ACÓRDÃO N.º 524/2018
PROCESSO N.º 645-C/2018
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
Damião José Maria, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional impetrar o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, do Acórdão da 2ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo proferido no Processo n.º 527/17, datado de 15 de Fevereiro de 2018.
O Venerando Tribunal Supremo ao ter agravado a pena aplicada pelo Tribunal a quo, violou o seguinte:
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi impetrado nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da LPC.
Considerando o esgotamento da cadeia recursória, conforme estabelece o § único do artigo 49.º da LPC, é o Tribunal Constitucional competente para apreciar o presente recurso.
Foi julgado e condenado em sede de primeira instância no processo n.º 32/2017-1ªB no Tribunal Provincial do Bié na pena única de oito anos de prisão maior, pela prática do crime de violação de menor de 12 anos, previsto e punível nos termos do artigo 394.º do Código Penal (CP) e ao pagamento de uma indemnização orçada no valor de Kz. 1.100.000,00 (um milhão e cem mil kwanzas) à ofendida.
Opondo-se àquela decisão, o Recorrente interpôs recurso com efeito suspensivo da aludida sentença junto do Tribunal Supremo. O Digno Representante do Ministério Público do referido Tribunal, na sua vista, proferiu parecer no sentido de agravar a pena. Nestes termos, o Tribunal Supremo agravou a pena para 10 anos de prisão maior, bem como ao pagamento, a título indemnizatório, do valor de 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil kwanzas) à ofendida nos autos, o Acórdão recorrido reformulou a pena em desfavor do réu.
Admitido o recurso e notificado para apresentar alegações em observância ao disposto no art. 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), fê-lo conforme se vê a fls. 199 à 205 dos autos, alegando, em síntese, que:
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente foi julgado e condenado pelo Tribunal a quo no Processo de Querela n.º 32/17 -1ª B, que correu seus trâmites na 1ª Secção B da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial do Bié, pelo que, tem direito a contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicado subsidiariamente ao processo constitucional a luz do artigo 2.º da LPC.
Assim, tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade conforme resulta do disposto na alínea a) do artigo 50.º da LPC
IV. OBJECTO
Cabendo o Tribunal Constitucional analisar e verificar se houve violação de acordo com o artigo 49.º, conjugando com o artigo 47.º ambos da LPC.
O objecto do presente recurso é o Acórdão da 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo de fls. 168 a 170 dos autos, datado de 15 de Fevereiro de 2018, cabendo ao Tribunal Constitucional analisar e verificar se houve violação do princípio da legalidade, princípio do contraditório, ampla defesa, direito a um julgamento justo nos termos da Constituição e da lei e da proibição da reformatio in pejus.
V. APRECIANDO
Refere a Constituição da República de Angola, no n.º1 do artigo 2.º, que “A República de Angola é um Estado democrático e de direito que tem como fundamento a soberania popular, o primado da Constituição e da Lei”. Ora deste princípio, é perceptível a ideia, segundo a qual, todos os actos praticados devem estar em conformidade com a Constituição e a lei, sob pena de se incorrer em inconstitucionalidades ou ilegalidades.
Nas suas alegações de fls. 199 a 205 dos autos, o Recorrente requer a este Tribunal que declare nulo o Acórdão recorrido por violar os princípios e direitos fundamentais consagrados na CRA, nomeadamente: o princípio da legalidade, ampla defesa, do contraditório, direito a um julgamento justo e proibição da reformatio in pejus.
O princípio da tipicidade é o principal apanágio do Estado democrático de direito na medida em que todos actos devem obedecer rigorosamente ao estabelecido na lei. Aliás, fazendo aqui uma interpretação a contrario sensu do brocardo latino “nullum crimen sine legem”, poder-se-á dizer que quaisquer actos ou procedimentos, quer judiciais quer administrativos, devem obedecer estritamente ao respaldado na Constituição e na lei, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º da Constituição.
