ACÓRDÃO N.º537/2019
PROCESSO N.º 679-C/2018
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional
I. RELATÓRIO
Jean Claude de Morais Bastos, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão de 11 de Outubro de 2018, da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo n.º 440/18, que negou provimento ao seu pedido de providência de habeas corpus.
Notificado nos termos do artigo 45º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), o Recorrente nas suas extensas alegações, em síntese, invocou, que:
Termina requerendo que seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão recorrido, por ser inconstitucional, e se autorize que o Recorrente aguarde a tramitação do processo em liberdade, substituindo-se a medida de coacção aplicada, por outra menos gravosa.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstas na CRA”.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente intentou uma providência de habeas corpus pedindo a sua libertação imediata, tendo o Tribunal Supremo indeferido o seu pedido.
Assim, o Recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, conforme prevê a alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao estabelecer que têm legitimidade para interpor recurso extraordinário “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é a verificação da constitucionalidade do Acórdão de 11 de Outubro de 2018 da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Venerando Tribunal Supremo que negou provimento ao pedido de habeas corpus formulado pelo Recorrente, no âmbito do Processo n.º 440/18.
V. APRECIANDO
Na apreciação das decisões proferidas pelos demais Tribunais, os poderes de cognição deste Tribunal estão circunscritos ao cumprimento do disposto na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º3/08 de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), isto é ajuizar no plano jurídico-constitucional se a questão revidada viola fundamentos e decisões de direito que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstas na cra.
No caso em apreço, como se pode ver nos autos algumas matérias questionadas pelo Recorrente nas suas alegações (questão da amnistia, questão do crime continuado) caiem, primeiramente, na alçada dos tribunais comuns. Sem equívocos, é de sublinhar que não é em sede da providência de habeas corpus que tais factos devem ser impugnados, mas sim em sede de um processo principal, cabendo aos tribunais de jurisdição comum, apreciá-los.
Feita a delimitação do que pode e deve ser objecto de tratamento pelo Tribunal Constitucional, importa agora aferir se o Acórdão recorrido violou princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionais.
Neste contexto, face ao objecto do presente recurso, percebe-se, que o cerne da questão sub judice reside em saber se estavam ou não preenchidos os requisitos legais para o deferimento da providência de habeas corpus.
O habeas corpus é um instituto jurídico erigido como um direito/garantia previsto na constituição e na lei que visa essencialmente evitar situações abusivas de poder de privação de liberdade, assumindo-se como um verdadeiro primado dos Estados democráticos de direito.
A lei, maxime a constituição, consagra-o como um direito fundamental incorporado na esfera jurídica de qualquer cidadão e ao mesmo tempo uma garantia efectiva que permite a qualquer cidadão reagir contra situações abusivas violadoras do seu direito à liberdade física que, eventualmente, podem ser perpetradas por entidades a quem a lei permite a aplicação de medidas de coacção.
Assim, legitimamente, todo o cidadão tem direito à providência de habeas corpus contra o abuso de poder, em virtude de prisão ou detenção ilegal, nos termos do artigo 68º da Cra, conjugado com o § único do artigo 315º do CPP, conformando-se numa garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa do direito à liberdade, enquanto direito fundamental.
No entanto, na ordem jurídica angolana o legislador preocupou-se em fazer vincar literalmente o seu carácter de excepcionalidade atribuindo-lhe requisitos e critérios específicos de aplicabilidade dentro de parâmetros rigidamente fixados e previstos na lei.
Com efeito, preceitua o artigo 315º do Código de Processo Penal (CPP) que o provimento do pedido de habeas corpus depende essencialmente da verificação de, pelo menos, um dos pressupostos seguintes:
Neste caso, a situação configurada na lei afasta-se sobremaneira dos fundamentos aludidos pelo Recorrente para fazer jus à sua pretensão na medida em que para a obtenção de deferimento neste tipo de providência, cabe ao Recorrente o ónus da prova da existência de qualquer um dos pressupostos elencados, o que servirá para satisfazer o pedido.
