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ACÓRDÃO N.º 541/2019

 

PROCESSO N.º 669-A/2018

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional: 

I. RELATÓRIO 

Arnaldo Sebastião Vaz, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que confirmou a decisão do Tribunal Provincial de Luanda proferida no âmbito do Processo de Querela, n.º 1978-C, alegando em resumo, a inconstitucionalidade da sentença proferida pela 1.ª instância por ter reconhecido a má condução do processo em sede de instrução preparatória e não ter tomado providências, bem como do Acórdão do Tribunal Supremo que confirmou a decisão, tendo ambos violado o direito à vida.

Isto porque discorda da absolvição proferida por ambas as instâncias, ao não entender como se pode assim concluir, quando resultou provado que o Réu e vítima tinham acesas discussões e aquele agrediu-a várias vezes, chegando mesmo a ameaçá-la de morte, facto que foi confirmado pelo próprio Réu.

Acha, por isso, ser este passado suficiente para que se conclua ter sido o Réu o autor do crime de homicídio pelo qual vinha acusado.

Para além das suscitadas inconstitucionalidades, vem ainda requerer a anulação da investigação, a instauração de novo contraditório e um processo-crime contra o instrutor por ter ocultado provas, negligenciado algumas diligências que o levariam à descoberta da verdade material dos factos.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional, da decisão proferida no âmbito de um processo de querela que absolveu o Réu da prática do crime de homicídio à luz do princípio do in dúbio pro reo, pelo que, é este Tribunal competente para conhecer da suscitada inconstitucionalidade.

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é pai da vítima, tendo-se constituído Assistente, no âmbito do Processo de Querela n.º, n.º 1978-C, do Tribunal Provincial de Luanda pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, de modo subsidiário, ao caso em estudo, por previsão do artigo 2.º da referida LPC.

Assim sendo, o Recorrente tem legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da Lei 3/08, de 17 de Junho.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso é o Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal que absolvendo o Recorrido, confirmou a decisão da 1.ª Instância. 

V. APRECIANDO

Este recurso teve na sua origem o facto de o Recorrente discordar da absolvição do Réu por entender ter sido feita prova bastante para que a decisão fosse diversa, ou seja, condenatória.

Concluiu, então, que quer a 1.ª instância, quer o acórdão impugnado do Venerando Tribunal Supremo, ao confirmar aquela decisão, estão eivados da suscitada inconstitucionalidade.

Porém, apesar desta aparente certeza quanto à autoria material do imputado crime de homicídio ao Réu, a ponto de suscitar a sua inconstitucionalidade, o Recorrente vem solicitar a este Tribunal – pasme-se – a anulação da Instrução preparatória porque e passamos a citar: “...estar viciada de erros graves e ocultação de provas que influenciaram na decisão final deste processo (...) mandar instaurar um novo contraditório e um processo crime contra o Instrutor processual na fase de instrução preparatória, visto que este ocultou provas, negligenciou certas diligências que o levaria à descoberta da verdade material dos factos...”.

Estranha contradição que permitiria, sem mais, aferir da falta de razão do Recorrente.

Com efeito, como pode discordar de uma absolvição à luz do princípio do in dubio pro reo, se ele próprio considera terem sido ocultadas provas e não realizadas diligências que levaram a este desfecho?

Porém, em cumprimento de um imperativo que obriga à fundamentação das decisões, este Tribunal vai se debruçar sobre a questão a decidir que passa claramente pela análise da prova produzida em audiência e de um eventual erro na valoração da prova por ambas as Instâncias, apesar de – sublinhe-se – o objecto de recurso aqui se limitar ao acórdão proferido pelo Tribunal Supremo, na medida em que só é possível o recurso extraordinário de inconstitucionalidade de decisões proferidas pelos Tribunais, desde que esgotada a cadeia recursória nos tribunais comuns.

Uma leitura dos factos apurados em primeira instância e respectiva motivação, permite concluir não ter ficado provado, com a certeza absoluta exigida para qualquer condenação, que o Réu tirou a vida à vitima (elemento essencial para a subsunção da conduta ao tipo legal imputado – o crime de homicídio) e provada uma relação quase marital entre a vítima e o Réu, dominada por momentos de fortes agressões físicas, ameaças e da existência de um terceiro, o declarante Márcio, com quem a vítima mantinha uma relação também caracterizada por momentos de grande tensão e perturbação, seja porque ambos sabiam da existência um do outro, o que os levou a comportamentos desviantes, seja porque ambas as relações assentavam em sentimentos obsessivos e nada saudáveis.

Em sede de motivação, o Tribunal admite poder estar perante um crime passional que pode ter sido praticado pelo Réu, ou pelo declarante Márcio, já que ambos mantinham relacionamento com a vítima e, coincidentemente, no dia da sua morte, ambos estiveram à mesma hora no triângulo dos congolenses, sendo que o Márcio admitiu ter estado naquele local com a vítima.

