ACÓRDÃO N.º 516/2018
PROCESSO N.º 544-A/2017
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
José Inácio Resende, t.c.p. “René”, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido nos autos do Processo n.º 12388/12, de 27 de Novembro de 2012, na 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, com base nos seguintes argumentos:
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Plenário do Tribunal Constitucional é competente para apreciar e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), do artigo 53.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC) e da alínea b) do artigo 23.º do Regulamento Geral do Tribunal Constitucional.
III. LEGITIMIDADE
Os recursos só podem ser interpostos por quem é parte principal na causa e que tenha ficado vencida (cfr. o n.º 1 do artigo 680.º do CPC).
Ora, o Recorrente foi parte no Processo n.º 12388/12, em que se proferiu a decisão recorrida (em que se agravou a sua pena de 2 (dois) para 18 (dezoito) anos de prisão maior), que correu trâmites na 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo.
Assim sendo, o Recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da LPC.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso é a decisão vertida no Acórdão proferido pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, na parte em que revogou a decisão proferida pelo Tribunal a quo e condenou o Recorrente a uma pena mais grave do que a anterior.
V. APRECIANDO
Como questão prévia, importa referir o seguinte:
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi recebido e admitido pelo Tribunal Supremo (Câmara Criminal), após reclamação do Recorrente da subida dos autos, para o Tribunal Constitucional. Consequentemente, o Juiz Presidente do Tribunal Constitucional, distribuiu o processo para relato. O Juiz Relator, por via da Secretaria Judicial, procedeu à notificação do Recorrente para, nos termos dos artigos 45.º e 52.º n.º 1 da LPC, apresentar as alegações devidas, vide fls. 254 dos autos.
Todavia, compulsados os autos, constata-se a inexistência dessa peça legal (vide fls. 255), desconhecendo-se as razões da falta de apresentação das referidas alegações por parte do Recorrente. Ora, a não apresentação das alegações constitui uma omissão legal, que nos termos do n.º 2 do artigo 690.º do CPC (aplicado por força do artigo 2.º da LPC), dá lugar à deserção do recurso.
A - Sobre a ausência de alegações
O entendimento deste Tribunal quanto à aplicação subsidiária das disposições do Código de Processo Civil ao Processo Constitucional não deve ser tão rígida nem automática, uma vez que, no processo constitucional, vigora o princípio da adequação funcional e da autonomia.
Assim, seria excessivo recusar conhecer do recurso por falta de alegações, cuja fundamentação não limita os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, entendendo-se que quando não haja as alegações se dê como reproduzido o que já consta do requerimento de interposição do recurso, uma vez que deste documento se pode depreender o pedido do Recorrente.
O segmento constante da jurisprudência deste Tribunal nos Acórdãos nºs 355/2015, 358/2015, 364/2015, segundo a qual, a falta de alegações, não constitui, para o processo constitucional, motivo impeditivo do conhecimento do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, e, por esta razão, o Tribunal vai apreciar o recurso interposto pelo Recorrente.
Deste modo, a apreciação a que aqui se procede tem como suporte o Acórdão recorrido e o requerimento de interposição do recurso extraordinário de inconstitucionalidade que elenca os artigos que o Recorrente considera terem sido violados com a prolação da decisão do Tribunal Supremo.
A questão a apreciar pelo Tribunal Constitucional resume-se em saber se o Venerando Tribunal Supremo poderia ou não e com que fundamento, alterar a qualificação jurídico-penal dos factos recolhidos na instância recorrida e sobre os quais tomou a sua decisão.
B - Sobre o princípio legal da “reformatio in pejus”
O Tribunal Constitucional vai, pois, apreciar e decidir sobre a questão que se coloca, que é a de aferir se a condenação do Recorrente pelo Venerando Tribunal Supremo, em pena mais grave, ofende o princípio da proibição da “reformatio in pejus” previsto no artigo 667.º do CPP.
Este princípio estabelece que o Venerando Tribunal Supremo pode atenuar a pena, mas não agravá-la quando o recurso for interposto no interesse do réu, salvo duas excepções conforme § 1.º n.º 1 do artigo 667.º do CPP “1º Quando o tribunal superior qualificar diversamente os factos, nos termos dos artigos 447.º e 448.º, quer a qualificação respeite à incriminação, quer a circunstâncias modificativas da pena; 2º Quando o representante do Ministério Público junto do tribunal superior se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena, aduzindo logo os fundamentos do seu parecer, caso em que serão notificados os réus, a quem será entregue cópia do parecer, para resposta no prazo de oito dias””
Vejamos, em seguida, as duas excepções legais à proibição da “reformatio in pejus” previstas nos parágrafos 1º e 2º deste artigo do CPP.