Contudo, no presente recurso o Recorrente não alega a violação de qualquer uma das alíneas supramencionadas, e nem da análise dos autos resulta estarmos perante o incumprimento de qualquer um daqueles requisitos materiais, porquanto a detenção foi efectuada por entidade competente, a prisão foi justificada por factos legalmente consagrados e ainda não estão esgotados os prazos previstos para a prisão preventiva. Ou seja, os fundamentos da ilegalidade não se verificam.
Atento ao exposto, afere-se que o princípio da taxatividade e do numerus clausus conformam a admissão da providência de habeas corpus, enquanto processo expedito, célere, legal, extraordinário e excepcional que assegura garantias de defesa efectiva e de reposição imediata da ilegalidade nos casos de detenções ou prisões arbitrárias, destinado a pôr termo o mais rápido possível a situações ilegais de privação da liberdade. Já antes, a jurisprudência do Tribunal Constitucional, em harmonia com a Lei, fixou amarras nesse entendimento.
No mesmo sentido jurisprudencial, enfatizam os Professores Raúl Araújo e Elisa Rangel, na sua obra “Constituição Anotada, Tomo I, Luanda 2014, pág. 389”, que “O habeas corpus é uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar, de forma especial, o direito à liberdade constitucionalmente garantido e que visa reagir de modo imediato e urgente, contra o abuso de poder em virtude de detenção ou prisão, efectiva e actual, ferida de ilegalidade”.
No caso dos autos, as razões fundantes suscitadas nas alegações não se conciliam com os pressupostos materiais de aplicabilidade do habeas corpus, o que dita a inconsistência e irrazoabilidade da pretensão do Recorrente.
A ser assim, fluem dos princípios jurídicos acima mencionados (taxatividade e numerus clausus) duas consequências especialmente importantes: a providência de habeas corpus só obtém provimento em caso de observância individual ou cumulativa dos pressupostos consagrados na lei; o Recorrente tem o direito de contradizer e rebater as causas da sua detenção, mas não pode lançar mão ao habeas corpus quando deve recorrer a outro meio de reacção, seguindo o expediente de recurso ordinário, que a ordem jurídica postula como meio de impugnação.
Sendo assim, o Recorrente ao utilizar a providência de habeas corpus como meio de impugnação das questões suscitadas, próprias de um recurso ordinário, extravasa o âmbito material dessa providência, uma vez que os fundamentos apresentados não cabem nos pressupostos catalogados no artigo 315.º do CPP, tal como bem consagra o Acórdão recorrido, por isso bem andou o tribunal ad quem.
Além do mais, o agravamento das medidas de coacção penal alicerça-se fundamentalmente no facto destas perseguirem fins de prevenção especial e de prevenção geral positivamente ditados, logicamente, por exigências processuais de natureza cautelar. Destarte, não é relevante o que refere o Recorrente em fls. 39 (artigo 8.º das alegações) quando faz jus “a sua colaboração com a justiça e o seu bom comportamento”.
Em boa verdade, o que está na génese da aplicação de uma medida de coacção penal decretada ab origine ou a posteriori é um juízo conviccional de que a liberdade do arguido é perturbadora para a realização dos fins processuais, bem como a sua presença física na sociedade e na comunidade, tendo em conta a natureza, a gravidade, a censura e reprovação social do crime que lhe é imputável, em honra à defesa do direito, da lei, da paz social e da ordem e tranquilidade públicas.
Por isso mesmo, no balanço de interesses contrapostos e conflituantes não estão em causa apenas os interesses do Recorrente há que atender a escala e a ponderação dos valores axiológicos e de bens jurídicos jusfundamentais protegidos pelo Estado de direito e constitucionalmente aceites.
Ademais, a LMCPP não proíbe a alteração da medida cautelar aplicada ao arguido, pois, para o efeito, vale o disposto no artigo 21º do citado diploma legal. Efectivamente, ao Magistrado são atribuídos poderes para aplicar a medida de coacção adequada e necessária em função do caso concreto e proporcionais à gravidade de infracção (artigo 18.º n.º 1 da LMCPP), o que de certa forma justifica a alteração da medida aplicada, porquanto a progressão da instrução foi revelando aspectos cuja utilidade e eficácia processual seria acautelada com a alteração da medida de coacção.
