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ACÓRDÃO N.º 531/2019

 

PROCESSO N.º 674-B/2018

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade 

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional: 

I. RELATÓRIO

Diedonne Celeste Kifemba Quihanda, melhor identificado nos autos, veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, alegando, em resumo, o seguinte:

O Recorrente foi, primeiramente, detido fora de flagrante delito, no mês de Abril de 2015, na cidade de Luanda, pela alegada prática de um crime de roubo qualificado.

Entretanto, na instrução preparatória, foi libertado porque o Ministério Público entendeu que os indícios eram pouco consistentes.

Em liberdade, deslocou-se para o interior do País e, quando regressou a Luanda, ficou na mesma residência, constante do termo de identidade e residência (TIR).

Foi depois julgado à revelia, ao invés de o terem notificado para julgamento, uma vez que o seu paradeiro não era desconhecido, tanto assim que, depois de condenado, o capturaram naquela residência.

Ora, esta detenção viola claramente o artigo 564.º do C.P.P. porque não houve qualquer notificação por edital para o convocar para julgamento, bem como os princípios da necessidade, razoabilidade e tutela subsidiária, previsto no artigo 58.º da CRA e, ainda, do princípio a um processo equitativo e julgamento justo, previsto nos números 1, 2, 3, 4 e 5 do artigo 29.º e artigos 72.º e 73.º, todos da CRA, em virtude da defesa não ter igualdade de oportunidades e de armas.

Veio a requerer novo julgamento, pretensão aceite pelo Meritíssimo Juiz, por despacho constante de folhas 245 dos autos, pelo que, nos termos do § 3.º do artigo 571.º do C.P.P., deve ser imediatamente suspensa a execução da sentença, devendo permanecer na situação em que se encontrava antes de condenado, ou seja, sujeito a TIR e ordenada a sua restituição à liberdade.

Alega, ainda, não terem sido provados os factos que o envolvem na prática do ilícito que lhe foi imputado, apesar de o Tribunal Supremo ter mantido a decisão de condenação.

Pugna pela procedência do recurso e, consequentemente, que seja submetido a novo julgamento, pelo Tribunal “a quo”, ou, a reforma da sentença em conformidade com os princípios constitucionais violados, revogando a sentença recorrida e colocando-o em liberdade. 

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), do Acórdão proferido no Processo n.º 385/18, pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito de uma providência de habeas corpus que, de acordo com o Recorrente, contraria princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição, mormente, os princípios da igualdade e do julgamento justo e equitativo.

Foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, conforme o estatuído no § único do artigo 49.º da LPC.

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é Réu num Processo de Querela, no qual é acusado da prática de um crime de roubo qualificado, previsto e punível pelo art.º 435.º, n.º 2 do Código Penal, tendo sido julgado à revelia e aplicada a pena de 21 anos de prisão maior, pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, de modo subsidiário, ao caso sub judice, por previsão do artigo 2.º da referida LPC.

Assim, o Recorrente tem legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da Lei 3/08, de 17 de Junho.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso é saber se o Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que negou provimento à Providência de habeas corpus, viola princípios de direito consagrados constitucionalmente, designadamente os princípios do julgamento justo e do processo equitativo.

V. APRECIANDO

 Antes de mais, convém referir que é jurisprudência corrente dos Tribunais Superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

Como é sabido, os fundamentos dos recursos devem ser claros e concretos, pois aos Tribunais não incumbe averiguar a intenção dos recorrentes, mas sim apreciar as questões submetidas ao seu exame.

As conclusões das motivações não podem limitar-se a mera repetição formal de argumentos, mas constituir uma resenha clara que proporcione ao Tribunal Superior uma correcta compreensão do objecto dos recursos.

No caso concreto, o Recorrente não apresenta as necessárias conclusões, mas percebe-se que vem invocar que o aresto impugnado, ao negar a Providência de Habeas Corpus, viola os princípios do julgamento justo e processo equitativo, sendo esta uma das questões a conhecer.

Apesar de o Recorrente não alegar, resulta também dos autos que foi interposto recurso por imperativo legal pelo Digno Magistrado do Ministério Público da sentença que o condenou a uma pena de prisão, pela prática de um roubo qualificado. Porém, o Meritíssimo Juiz “a quo” ordenou a passagem de mandados de detenção para cumprimento da pena, pelo que se pode estar perante uma prisão ilegal que deveria ter sido conhecida pelo Acórdão impugnado por se tratar de matéria de conhecimento oficioso.

Assim, e porque este Tribunal não está obrigado às conclusões do Recorrente, vamos também conhecer desta questão.

Embora o Recorrente também venha alegar a inexistência de prova para a sua condenação, tal escapa ao âmbito da providência de “habeas corpus”, devendo ser conhecido no recurso ordinário já interposto pelo Digno Magistrado do Ministério Público por imperativo legal. 

Passando à apreciação propriamente dita do presente recurso, há que dizer, em primeiro lugar, que este processo enferma de inadmissíveis confusões por parte dos diversos operadores judiciários.

Com efeito, como alega o Recorrente, no seu requerimento da providência de “habeas corpus”, foi julgado à revelia, sem ter sido notificado por editais (não existem cópias de quaisquer editais nos autos), sendo que o Tribunal conhecia o seu paradeiro, tanto mais que, após a leitura da sentença condenatória, veio a ser preso na sua residência.

Refere, ainda, que requereu novo julgamento, pelo que aquela sentença deveria ter sido suspensa e o mesmo restituído à liberdade, ficando a aguardar os ulteriores termos processuais na situação processual em que se encontrava, ou seja, sujeito a TIR.