Primeira excepção: No processo em apreciação o Venerando Tribunal Supremo qualificou diversamente os factos, ao considerar não provada a atenuante extraordinária “provocação” que resulta em crime de homicídio (artigo 370.º, n.º 1 do CP).
Sobre esta questão importa referir que o artigo 667.º do CPP, no n.º 1 do parágrafo 1º explicita o seguinte: “Parágrafo 1º- A proibição estabelecida neste artigo não se verifica: 1º Quando o tribunal superior qualificar diversamente os factos, nos termos do artigo 447.º e 448.º, quer a qualificação respeite à incriminação, quer a circunstâncias modificativas da pena...”
O artigo 447.º do CPP atrás referido estatui que “o tribunal poderá condenar por infração diversa por que o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente...”.
Importa, assim, verificar se o Tribunal Supremo, quando alterou a pena aplicada ao Recorrente respeitou, ou não, o disposto no artigo 477.º do CPP, sob pena de ter infringido o disposto no artigo 667.º do CPP que proíbe a “reformatio in pejus”.
Ao que tudo indica, o Venerando Tribunal Supremo, nos termos do disposto no artigo 447.º fez o agravamento da pena, com base no disposto no despacho de pronúncia considerando “não sendo de dar como provada a atenuante extraordinária modificativa prevista no artigo 370.º, n.º 1 do Código Penal” (fls. 220 verso dos autos), passando, desta forma a pena de 2 (dois) anos para 18 (dezoito) anos.
Segunda excepção: Relativa ao recurso do Ministério Publico no caso em apreciação, verificou-se que o Ministério Público se limitou a pedir a mera reapreciação da sentença proferida pela 5.ª Secção da Sala Criminal do Tribunal Provincial de Luanda e, ao que tudo indica, por virtude da imposição legal prevista no § único do n.º 2 do artigo 647.º CPP.
O Acórdão recorrido refere que o Ministério Público junto do Venerando Tribunal Supremo manifestou o seu desacordo com a decisão da 1.ª instância, facto que, em conformidade com o n.º 2 do § 1º do artigo 667.º do CPP, permite afastar, excepcionalmente, o princípio geral da proibição da “reformatio in pejus”. A posição do Ministério Público deve ser, devidamente fundamentada e comunicada ao Recorrente para que este possa exercer o direito ao contraditório, constitucionalmente consagrado nos artigos 67.º, n.º 1, 72.º e 174.º, n.º 2 da CRA.
Não há, porém, no Acórdão recorrido elementos que indiquem o cumprimento desta imposição legal, o que não só configura violação ao princípio da legalidade, como igualmente violação do direito ao julgamento justo, neste se incluindo o direito ao contraditório e à ampla defesa.
Do que acima fica exposto resulta que, se por um lado, a modificação da medida de pena se sustenta na lei, por outro lado, o procedimento que dá lugar à aplicação excepcional da “reformatio in pejus” não foi observado, o que configuraria uma restrição ao direito ao contraditório e à ampla defesa do aqui Recorrente, direitos estes que, igualmente, se assumem como dimensões do direito ao julgamento justo e em conformidade com a lei e que, o Recorrente alega terem sido violados.
O princípio da proibição da “reformatio in pejus” é tido, em si mesmo, como um princípio garantia do due process law e, consequentemente, está estritamente relacionado com o direito à defesa, em face da estrutura acusatória ou quase acusatória do processo penal angolano.
Por seu lado, a responsabilidade penal decorrente da punição do crime de homicídio visa proteger o bem jurídico vida, direito maior com dignidade constitucional.
O Acórdão recorrido, entretanto, não toma como base o recurso do Ministério Público pelo que não se está em presença de uma proibição da “reformatio in pejus”.
Em conclusão e no caso sub judice, a medida da pena aplicada, em sede do Tribunal ad quem, parece proporcional e adequada às circunstâncias do crime uma vez que o Venerando Tribunal Supremo se socorreu do disposto no parágrafo 1.º do artigo 667.º conjugado com o artigo 447.º, ambos do Código de Processo Penal (CPP), pelo que se conclui que não houve uma violação ao princípio penal de proibição da “reformatio in pejus”.
Por outro lado, verifica-se claramente que o recurso interposto não foi no exclusivo interesse da defesa, conforme disposto no corpo do artigo 667.º do CPP.
Diante de tudo acima exposto, conclui este Tribunal que não deve ser dado provimento ao recurso interposto.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas (artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 11 de Dezembro de 2018.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dr. Raul Carlos Vasques Araújo (Relator)
Dr. Simão de Sousa Victor (declarou-se impedido).
Dra. Teresinha Lopes