Loading…
Acórdãos > ACÓRDÃO 526/2019

Conteúdo

ACÓRDÃO N.º 526/2019

 

PROCESSO N.º 664-D/2017

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Esmeraldo Isaías Gonçalves Chinguito, melhor identificado nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, em 7 de Agosto de 2018, que indeferiu a providência de habeas corpus que correu termos com o n.º 359/18.

Em síntese, o Recorrente foi detido no dia 25 de Maio de 2018, indiciado pelos crimes de burla por defraudação, sob a forma tentada, previsto e punível pelos artigos 451.º e 421.º do Código Penal (doravante CP), associação criminosa, corrupção passiva, tráfico de influências, previsto e punível pelos artigos 8.º, 37.º e 41.º da Lei n.º 3/14, de 10 de Fevereiro, Lei sobre a Criminalização das Infracções subjacentes ao Branqueamento de Capitais, recebimento indevido de vantagens e corrupção no domínio internacional, previsto e punível pelos artigos 36.º e 42.º também da Lei n.º 3/14, de 10 de Fevereiro.

Aos 6 de Julho de 2018, interpôs, no Tribunal Supremo, a providência de habeas corpus, alegando que a sua detenção/prisão é ilegal, uma vez que:

  1. a sua constituição como arguido e a fixação da medida de coacção não constam de despachos fundamentados;
  2. a medida de coacção física que lhe foi aplicada é excessiva, inconsistente e ilegal, porque a legislação prevê outras medidas menos graves e mais eficientes e apropriadas para o caso;
  3. não existem fundamentos para a aplicação da medida de prisão preventiva, o que transforma a medida aplicada num claro exercício de abuso de poder e autoridade.

O Tribunal Supremo, por sua vez, negou provimento à providência requerida, seguindo de perto a promoção do Ministério Público junto dessa instância, com o fundamento de que, no caso concreto, a medida de coacção aplicada se mostrava ajustada, nos termos do artigo 36.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro – Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP), por se tratar de crimes graves e puníveis com pena de prisão maior e existir o risco de o Recorrente condicionar a instrução do processo, por se presumir que tem grande capacidade de influência junto das principais instituições públicas e privadas do país (de acordo com a informação da Procuradoria Geral da República junto do Serviço de Investigação Criminal).

Não se conformando com a decisão do Tribunal Supremo, o Recorrente interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

Nas suas alegações, o Recorrente defende que o Tribunal Supremo andou mal ao alinhar com o posicionamento do Ministério Público, quando este defendeu que o acto de constituição de arguido não carece de despacho fundamentado, uma vez que decorre de um princípio básico que uma decisão que possa afectar qualquer direito fundamental deve ser fundamentada.

Do mesmo modo, não pode o Tribunal Supremo alicerçar-se na presunção de que o Recorrente tem grande capacidade de influência junto das principais instituições estatais e privadas do País para fundamentar o receio de perturbação da instrução do processo e, assim, justificar a aplicação ao Recorrente da medida de coacção da prisão preventiva.

Advoga, ainda, que o respeito pelo princípio da presunção de inocência do Recorrente, até ao trânsito em julgado de uma sentença condenatória, obrigaria o Tribunal Supremo a considerar excessiva a medida de coacção aplicada, já que o Digno Magistrado não teve em conta os critérios da necessidade, adequação e proporcionalidade estabelecidos pelo Artigo 18.º da LMCPP.

Por fim, alegou que, à data de interposição do presente recurso, o processo se encontrava ainda em fase de instrução, sem que tivesse sido deduzida acusação, pelo que a prisão preventiva deveria cessar, uma vez que já tinha decorrido o prazo de 4 (quatro) meses, estabelecido na al. a) do n.º 1 do artigo 40.º da LMCPP.

Concluíu que, com a decisão recorrida, foram violados os seguintes princípios, direitos e garantias fundamentais:

  1. Direito a um julgamento justo, legal e conforme, nos termos dos artigos 72.º e 29.º da CRA;
  2. Princípio do processo justo e equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 29.º da CRA;
  3. Princípio da legalidade, consagrado no n.º 2 do artigo 6.º da CRA, e os princípios da subsidiariedade, necessidade, adequação e proporcionalidade na aplicação das medidas de coacção, previstas no artigo 18.º da LMCPP;
  4. Direito à liberdade, estabelecido no n.º 1 do artigo 64.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 36.º, todos da CRA;
  5. Direito e liberdade de ir, vir e ficar e do n.º 1 do artigo 57.º da CRA, e
  6. Prazo de prisão preventiva estabelecido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 40.º da LMCPP.

Por tudo o exposto, o Recorrente termina requerendo ao Tribunal Constitucional a revogação da decisão recorrida e que lhe seja concedida a providência de habeas corpus, devendo a prisão preventiva ser substituída por outra medida de coacção menos gravosa.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II.COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL

O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos das disposições combinadas da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional - LOTC) e da alínea a) do artigo 49.º da Lei N.º 3/08, de 17 de Junho (Lei do Processo Constitucional), pelo que o Tribunal Constitucional é competente para julgar os recursos de inconstitucionalidade interpostos de sentenças que contenham fundamentos de direito e decisões, que contrariem princípios, direitos liberdades e garantias previstos na CRA.

III. LEGITIMIDADE

Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (LPC), têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.

O Recorrente foi requerente da providência de habeas corpus no processo que, com o n.º 359/2018, correu os seus termos na 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, tendo, por essa razão, legitimidade para interpor o presente recurso. 