Mais lamenta o Tribunal que esta dúvida se deva a inadmissíveis falhas da instrução imputadas ao respectivo instrutor, facto confirmado pelo pai da vítima, ora Recorrente, em sede de audiência e pelo próprio instrutor que questionado sobre algumas negligências, como por exemplo, não requerer o relatório de chamadas efectuadas pelo Réu, referiu tratar-se de um lapso.

O comportamento de um e outro, após o desaparecimento da vítima, por razões diversas levantam questões sem resposta.

A ocultação e ausência de diligências probatórias, perante este triângulo amoroso, levaram a que o Tribunal não tivesse a certeza absoluta sobre a autoria do crime.

Também, o aresto impugnado alinha no mesmo diapasão ao escrever:

“Sobre o erro na apreciação da prova, diremos que a Lei processual consagra o princípio da livre apreciação da prova, não se encontrando o julgador sujeito às regras rígidas da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum. Este princípio dá ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional. 

Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo do que fica consignado em acta.

A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão.

É essencialmente ao juiz da primeira instância que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma série de factores, mormente, as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, embora condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.

A ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida.

Vejamos então as questões de facto em apreço. 

Considerando os factos dados como provados, percebemos o seguinte:

A vítima mantinha uma relação conjugal com o Réu e, em simultâneo, uma relação amorosa com o declarante Márcio, seu colega na universidade.

O Réu, por ciúmes, chegou a agredir fisicamente a vítima em algumas ocasiões.

O declarante Márcio, que sabia da relação conjugal, por ciúmes, apresentou-se ao Réu como sendo namorado da vítima e chegou, inclusivamente, a gravar um vídeo, em que mantinha relações sexuais com a vítima, e que mandou para o Réu.

Quanto ao dia em que foi cometido o crime:

Fica provado que o declarante Márcio esteve com a vítima no triângulo dos congoleses, por volta das 20h, facto confirmado pelo próprio.

Nesse mesmo horário, também o Réu passou pelo triângulo dos congoleses a caminho de casa, depois de sair da escola, acompanhado dos colegas que confirmaram por lhe terem dado boleia.

Às 21h48 a vítima ainda ligou para a sua mãe a informar que estava na casa de uma amiga, vizinha do Réu, porém, de acordo com os registos das antenas da Unitel, o sinal abrangia somente a zona do triângulo e da casa do declarante Márcio, local onde a vítima permaneceu entre as 20h23 e as 21h55.

Outro facto importante, refere-se ao último local onde o sinal do telefone da vítima esteve activo, mais concretamente, na área do Camama 2, onde poderá ter sido jogado o cadáver, que com a corrente, foi parar junto ao farol do cabo, na ilha de Luanda.

Ora, como diz e bem o julgador, na decisão recorrida, “… quem quer que tenha assassinado Gelsea, teria que ter viatura própria para poder transportar a vítima…”. 

Como se prova, o Réu não tinha nenhum meio de transporte mas o declarante Márcio tinha carro próprio.

Ainda pelos extractos do telefone pudemos apurar que o declarante Márcio, entre o dia 1 e 3 de Maio de 2012, ligou cerca de 31 vezes para a ofendida. As chamadas começam às 5 horas da manhã e eram feitas no decorrer do dia, até às 22h00. A vítima não atendia e, nessas datas, ligou apenas uma vez para o declarante.

Quanto ao Réu, a média, nesses mesmos dias, era entre 4 a 5 ligações por dia.

Estes são os factos que ficaram provados.

No seu processo de convicção, o julgador refere as falhas cometidas pelo Inspector responsável pela instrução do processo, que impediram chegar-se a uma conclusão segura sobre quem seria o autor material do crime, razão pela qual, absolve o Réu em primeira instância.

A ausência de extracto da Unitel do telemóvel do Réu, impede que consigamos aferir os seus movimentos no momento do crime.

O declarante Márcio diz ter marcado o encontro com a vítima para entregar uma pen drive que continha o trabalho de monografia da vítima. No entanto, o Réu refere que na manhã do dia 3 de Maio a vítima já lhe havia enviado o trabalho por e-mail para que ele imprimisse. A versão do Réu era facilmente verificável, o que não foi confirmado pelo instrutor.

A declarante Arieth afirma ter visto o pescoço do declarante Márcio com marcas de arranhões, jura ter informado o Inspector que, de acordo com o seu depoimento, ignorou a questão.

O pai da vítima afirma ter dado ao inspector um cartão SIM que estava na mochila do Réu e um telefone que encontrou na sua casa, mas também não há nenhum dado no processo sobre tais objectos.

O Tribunal refere ainda elementos relevantes que não foram tidos em consideração, sobre o comportamento obsessivo que o declarante Márcio tinha pela vítima, porém, ainda assim, e sem que se entenda o porquê, o declarante Márcio não foi constituído Réu no processo.

Assim, face à prova carreada para os autos, conclui, o Tribunal Supremo, ao contrário do parecer do Digno Magistrado do M.P., não existir qualquer erro na valoração da prova, pelo que, bem andou o julgador ao servir-se do princípio da presunção da inocência, in dúbio pro Reo, já que, dos factos provados dúvidas não restam, que não podemos afirmar com a certeza absoluta que exige qualquer condenação, que tenha sido o Réu o verdadeiro autor do crime...”.

