ACÓRDÃO N.º 543/2019
PROCESSO N.º 653-A/2018
(Processo Relativo a Partidos Políticos e Coligações)
Em nome do Povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Suzana Paulo dos Santos e outros, com os demais sinais de identificação nos autos, vieram ao Tribunal Constitucional impugnar o II Congresso Extraordinário da FNLA, convocado e presidido por Lucas Benghim Gonda, Presidente do Partido FNLA, realizado de 25 a 27 de Junho de 2018, na província do Huambo, por alegadas irregularidades jurídico-estatutárias.
Para o pedido impetrado, os Requerentes, em síntese, apresentam a seguinte fundamentação:
Os Requerentes concluem pedindo a anulação do II Congresso Extraordinário do Partido, realizado na província do Huambo nos dias 25 a 27 de Junho de 2018, por violação dos Estatutos.
O Requerido foi regularmente notificado, tendo contra alegado, por excepção e impugnação, aduzindo, essencialmente, os seguintes fundamentos:
O Requerido concluiu pedindo que a presente acção seja julgada improcedente porque não provada e, em consequência, negar provimento ao pedido impetrado pelos Requerentes.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional tem competência para conhecer processos de impugnação de deliberações de órgãos de partidos políticos ou de resolução de quaisquer conflitos internos que resultem da aplicação de Estatutos e convenções partidárias, conforme as disposições combinadas da alínea c) do n.º 2 do artigo 180.º da Constituição da República de Angola (CRA), do artigo 30.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho - Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC) da alínea d) do n.º 1 do artigo 63.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional (LPC) e do n.º 2 do artigo 29.º da Lei n.º 22/10, de 3 de Dezembro - Lei dos Partidos Políticos (LPP).
III. LEGITIMIDADE
Nos termos do artigo 26.º do Código do Processo Civil (CPC), aplicável ex vi do artigo 2.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – LPC, as partes, na qualidade de militantes e membros da direcção do Partido Político FNLA, têm interesse directo em demandar e contradizer, pelo que se lhes assiste legitimidade no presente processo.
IV. OBJECTO
O objecto do presente processo é a verificação da conformidade jurídico-legal e estatutária do II Congresso Extraordinário do Partido Político FNLA, realizado de 25 a 27 de Junho de 2018, na província do Huambo.
V. APRECIANDO
Os Requerentes impugnaram a validade do II Congresso Extraordinário com fundamentação na violação da lei e dos Estatutos do Partido Político FNLA.
Da compartimentação da matéria fáctica, da aferição dos argumentos de razão e dos pedidos aduzidos pelas partes ressaltam, desde logo, duas questões de realce e pertinência jurídica, nomeadamente: a legitimidade dos Requerentes e a validade jurídico-legal e estatutária do II Congresso Extraordinário.
A) Sobre a Legitimidade
O Requerido alega que um dos 15 Requerentes, designadamente, Jaime Paulo Bengui, não tem legitimidade para interpor a presente acção judicial, por não ser membro do CC cessante.
Sobre este quesito, o artigo 21.º dos Estatutos da FNLA estabelece, nas suas alíneas a) a f), quem participa nos congressos daquela formação política.
Consultada a base de dados da FNLA disponível no Tribunal Constitucional, apurou-se que o militante em causa não é membro do CC cessante nem de outros órgãos de direcção previstos nas alíneas do supramencionado artigo.
Contudo, em boa verdade, a legitimidade é um pressuposto processual para que o juiz aprecie o mérito da causa, o que significa, dito de outro modo, que a sua falta, implica a absolvição do réu da instância e não do pedido, daí resultando incólume o direito perseguido, podendo, assim, o autor voltar a intentar a mesma acção em virtude de a decisão proferida no processo nunca poder fazer caso julgado material.
Se o autor tem razão ou se quem tem razão é o réu, quanto à questão controvertida, é o juiz quem deve decidir, bastando ter interesse directo em demandar ou em contradizer para que se tenha legitimidade.
Na doutrina civilista Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, no seu Manual de Processo Civil, 2.ª edição, página 144, perfilham que: “ a questão de saber se a relação material controvertida existe ou não validamente, se o dever jurídico correlativo se extinguiu ou não, interessa realmente ao mérito da causa; ao problema da legitimidade importa apenas saber, por seu turno, quem são os sujeitos dessa relação – pressupondo que ela exista, quais são as pessoas a quem a relação realmente diz respeito ou a quem ela interessa de modo directo”.
Importa dizer que a panóplia de princípios e direitos fundamentais, consagrados no artigo 29.º da CRA, designadamente, o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, conjugado com o disposto no artigo 26.º do CPC, não retiram legitimidade a um militante que pretenda invocar irregularidades suscitadas no partido político em que se encontra filiado, pelo que a questão suscitada pelo Requerido não prejudica a presente acção, por não constituir uma excepção dilatória. Por isso, atenta a perspectiva constitucional, sobre esta matéria, este Tribunal conclui que o Requerente Jaime Paulo Bengui, na qualidade de militante do Partido FNLA, é parte legítima, tem e pode ter interesse directo em demandar.
Outrossim, ainda que por mera hipótese assim fosse o facto de, no seio de 15 militantes, membros da direcção do Partido, apenas um não ter legitimidade, não nos parece ser um dado que obste a apreciação do mérito da acção ou que constitua causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor, determinando a improcedência total ou parcial do pedido.