Nos termos da Constitutição e da lei, a todos é garantido o acesso ao direito, é um direito com dignidade constitucional que permite às partes esgrimir argumentos de razão em seu favor com o intuito de influenciar o julgador como manifestação do seu direito ao contraditório apanágio do Estado de direito e democrático, como já fizemos menção. Considerando o princípio da unidade da Constituição, não podemos falar de um julgamento justo quando são inobservados os princípios do contraditório e ampla defesa.
Impõe sublinhar que o presente recurso, assenta na ausência de notificação do parecer do Digno Representante do Ministério Público e na proibição da reformatio in pejus. e consequentemente no principio do duplo grau de jurisdição.
Desde logo, pode-se sublinhar que o dever de notificação entende-se como sendo a comunicação que o Tribunal estabelece com as partes envolvidas na querela, a fim de permitir a estas conhecerem os despachos ou outros actos processuais recaídos sobre a questão litigante. O dever de notificação é, de todo, uma garantia assistida às partes envolvidas, com a finalidade de permitir em tempo útil, dizer o que lhes assiste sobre a questão controvertida.
Salienta-se, ainda que, o dever de notificação diz respeito à ideia fundante do Estado de direito democrático, que se resume na justiça, tratamento igualitário e no pleno exercício do princípio do contraditório, na medida em que, vem este afastar a idéia de Estado inquisitório, que resume-se tão somente no facto de que a ninguém deve ser coarctada a possibilidade de em sua defesa contrapor os factos a si imputados.
Di-lo bem, o legislador ordinário, no artigo 259.º do CPC, aqui colacionado subsidiariamente, por força do artigo 2.º da LPC, que no acto de notificação de “despachos, sentenças ou acórdãos, deve enviar-se ou entregar-se ao notificado cópia da decisão e dos fundamentos”. A observância deste pressuposto serve para permitir que as partes no seu direito à ampla defesa, sem olvidar o princípio do contraditório venham, mediante o prazo estabelecido a esta, reagir tempestivamente. O dever de notificação deve ocorrer, para que as partes possam, em iguais oportunidades, dizer em que termos foram lesados os seus direitos.
Observando com atenção os autos, de facto, não se encontra nenhuma notificação ao Recorrente, do parecer do Digno Representante do Ministério Público a fls 165 dos autos junto do Venerando Tribunal Supremo, inobservando, assim, o princípio da ampla defesa e o princípio do contraditório, alicerçados no n.º1 dos artigos 67.º e 72.º da C.R.A bem como, no n.º 2 do § 1 do artigo 667.º do CPP respectivamente, que permitiria ao Recorrente, esgotar todos os argumentos e fundamentos, em sua defesa. Não ocorrendo notificação, o princípio do contraditório e da ampla defesa foram violados.
Com isto, perdeu-se a oportunidade de sedimentar-se dia após dia a ideia de justiça constitucional, pois, configurou-se aqui uma inobservância que tem que ver com o princípio da legalidade ou tipicidade e isonomia. Se o Digno Representante do Ministério Público, por imperativo legal, emite parecer sobre os processos junto do Tribunal ad quem, tem-no igualmente o visado de conhecer do conteúdo do mesmo e por intermédio de alegações contrapor os factos de que é alvo em obediência ao princípio do contraditório e da ampla defesa, portanto, resulta de um formalismo imprescindível.
Sobre esta linha de pensamento, ensina o Constitucionalista brasileiro José Afonso da Silva, “são dois princípios fundamentais do processo penal. O primeiro, de certo modo, já contém o segundo, porque não há contraditório sem ampla defesa. O juiz não pode ser inteiramente passivo, pois quem lida com a liberdade e a dignidade da pessoa humana há que se ter sensibilidade e equilíbrio bastante para buscar a verdade material e a realização da igualdade das condições dos socialmente desiguais, sem se transformar em juízo inquisitório, onde sua imparcialidade se perde e ganha o autoritarismo, contrário ao Estado Democrático de Direito.” [1] O dever de notificação constitui, portanto, uma das garantias de defesa do Recorrente, à luz dos documentos normativos de defesa e promoção dos direitos humanos de qualquer cidadão.
