ACÓRDÃO N.º 525/2019
PROCESSO N.º 670-B/2018
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO
José Filomeno de Sousa dos Santos, melhor identificado nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão de 24 de Outubro de 2018, da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo de Habeas Corpus n.º 434/2018, que negou provimento ao seu pedido de providência de habeas corpus.
Notificado para apresentar alegações de recurso nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional – LPC, o Recorrente invocou, no essencial, que:
Apresentou, ainda, os seguintes argumentos:
Termina requerendo que seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão recorrido, por ser inconstitucional, autorizando que o Recorrente aguarde a tramitação do processo em liberdade, alterando-se a medida de coacção aplicada, por outra menos gravosa.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II – COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional – LPC, norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.
III – LEGITIMIDADE
O Recorrente encontrando-se actualmente na condição de arguido preso no âmbito do Processo n.º 22/18, que tramita na Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal (DNIAP) da Procuradoria-Geral da República, intentou no Tribunal Supremo uma providência de habeas corpus, nos termos do artigo 36.º, da alínea h) do artigo 64.º, dos n.ºs 3 e 4 do artigo 65.º e do artigo 68.º, todos da CRA, pedindo que fosse ordenada a sua libertação imediata, por violar princípios e direitos constitucionais, tendo o Tribunal Supremo indeferido o seu pedido, no âmbito do Acórdão citado.
O Recorrente tem, assim, legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, conforme prevê a alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao estabelecer que têm legitimidade para interpor recurso extraordinário “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV – OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é apreciar se a decisão vertida no Acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Venerando Tribunal Supremo, que negou provimento ao pedido de habeas corpus formulado pelo Recorrente, no âmbito do Processo n.º 434/2018, viola os princípios da legalidade, do processo justo e conforme à lei, da liberdade de ir e vir e ficar, da fundamentação material das decisões, da interpretação restritiva in malam partem das normas penais e da presunção de inocência.
V – APRECIANDO
É submetido à apreciação do Tribunal Constitucional o Acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que negou provimento ao pedido de habeas corpus formulado pelo Recorrente.
Nas suas alegações, o Recorrente invoca factos que apenas devem ser discutidos em sede de um processo principal, como por exemplo a questão da amnistia dos crimes, ou ainda a suposta devolução dos valores objecto de investigação no referido processo. Ora não é em sede da presente providência que estes factos devem ser suscitados, mas sim no processo principal.
Pelo que o Tribunal Constitucional não tem competência para se pronunciar sobre estes aspectos, cabendo sim aos tribunais de jurisdição comum fazê-lo.
Em face do recurso em apreciação cabe esclarecer que todo o cidadão tem direito à providência de habeas corpus contra o abuso de poder em virtude de prisão ou detenção ilegal, nos termos do artigo 68.º da CRA, conjugado com a alínea c) do artigo 315.º do CPP, conformando-se numa garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa do direito à liberdade, enquanto direito fundamental.
No entanto, o provimento do pedido de habeas corpus depende essencialmente da verificação de, pelo menos, um dos pressupostos do artigo 315.º do CPP, nomeadamente:
a) Ter sido efectuada ou ordenada por quem para tanto não tenha competência legal;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei não autoriza a prisão;
c) Manter-se além dos prazos legais para a apresentação em juízo e para a formação de culpa;
d) Prolongar-se além do tempo fixado por decisão judicial para a duração da pena ou medida de segurança ou da sua prorrogação.
De referir que, para a obtenção de deferimento neste tipo de providência, cabe ao Recorrente o ónus da prova da existência de qualquer dos pressupostos, o que servirá para fundamentar o pedido.
Ora, no presente recurso o Recorrente não alega a violação de qualquer uma das alíneas supramencionadas, e nem da leitura dos autos resulta estarmos perante a violação de qualquer um destes requisitos. A detenção foi efectuada por entidade competente, a prisão foi justificada por factos legalmente consagrados e ainda não estão esgotados os prazos previstos para a prisão preventiva.Com a prisão do ora Recorrente, não foram postergadas quaisquer normas.