Depois, por entender não ter sido feita prova da sua ligação aos factos que lhe foram imputados, aproveita, ainda, para clamar pela sua inocência numa providência de “habeas corpus”.

Ora, como é sabido, a providência de “habeas corpus”, com tutela constitucional no artigo 68.º da Constituição da República de Angola, na expressão de Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação à Constituição da República Portuguesa, aqui trazidos à colação pela similitude de legislação, “consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros. Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”.

No respeitante à prisão ilegal o seu tratamento processual decorre do artigo 315.º do Código de Processo Penal, cujo elenco taxativo faz derivar do facto de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Ora, resulta daqui haver dois fundamentos que poderiam sustentar a providência de habeas corpus:

  1. A sua detenção após leitura da sentença condenatória, quando consta dos autos que o Digno Magistrado do Ministério Público interpôs recurso da decisão condenatória, com efeito suspensivo.
  2. O facto de ter requerido novo julgamento, caso em que a decisão seria anulada, inexistindo motivo que sustentasse a sua detenção para cumprimento da pena.

Quanto ao primeiro, o Recorrente nada alegou.

Porém, constata-se dos autos que esse recurso foi interposto pelo Ministério Público por imperativo legal, pelo que, aproveitando a todos, o efeito suspensivo afecta o sentido e as consequências executivas da decisão, que o mesmo é dizer, o cumprimento da pena.

Ora, tendo o Tribunal ordenado a sua detenção para cumprimento de uma pena imposta por decisão ainda não transitada em julgado, porque impugnada, não há dúvidas que se poderia estar perante uma prisão ilegal que sustenta a providência de “habeas corpus”, no sentido de esta poder ser utilizada sempre que falham as demais garantias de defesa do direito à liberdade para, exactamente, pôr termo a situações de detenção ou de prisões ilegais.

Feita esta breve resenha, e voltando aos autos, dir-se-á que o aqui Recorrente, que aguardava os ulteriores termos processuais em liberdade, sujeito a TIR, foi condenado como autor de um crime de roubo qualificado, na pena de 21 (vinte e um) anos de prisão maior.

Porém, foi julgado à revelia e ordenada a passagem de mandados de detenção para cumprimento daquela pena, apesar de, como referimos, ter sido interposto recurso com efeito suspensivo.

Não consta dos autos que o Meritíssimo Juiz que a ordenou tivesse alterado a medida de coacção para uma mais gravosa, como seja, a prisão preventiva.

No entanto, é a própria lei quem determina que o Reu julgado à revelia deve ser detido e a sentença lida publicamente em audiência de julgamento, sendo assim notificado da decisão (vide n.º 2 do artigo 564.º do CPP) por isso, a prisão efectuada é legal.

Quanto ao novo julgamento, na sequência de ter sido julgado à revelia, pode ler-se no aresto impugnado o seguinte:

“... Compulsados os autos e tendo em conta a informação nele constante de fls. 8 e 9, apuramos que o requerente havia sido detido em Abril de 2015, por ter sido indiciado na prática do crime de roubo qualificado p. e p. pelo artigo 435.º, n.º 2 do C. Penal e solto sob termo de identidade e residência na fase de instrução do respectivo processo.

Todavia, após a sua soltura, o réu nunca mais foi encontrado, de tal forma que quando o processo foi introduzido em juízo não foi possível notificá-lo da acusação nem da pronúncia, correndo os autos a sua revelia, nos termos do art.º 570.º do C.P.P. por existirem mais Réus no processo e presos.

Chegado a fase de julgamento, o requerente foi condenado no dia 2 de Março de 2017, à revelia, na pena de 21 (vinte e um) anos de prisão maior, com a consequente emissão de mandados de captura, tendo os agentes da ordem pública capturado e posteriormente notificado da decisão condenatória no dia 4 de Outubro de 2017, decisão essa, que o requerente no prazo de cinco dias a contar da notificação poderia ter recorrido requerendo novo julgamento, vide parágrafo 3.º do artigo 571.º, o que não aconteceu.

Entretanto, só passados mais de trinta dias, ou seja, de 4 de Outubro de 2017 a 9 de Novembro do mesmo ano, é que o requerente constituiu advogado e requereu a repetição do julgamento, vendo-se assim precludido o direito que tinha para requerer o mesmo uma vez que, após a captura, ocorrida no dia 4 de Outubro de 2017, foi notificado da decisão...”.

Neste aspecto, nada se pode apontar ao Acórdão impugnado, porquanto, tendo precludido o direito de requerer novo julgamento, não existe qualquer prisão ilegal que pudesse fundamentar a procedência do “habeas corpus”.

Temos, assim, de concluir que o Acórdão recorrido não violou os princípios do julgamento justo e processo equitativo, tendo proferido uma decisão estribada na lei e devidamente fundamentada.

 
Nesta esteira de entendimento, se conclui que a decisão recorrida não viola qualquer princípio constitucional.

Sobre a alegada falta de prova, o Acórdão recorrido pronunciou-se no sentido da falta de razão do Recorrente.

Porém, entende este Tribunal que não o deveria ter feito, porque esta matéria só é passível de impugnação através de recurso ordinário, pelo que nos abstemos de fazer qualquer considerando.

Assim, conclui este Tribunal pela improcedência do recurso.

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:  

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho 

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 20 de Fevereiro de 2019.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS 

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dr. Américo Maria de Morais Garcia 

Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa 

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango 

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto 

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dr. Raul Carlos Vasques Araújo 

Dr. Simão de Sousa Victor (Relator) 

Dra. Teresinha Lopes