Assim, sobre o dever de notificação, andou mal o Acórdão do tribunal a quo, na medida em que o parecer do Ministério Público, contribuiu substancialmente para a formação do juízo que deu lugar ao agravamento da condenação e, por esta razão, devia o Recorrente ser notificado do aludido parecer, conforme estabelece o n.º 2 do § 1 do artigo 667.º do CPP: “Quando o representante do Ministério Público junto do Tribunal Superior se pronunciar, no visto inicial do processo, pela agravação da pena, aduzindo logo os fundamentos do seu parecer, caso em que serão notificados os réus, a quem será entregue cópia do parecer, para resposta no prazo de oito dias”. Contudo, neste particular, a alegação do Recorrente encontra amparo legal.
A fls. 165 dos autos, depreende-se o tratamento diferenciado pelo facto de não ter sido notificado da promoção da pena. Note-se que, o tratamento dispensado mostra-se claramente arbitrário e desproporcional.
Relativamente ao princípio da “reformatio in pejus”, traduz-se em ser a regra limitadora da acção do julgador em matéria recursória, na medida em que impõe a este o dever de não modificar ou alterar a pena quando o recurso foi interposto no interesse exclusivo do Recorrente. Das limitações do aludido princípio, recorde-se que, a doutrina impõe que “a proibição da reformatio in pejus tem o sentido de não poder o Tribunal superior (ad quem) modificar a pena imposta no Tribunal recorrido (a quo) em prejuízo do Réu”[2], dito de outro modo, impõe ao julgador o dever de não julgar “extra petita”.
A fls. 168 dos autos observa-se com exactidão o Acórdão do Venerando Tribunal Supremo, que deu causa ao presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade interposto pelo Recorrente. O referido Acórdão, alterou a pena do Recorrente, condenando-o a pena única de 10 anos de prisão maior e ao pagamento a título indemnizatório, de Kz. 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil kwanzas) à ofendida pelo crime de violação de menor p.e.p nos termos do artigo 394.º do CP.
O Constituinte vem a esta instância solicitar a nulidade do douto Acórdão do Venerando Tribunal Supremo, porquanto, de sua justiça, este violou os limites da “reformatio in pejus”, disposto no n.º 1 do artigo 667.º do CPP “aplicar a pena que, pela espécie ou pela medida, deva considerar-se mais grave do que a constante da decisão recorrida”. Pois bem, o princípio da “reformatio in pejus”, assenta no entendimento segundo o qual, em caso de interposição de recurso no interesse exclusivo do Réu, o Tribunal de recurso não pode agravar a pena, salvo se, devidamente fundamentada nos termos do artigo 667.º n.º 1, § 1.º do CPP. Julgamos sim, que houve no Acórdão recorrido um julgamento superior ao pedido, nos termos do artigo 661.º n.º1 do CPC.
Ademais, o Tribunal Constitucional já tem jurisprudência firmada no sentido dos fundamentos acima invocados e logo, mutatis mutandis, vale igualmente para o caso em apreço (vide Acórdão n.º 392/2016 de 26 de Maio).
Assim,§, com base no artigo 647.º do CPP, que tem como epigrafe o principio da reformatio in pejus do tendo o recurso sido interposto no exclusivo interesse da defesa, a inexistência da notificação da promoção do Ministério Público, no sentido de agravar a pena, violou o princípio do contraditório, consagrado nas regras do princípio da proibição da “reformatio in pejus”, nos termos do artigo 667.º do CPP.
Do exposto, devem os presentes autos ser remetidos ao Venerando Tribunal Supremo para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 47.º da LPC.
Nesta conformidade, o Tribunal Constitucional concede provimento ao recurso.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:
Custas pelo Recorrente, nos termos do artigo 15.º da LPC.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 19 de Dezembro de 2018.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dr. Raul Carlos Vasques Araújo
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Teresinha Lopes
[1]DA SILVA, Jose Afonso. Comentário Contextual à Constituição, São Paulo: Ed. Malheiros, 2009. p.154-155.
[2] Parecer 13/X. Projecto de Lei N.º 4/IX. Alteração do artigo 667.º do Código de Processo Penal (Reformatio In Pejus). p, 130.