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso é apreciar se o indeferimento do habeas corpus pelo Acórdão proferido pelo Tribunal Supremo, a 7 de Agosto de 2018, viola o direito a um julgamento justo, legal e conforme, nos termos dos artigos 72.º e 29.º da CRA, o princípio do processo justo e equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 29.º da CRA, o princípio da legalidade, consagrado no n.º 2 do artigo 6.º da CRA, os princípios da subsidiariedade, necessidade, adequação e proporcionalidade na aplicação das medidas de coacção, previstos no artigo 18.º da LMCPP e o direito à liberdade, de ir, vir e ficar, estabelecidos no n.º 1 do artigo 64.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 36.º, e no n.º 1 do artigo 57.º, todos da CRA, ou qualquer outra disposição constitucional.

V. APRECIANDO

Nos termos do artigo 68º da CRA, o interessado pode requerer, perante o tribunal competente, a providência de habeas corpus, contra o abuso de poder, em virtude de prisão ou detenção ilegal.

Ora, nos termos do § único do artigo 315º do CPP, a ilegalidade da prisão pode advir de:

  1. ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
  2. ser motivada por facto pelo qual a lei não a permite;
  3. se manter para além dos prazos fixados por lei ou decisão judicial;
  4. se prolongar para além do tempo fixado.

Isto é, e sem prejuízo das disposições constitucionais sobre esta matéria, a providência de habeas corpus só pode ser deferida se se confirmar a existência de, pelo menos, um ou mais destes pressupostos.

Ora, no presente caso e conforme enfatizado pelo douto Acórdão do Venerando Tribunal Supremo:

  1. A prisão preventiva do Recorrente foi ordenada pelo Magistrado do Ministério Público junto do Serviço de Investigação Criminal (SIC), no dia 25 de Maio de 2018.
  2. O Recorrente está indiciado pelos crimes de burla por defraudação, sob a forma tentada; associação criminosa, corrupção passiva, tráfico de influências; recebimento indevido de vantagens e corrupção no domínio internacional.
  3. Os autos encontravam-se, ainda, na fase de instrução preparatória.

As irregularidades alegadas da falta de fundamentação dos despachos que (i) determinaram a constituição do Recorrente como arguido e (ii) a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, deveriam ter sido arguidas pelo Recorrente nos termos do artigo n.º100.º do Código de Processo Penal (CPP), sendo que os tribunais superiores poderiam sempre julgar suprida desde que considerassem não afectar a justa decisão da causa.

O mesmo se dirá quanto ao fundamento alegado segundo o qual a legislação prevê outras medidas de coacção menos graves e mais eficientes e apropriadas para o caso. Não se conformando com a medida de coacção aplicada, deveria o Recorrente impugnar o Despacho que a ordenou mediante a interposição de um recurso ordinário.

Entretanto, este Tribunal concorda com o Recorrente quando defende que a medida de coacção de prisão preventiva é uma medida excepcional, e que só deverá ser aplicada quando nenhuma outra medida de coacção for considerada suficiente. Por outro lado, os elementos que foram apresentados para analisar indicam que um Magistrado do Ministério Público, com competência para aplicar uma medida de coacção, decidiu que existiam fortes indícios da prática de crimes dolosos, puníveis com pena de prisão superior a três anos, e que as outras medidas de coacção não seriam adequadas nem suficientes às exigências do caso concreto, nomeadamente para protecção da prova contra o perigo de perturbação da instrução do processo.

Nestes termos, a manutenção da medida de coacção determinada no Acórdão recorrido não pode ser entendida como uma violação do direito à liberdade do Recorrente e do acesso deste a um julgamento justo.

O Tribunal Constitucional também não pode aceitar a posição segundo a qual, por se ter baseado em presunções, a prisão preventiva mantida pelo Tribunal Supremo no Acórdão recorrido viola o princípio da presunção da inocência, já que, no extremo, este princípio nunca permitiria a aplicação da prisão preventiva. Esta medida, como as outras medidas de coacção previstas na legislação em vigor, aplicar-se-ão sempre antes de qualquer condenação definitiva, desde que se verifiquem determinados requisitos. E, dentre outros, está a existência de fortes indícios da prática de determinados crimes considerados graves e do perigo de perturbação da instrução do processo.

Quanto ao eventual incumprimento dos prazos fixados pelo artigo 40.º da LMCPP, esta questão não foi apresentada na altura da interposição da providência de habeas corpus nem parece ocorrer, uma vez que o prazo foi prorrogado por dois meses, por despacho fundamentado do Magistrado do Ministério Público.

Entretanto, recentemente, este Tribunal tomou conhecimento de que o Digno Magistrado do Ministério Público, junto da 14.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, entendeu, em Despacho de Acusação, datado de 13 de Novembro de 2018, que não se vislumbrava, da parte do Recorrente, qualquer tendência para fuga ou de perturbação do processo, pelo que decidiu pela substituição da medida de coacção de prisão pela prestação de termo de identidade e residência, com obrigações acessórias.

Tendo a prisão preventiva sido substituída por outra medida de coacção menos gravosa, não existem, neste momento, razões que justifiquem a continuação do presente recurso neste Tribunal, por configurar uma situação de inutilidade superveniente da lide. 

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:

Sem custas, nos termos da segunda parte do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (LPC).

Notifique.

 

Plenário do Tribunal Constitucional, em Luanda, aos ­­23 de Janeiro de 2019.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Américo Maria de Morais Garcia

Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa

Dr. Carlos Magalhães

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Teresinha Lopes (Relatora)