradição, porquanto, para efeitos de salvaguarda da certeza jurídica e protecção dos interesses legítimos dos cidadãos, não pode existir uma condição resolutiva entre o pagamento da indemnização e a amnistia. Ou seja, uma não está dependente da outra e o facto de não existir uma relação entre ambas, não significa que o Recorrente não tenha de ressarcir o lesado dos prejuízos sofridos.

A amnistia implica a anulação da pena imposta ao crime, extinguindo a condenação e o facto criminoso que esteve na sua base, sem deixar margens de decisão diversa, quer dizer, não permitindo que o julgador suste os efeitos jurídicos do crime amnistiado. Contudo, a indemnização mantém-se naturalmente até para protecção do direito de reparação do prejuízo causado à vítima.

A amnistia actua sobre a própria infracção que determinou a aplicação da pena, fazendo-a como que desaparecer do mundo do direito ao apagar os factos incriminados, destruindo retroactivamente os seus efeitos e eliminando aqueles cuja acção persiste e a partir daí tudo se passa como se não tivesse existido. O mesmo é dizer que a amnistia acaba por levar à situação anterior, antes da imputação de qualquer outra conduta criminosa ou seja, é como se não tivesse existido qualquer infracção.

Porém, podem existir razões que imponham limites a este princípio, obstando a produção de alguns efeitos da amnistia, cujo alcance depende de considerações de oportunidade e de justiça reconhecidas pelo legislador, o qual, em cada diploma, lhe há-de assinalar e demarcar a sua amplitude.

Daí que o artigo 5º da Lei de Amnistia constitua uma limitação ao princípio da irreversibilidade e vem expressamente referir que a mesma não prejudica a indeminização por perdas e danos, podendo os ofendidos instaurar a competente acção cível.          

Pelo exposto, entende este Tribunal que o Despacho está ferido de inconstitucionalidade por condicionar o benefício da amnistia ao dever de indemnizar no prazo de um ano, contrariando o primado da Constituição e da lei. 

3.Violação do princípio da igualdade e do direito a processo equitativo

 Nas suas alegações, o Recorrente sublinha que as partes processuais não foram tratadas de modo igual, porque o despacho recorrido cingiu-se à sentença do Tribunal a quo que o obriga a indemnizar o lesado.

O princípio da igualdade citado pelo Recorrente encontra consagração constitucional no n.º 1 do artigo 23.º, determinando que “todos são iguais perante a Constituição e a lei”.

O n.º 4 do artigo 29.º da CRA determina que “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo” e, por seu turno, o artigo 72.º da CRA define o “direito a julgamento justo, célere e conforme a lei”, que rege a concepção, instituição e actuação de todo o sistema de justiça administrativo-penal angolano.   

O princípio da igualdade permite afastar o livre arbítrio no tratamento das partes e assegurar o cumprimento de procedimentos que visem colocar à disposição da defesa e da acusação condições indispensáveis à realização da justiça ou protecção contra abusos de poder, quer seja nos processos de fórum penal, quer seja nas acções cíveis. 

No entanto, o princípio da igualdade concretiza-se no facto de que, estando as partes processuais “in pari causa”, quer dizer, em igualdade de circunstâncias, devem ser tratadas como iguais. E, havendo diferença de situações, as partes devem beneficiar de tratamento desigual.

Compulsados os autos, é entendimento deste Tribunal que ao Recorrente e ao lesado foram assegurados os direitos de defesa, do contraditório, de consulta do processo, da notificação e dos recursos ordinários e extraordinários.

Quer com isto dizer que o despacho do Tribunal ad quem não violou o princípio da igualdade, consagrado nos termos dos artigos 23.º da CRA.

Quanto ao direito a um processo equitativo, é relevante referir que este pressuposto fundamental não integra apenas o dever dos tribunais assegurarem às partes a efectividade do direito de defesa, da igualdade de armas e do princípio do contraditório, mas também a estruturação do processo de decisão.  

O Recorrente alega que houve falta de estruturação da decisão recorrida, porque, a seu ver, o despacho devia contemplar relatório, competência, legitimidade e objecto do processo, apreciação e, por último, sentença.

No seguimento dessa alegação do Recorrente, é relevante referir que o Direito Processual Civil angolano prescreve a existência de despachos nos termos do artigo 679.º do CPC, sendo que, no caso presente, o Tribunal ad quem proferiu um despacho cuja decisão pôs termo ao processo.

Como já foi referido, a inconstitucionalidade do despacho recorrido reside na relação condicionante da amnistia ao pagamento da indeminização

O crime de dano em edificação ou construção pertencente a outrem foi amnistiado e a amnistia não extingue a responsabilidade civil. Contudo, a indemnização já foi objecto de decisão no Processo n.º 1361/2011, que correu termos no Tribunal a quo, razão pela qual deve o Recorrente, querendo, interpor recurso para o Tribunal competente da decisão referente ao dever de natureza cível de indemnizar o lesado, uma vez que não compete a este Tribunal, neste caso concreto, apreciar a matéria relativa ao valor da indemnização.

DECIDINDO

Nestes termos,                        

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:

Com custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, 7 de Novembro de 2018.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) ­

Dr. Américo Maria de Morais Garcia

Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa

Dr. Carlos Magalhães (Relator) 

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dr. Raul Carlos Vasques Araújo

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Teresinha Lopes