Vejamos:

O Recorrente, apesar da clara contradição entre parte do alegado e do pedido, a que já fizemos anteriormente referência, acaba por suscitar a inconstitucionalidade do acórdão, por desrespeitar o direito à vida, consagrado no art.º 30.º da CRA, entendendo a condenação do Réu pela prática do imputado crime de homicídio como a solução justa.

No fundo, sem nunca o referir, sustenta esta violação no erro notório da valoração da prova por parte de ambos os Tribunais.

Está-se em presença de erro notório na apreciação da prova sempre que, do texto da decisão recorrida, resulte, com evidência, um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores e que se traduza numa conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem. Isto é, torna-se necessário que o acervo fáctico apurado e a motivação explanada se torne evidente para todos que a conclusão da decisão recorrida é arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.   

Este entendimento é sufragado pela maioria da doutrina, no direito penal português, aqui trazido pela similitude da legislação, como escreve Paulo Saragoça da Matta no qual refere que, ao tribunal de recurso cabe apenas “... aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significara que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” in “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na Colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253.

Este Tribunal não logra, pois, descortinar onde a decisão recorrida seja contraditória, ilógica ou contrária às regras da experiência comum.

Pelo contrário, da leitura do texto da decisão da 1.ª instância e da decisão recorrida, conjugada com as regras da experiência comum, facilmente se percebe que a mesma é clara, amplamente fundamentada e os juízos que são feitos são apreendidos pelo Homem comum, ou seja, são lógicos, não arbitrários e balizam-se nas regras da experiência que constituem a baliza inultrapassável do princípio da livre convicção do julgador.

Dir-se-á antes, que o Recorrente pretende colocar em crise a convicção que o Tribunal recorrido formou perante as provas produzidas em audiência e substituir essa convicção pela sua ilusória convicção. Isto porque, é o próprio Recorrente quem pede a anulação da instrução por ter ocultado provas, negligenciado diligências, deixando bem patente, que também ele, conclui como o Tribunal de 1.ª instância – uma decisão em muito fruto de graves lapsos da fase de instrução.

Não se percebe, por isso, que se suscite esta inconstitucionalidade, alicerçada no facto de o Tribunal não ter condenado o Réu como autor material do crime de homicídio e, assim, desrespeitar o direito à vida.

Naturalmente que o crime ocorreu e o próprio Tribunal Supremo admite. Mas, uma condenação exige uma certeza absoluta que o Tribunal não teve e sustenta, como se disse e se repete, de forma lógica e sobejamente fundamentada. Fazê-lo seria violar os mais elementares direitos de defesa também com consagração constitucional, mormente, os princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo que dominam toda a nossa legislação penal.

Estribar a prova num passado marcado por discussões e agressões, como pretende o Recorrente, quando esse passado também é comum a uma terceira pessoa, no caso, o declarante Márcio, não deve, nem pode ser suficiente para se concluir pela autoria de um crime, com a certeza que se exige e com total respeito pelos mencionados princípios.

Com efeito, o princípio in dubio pro reo impõe que, em caso de dúvida na valoração da prova, a decisão seja a favor do réu e decorre daquele outro princípio, o da presunção de inocência.

Tendo o Tribunal recorrido ficado com dúvidas, como ficou, quanto aos factos provados, deve e manda a boa administração da justiça, lançar mão do princípio in dubio pro reo, como se lançou. 

O que o Recorrente pretende, como já se referiu, é que a convicção do Tribunal recorrido seja substituída por uma outra diferente, não pela sua própria (já que ele se traiu no pedido, resultando evidente que também considera não terem sido recolhidas as necessárias provas) mas pela deste Tribunal Constitucional que deveria dar como provados factos que não resultaram provados no decurso da audiência pelas razões constantes do acórdão recorrido como, de resto, demostrámos.

Finalmente, tem de dizer-se que, também se lamenta e reprova as descritas falhas de instrução que em nada dignificam a imagem da justiça ao permitirem que um crime tão bárbaro possa ficar impune.

Porém, não tem este Tribunal competência para deduzir qualquer processo contra o seu instrutor ou declarar a anulação da instrução, existindo, mecanismos próprios para esse efeito.

Entretanto, atento ao bem vida violado, este Tribunal recomenda que sejam extraídas cópias do processo para que o Ministério Público prossiga a averiguação dos reais autores do crime com vista à descoberta da verdade material.

Assim, porque não se verifica qualquer violação de algum princípio constitucional pelo Acórdão recorrido, improcede o recurso. 

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:  

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 09 de Abril 2019. 

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS 

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dr. Américo Maria de Morais Garcia

Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa

Dr. Carlos Magalhães

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Doutor Raul Carlos Vasques Araújo

Dr. Simão de Sousa Victor (Relator) 

Dra. Teresinha Lopes