Tal como é referido na jurisprudência constitucional contida no Acórdão n.º 525/2019, de 22 de Janeiro “não deve a prisão preventiva, em momento algum, ser considerada como uma presunção de culpa, pois trata-se de uma medida cautelar, que visa salvaguardar de perigos, como o de perturbação da investigação, a continuação da actividade criminosa, o perigo de fuga, não constituindo a aplicação de tal medida, por si só, uma violação do princípio da presunção de inocência. A prisão preventiva não é o cumprimento de uma pena, mas uma medida processual que pode ser necessária.” Este entendimento é subsumido do artigo 19.º da LMCPP. Pelo que não é de acolher a tese pugnada pelo Recorrente sobre a violação do Princípio da presunção da inocência.
Na ponderação efectuada, em função dos valores em conflito, o Magistrado do Ministério Público, optou por restringir a liberdade do Recorrente, situação perfeitamente acautelada pela cra. Neste contexto, tem pleno cabimento porque legal e fundada a medida de coacção aplicada.
Sufraga, ainda, o Recorrente ter havido violação dos princípios da legalidade, da igualdade, do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, da defesa e do julgamento justo, célere e conforme à lei. Sobre esse posicionamento, é mister esclarecer que o Tribunal Constitucional não perfilha tal entendimento, senão vejamos:
Impõe-se referir que da fundamentação esgrimida no Acórdão prolatado pelo Venerando Tribunal Supremo de indeferimento do pedido de habeas corpus, compreende-se facilmente que a razão primacial é o não preenchimento dos requisitos e premissas legalmente exigidos. Estamos diante de um domínio em que o juízo cognitivo do juiz está limitado ao estrito cumprimento da lei. E foi esse o iter seguido pelo julgador, conformar os seus actos à observância dos cânones legais, nessa asserção, não se pode ter como aceite a violação do princípio da legalidade nem tão pouco do princípio do julgamento justo, na medida em que foram observadas as formalidades consagradas na lei.
Daí que, não estando de acordo com o agravamento da medida de coacção (prisão preventiva), aplicada pelo Magistrado do Ministério Público, o Recorrente podia fazer recurso ao n.º 1 do artigo 3.º da LMCPP que estabelece que “As medidas de coacção aplicadas por Magistrados do Ministério Público, na fase de instrução preparatória, podem ser impugnadas pelo arguido ou seu representante perante o Juiz Presidente do Tribunal territorialmente competente, que imediatamente distribui o processo ao juiz de turno para decisão no prazo máximo de (8) oito dias úteis, a contar da data de recepção do processo.”
Mas, não foi isso que o Recorrente fez, preferiu avançar com uma providência de habeas corpus no Venerando Tribunal Supremo, que lhe foi indeferida por falta de fundamento bastante.
Relativamente as invocadas violações dos artigos 6.º, 23.º, 28.º, 29.º, 64.º, 67.º, 68.º, 72.º, 175.º e 179.º, todos da cra, o Recorrente limita-se a transcrever tais normas, sem concretizar em que medida foram violadas, não basta dizer, é preciso demonstrar, sob pena de não se saber o que pretende o Recorrente impugnar, contradizer ou pleitear. Essa imprecisão coarcta a possibilidade de aferição deste Tribunal porquanto desconhece-se, por falta de clareza, que questões pretende suscitar no âmbito do presente recurso.
Assim, conclui o Tribunal Constitucional que o Acórdão do Venerando Tribunal Supremo não violou os princípios da legalidade, da igualdade, da presunção de inocência, do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva, do direito da ampla defesa e do direito ao julgamento justo, célere e conforme à lei, pelo que, deve ser negado provimento ao presente recurso.
DECIDINDO
Nestes termos
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas (artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional).
Tribunal Constitucional, em Luanda, 19 de Março de 2019.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira (Relatora)
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dr. Raul Carlos Vasques Araújo
Dr. Simão de Sousa Victor