Por outro lado, o Recorrente alega ter havido violação dos princípios da legalidade no concernente ao dever de fundamentação das decisões, do julgamento justo e conforme à lei e da presunção de inocência.
Assim, importa esclarecer o seguinte:
O aqui Recorrente, ao utilizar a providência de habeas corpus como meio de impugnação das questões apresentadas, próprias de um recurso ordinário, extravasa o âmbito desta providência, pelo que a alegação no Acórdão recorrido, segundo a qual existe “falta de fundamento” nos termos do artigo 315.º do CPP, é explicita o bastante, para mostrar que os fundamentos apresentados não cabem nos pressupostos elencados na referida norma legal.
Ademais, a fundamentação apresentada pelo Tribunal Supremo, não é insuficiente, pois a partir dela compreende-se facilmente que o motivo do indeferimento é o não preenchimento dos requisitos legalmente consagrados para o deferimento da providência em causa. Estamos diante de um domínio em que o “poder de cognição” do juiz está limitado, não restando outra alternativa senão aplicar a norma. Ainda que o Tribunal Supremo tivesse recorrido a outros elementos e outras normas, a verdade é que o centro da questão é apenas um, preenchimento ou não dos requisitos para o deferimento da providência de habeas corpus. O Tribunal Supremo ao abrigo dos seus poderes, ao proferir uma decisão cujos fundamentos para o efeito são exclusivamente legais, apenas seguiu o que vem determinado na lei, pelo que não se vislumbra qualquer violação ao princípio da legalidade.
Na sequência do acima aduzido, não houve violação do princípio do julgamento justo, na medida em que foram observadas as formalidades legalmente consagradas para os julgamentos.
O Recorrente alega ainda que o Acórdão recorrido fez uma interpretação restritiva da norma prevista no artigo 315.º do CPP. No entanto, das alegações do Recorrente o Tribunal Constitucional considera que este fez uma interpretação demasiado extensiva da citada norma, pretendendo com essa interpretação extrair, dum processo tão excepcional como é a providência de habeas corpus, juízo de mérito sobre os fundamentos que conduziram à aplicação dessa medida de coacção, bem como à sindicância de nulidades ou irregularidades nessas mesmas decisões, matérias estas que na presente fase do processo principal, ainda não se inserem na competência do Tribunal Constitucional.
Por último, convém enfatizar que não deve a prisão preventiva, em momento algum, ser considerada como uma presunção de culpa, pois trata-se de uma medida cautelar que visa salvaguardar de perigos, como o de perturbação da investigação, a continuação da actividade criminosa, o perigo de fuga, não constituindo a aplicação de tal medida, por si só, uma violação do princípio da presunção de inocência. A prisão preventiva não é o cumprimento de uma pena, mas uma medida processual que pode ser necessária. Na ponderação efectuada, em função dos valores em conflito, o Magistrado do Ministério Público, optou por restringir a liberdade do Recorrido, situação perfeitamente acautelada pela Constituição da República de Angola.
Ademais, a LMCPP não proíbe a alteração da medida cautelar aplicada ao arguido, pois, para o efeito, vale o disposto no artigo 21º do citado diploma legal, conforme fls 23 e 24 dos autos. Efectivamente, ao Magistrado são atribuídos poderes para aplicar a medida de coacção adequada e necessária em função do caso concreto e proporcionais à gravidade da infracção (vide o nº 1 do artigo 18º da LMCPP), o que de certa forma justifica a alteração da medida aplicada, porquanto a progressão da instrução foi revelando aspectos cuja utilidade processual seria acautelada com a alteração da medida de coacção.
Concluindo, o Tribunal Constitucional considera que o acórdão do Tribunal Supremo não violou os princípios da legalidade, do processo justo e conforme à lei, da liberdade de ir e vir e ficar, da fundamentação material das decisões e da presunção de inocência, pelo que se deve negar provimento ao presente recurso.
DECIDINDO
Nestes termos, tudo visto e ponderado,
Acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 22 de Janeiro de 2019.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dr.ª Guilhermina Prata (Vice-Presidente) – Relatora
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr.ª Teresinha Lopes