B) Sobre a Validade Jurídico-Legal e Estatutária
Os partidos políticos constituem a expressão mais acabada e eminente do Estado democrático de direito no amplo exercício da sua função política, catalogando na sua funcionalidade quotidiana o primado da constituição e da lei. Essa circunstância, no âmbito das consequências delas decorrentes, impõe a aplicabilidade de normas ius cogens na sua regulação e disciplina jurídica.
No plano jurídico-constitucional, incumbe aos partidos políticos um dever funcional pautado na legalidade democrática, na ética e na organização e funcionamento democráticos, em respeito a uma ordem constitucional de valores, isso quer dizer que a sua actuação não pode nem deve ser feita de forma unipessoal, desregular, anárquica ou aleatória.
A razão de ser desses limites legais no modus operandi interno dos partidos decorre, em regra, da sua vocação democrática que visa em grande medida a interdisciplinaridade, a interacção permanente e a estabilidade dos seus órgãos internos, em homenagem ao princípio da colegialidade.
No caso vertente, os Requerentes alegam que o II Congresso Extraordinário violou normas estatuárias e a lei, desviando-se dos comandos legais, por isso, requerem a sua anulação.
Ora, tratando-se de um congresso extraordinário, em obediência ao disposto no artigo 23.º e na alínea s) do n.º 3 do artigo 26.º dos Estatutos, transcreve-se: “o anúncio da convocação do Congresso Extraordinário deve ser feito em reunião ordinária ou extraordinária do Comité Central com as suas causas devidamente fundamentadas” e “compete ao Comité Central autorizar o Presidente a convocar o Congresso (...)”. Daqui avulta claro que os Estatutos do Partido FNLA, seguindo o princípio democrático, estabelecem formalidades e procedimentos a cumprir para a convocação e a realização dos congressos extraordinários.
Acresce-se que das referidas normas estatutárias também se infere a obrigatoriedade de convocação antecipada, e da consulta e pronunciamento prévios pelo CC, no que respeita a esta matéria, fazendo vincar que hoje, cada vez mais, a democracia participativa e a liderança partidária descentralizada devem estar presentes na vida interna dos partidos, em detrimento das decisões unipessoais.
Aqui chegados, coloca-se a questão de saber se foram respeitados os cânones legais e estatutários. Senão vejamos:
De facto, realizaram-se as reuniões do CC e do Bureau Político, porém, compulsados os autos, constatou-se a existência de vícios e irregularidades formais insanáveis e irrazoáveis em relação a reunião do CC, que foi impugnada pelos militantes filiados nesta formação política.
Por isso, o Tribunal Constitucional não pode deixar de referir que a reunião do CC foi jurisdicionalmente declarada inválida em Outubro de 2018 e o II Congresso Extraordinário realizou-se de 25 a 27 de Junho de 2018. Contudo, o Presidente da FNLA realizou o referido Congresso, mesmo tendo prévio conhecimento de que estava em curso uma acção de impugnação da reunião ordinária do CC, uma vez que, foi notificado pela Juíza relatora no dia 26 de Março de 2018, e contestado a 10 de Abril do mencionado ano, o que demonstra a sua desconsideração pela impugnação suscitada pelos militantes deste Partido Político.
Entretanto, o Tribunal Constitucional, na apreciação do Processo n.º 626-D/2018, concluiu que não foram respeitados os procedimentos e as formalidades legais e estatutárias cabíveis e, por força disso, no seu Acórdão n.º 509/2018, de 16 de Outubro, declarou a invalidade da reunião do CC, incluindo todos os actos e deliberações nela adoptadas.
No presente caso, fica patente que a realização e a validação do II Congresso Extraordinário ora impugnado pelos Requerentes viola os princípios da legalidade democrática, da democraticidade interna, da colegialidade, da participação nas decisões e do direito de participação dialógica previstos na CRA, na lei e nos Estatutos da FNLA.
Por sua vez, em obediência à tutela dos direitos constitucionais, os princípios da legalidade e da igualdade material impõem aos partidos políticos o dever de respeito à CRA e à lei, em paridade de circunstâncias. Assim, o Partido FNLA está impelido ao seu acatamento, sob pena de nulidade dos actos que pratique ou das deliberações que adopte, ao abrigo do artigo 294.º do Código Civil.
Tal como decorre do artigo 286.º do Código Civil aplicável subsidiariamente ex vi do artigo 2.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (LOPC), “a nulidade é invocável a todo tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal”.
Nesta linha de pensamento, vale frisar que a declaração de invalidade da reunião do CC, nos termos do artigo 289.º do Código Civil, goza de retroactividade (ex tunc), ou seja, embora tenha sido proferida em Outubro de 2018, quando já se tinha realizado o Congresso impugnado, os seus efeitos retroagem, invalidando os actos e deliberações tomadas anteriormente.
Assim, atento ao disposto no Acórdão n.º 509/2018, de 16 de Outubro, a decisão fez caso julgado pelo que, conclui este Tribunal que assiste razão aos Requerentes devendo dar-se provimento ao seu pedido no que respeita à invalidade do II Congresso Extraordinário e, consequentemente, das deliberações, por este, adoptadas.
Neste sentido, deve o Requerido acatar as decisões deste Tribunal, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 177.º da CRA.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas (artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional).
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 16 de Abril de 2019.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite Silva Ferreira (Relatora)
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Teresinha Lopes