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ACÓRDÃO N.º 545/2019

 

PROCESSO N.º 683-C/2019

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Dabine Dabire, melhor identificado nos autos, veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, apresentando as conclusões que se transcrevem:

“... Andou mal o Tribunal Supremo ao indeferir a providência de habeas corpus, pois prescreve a lei constitucional que Todos têm direito a recorrer à Providência de Habeas Corpus contra abuso de poder, em virtude de prisão ou detenção ilegal, a interpor perante o Tribunal competente”.

Dúvidas não restam que a 18-09-18 o prazo de duração máxima da prisão preventiva havia sido excedido, assim como havia sido excedido o prazo do artigo 362.º do CPP, pelo que não poderia o Tribunal Supremo considerar que a acusação posteriormente deduzida justificava a manutenção da medida cautelar.

Note-se que ao Recorrente haviam sido aplicadas outras medidas cautelares, menos restritivas da liberdade, mas que eram necessárias e adequadas ao caso concreto e menos gravosas que a medida de prisão preventiva, que tem carácter excepcional.

Logo, o que é excepcional não pode ser transformado em regra, principalmente quando já haviam sido ultrapassados os prazos legais de duração e considerando a natureza das restrições dos direitos, liberdades e garantias...”.

Considera, ainda, o Recorrente que o Acórdão violou os princípios da presunção da inocência e do “in dubio pro reo”, requerendo que se declare a inconstitucionalidade do mesmo, o que determinará a sua liberdade.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA 

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional, de um Acórdão proferido no âmbito de uma providência de “habeas corpus”.

Trata-se de uma decisão que põe termo ao processo e, estando esgotada a cadeia de recurso ordinário, é este Tribunal competente para julgar o recurso.

III.  LEGITIMIDADE

O Recorrente é Réu no Processo de Querela n.º 683-C-2019, que corre os seus termos na 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no qual é acusado da prática de um crime de burla por defraudação, previsto e punível pela conjugação dos artigos 451.º, n.º 3, 421.º, n.º 5 e 104.º do Código Penal; um crime de Associação Criminosa, previsto e punível pelo artigo 8.º, n.º 1 da Lei n.º 3/14, de 10 de Fevereiro; um Crime de Tráfico de Influência, previsto e punível pelo artigo 41.º da Lei n.º 3/14, de 10 de Fevereiro; três crimes de Burla por Defraudação, previstos e puníveis pela conjugação dos artigos 451.º, n.º 3 e 421.º, n.º 5, ambos do Código Penal; um crime de Falsificação de Documentos, previsto e punível pelo artigo 216.º n.ºs 3 e 5 do Código Penal e um crime de uso de documento falso, previsto e punível pelo artigo 222.º do Código Penal, Lei do Processo Constitucional.

Assim sendo, o Recorrente tem legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da Lei 3/08, de 17 de Junho.

IV. OBJECTO 

O objecto do presente recurso é saber se o Acórdão da 1ª Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido a 14 de Dezembro de 2018, no Processo 497/18, viola o princípio da presunção da inocência e ofende os direitos, liberdades e garantias previstos nos artigos 56.º, 57.º, 63.º, 64.º, 67.º e 68.º, todos da Constituição da República de Angola.

V. APRECIANDO 

É jurisprudência corrente dos Tribunais Superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso. 

Os fundamentos dos recursos devem ser claros e concretos, pois aos Tribunais não incumbe averiguar a intenção dos recorrentes, mas apreciar as questões submetidas ao seu exame.

As conclusões das motivações não podem limitar-se à mera repetição formal de argumentos, mas constituir uma resenha clara que proporcione ao Tribunal Superior uma correcta compreensão do objecto dos recursos.

No caso concreto, o Recorrente vem invocar em sede de alegações a nulidade do mandado de detenção que o conduziu ao Estabelecimento Prisional com o número 0074/018, sem sequer ser interrogado ou visto o instrutor do processo.

Ora, tal mandado não obedece aos requisitos da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, mais concretamente, do seu artigo 4.º, pelo que, sendo o mandado nulo por força do artigo 9.º da mencionada Lei, a aplicação da prisão preventiva é, também, ilegal.

Sublinhe-se que esta questão não consta das conclusões, como devia. Porém, de acordo com a jurisprudência deste Tribunal Constitucional vai-se dela conhecer, pois este Tribunal não está vinculado às alegações ou conclusões do Recorrente.

Já em sede de conclusões, vem o Recorrente referir apenas que o Aresto impugnado, ao negar a Providência de “habeas corpus” interposta com base no excesso de prisão preventiva, viola os princípios acima descritos, na medida em que, quando foi notificado da acusação, já haviam decorrido mais de 4 meses, prazo imposto pela Lei das Medidas Cautelares para deduzir acusação.

Mais adiante refere, ainda, que o caso não justificaria esta medida de excepção, tanto assim que já antes lhe tinham sido aplicadas no mesmo processo medidas não restritivas da liberdade.

Assim, temos como questões a conhecer: a nulidade do mandado de detenção e o excesso de prisão preventiva. 

A) Nulidade do mandado de detenção.

Quanto a esta questão, vem o Recorrente referir que o mandado de detenção não obedece aos requisitos exigidos pelo artigo 4.º da LMCPP, na medida em que só pode ser emitido para apresentar o detido em flagrante delito para julgamento sumário; apresentar o detido perante o Magistrado do Ministério Público para primeiro interrogatório e subsequente aplicação e substituição da medida de coacção; garantir a presença do detido em acto processual, perante a autoridade judiciária, imediatamente, e assegurar a notificação da sentença condenatória e execução da pena de prisão ou de medida de segurança privativa da liberdade.

Ora, estando o ora Recorrente indiciado pela prática de alguns crimes e já sujeito a outras medidas de coacção, tendo sempre comparecido voluntariamente, sempre que chamado para prestar declarações, este Tribunal entende, concordando com o Requerente, que a sua situação não se enquadra em qualquer destas situações.

Porém, como o próprio alega, no dia 17 de Maio de 2018, foi convocado para comparecer a novo interrogatório no dia seguinte (18/05), pelas 10 horas, altura em que foi confrontado com o mandado de detenção n.º 0074/018, nos termos do qual deveria ser conduzido ao Estabelecimento Prisional, sem sequer ser interrogado.

Ora, não há dúvidas que lhe foi imposta a medida de coacção da prisão preventiva e ordenada a sua condução ao Estabelecimento Prisional, podendo, quando muito, ter havido um lapso de escrita, porquanto, deveria constar mandado de condução e não de detenção.

Assim, somos de concluir pela não razão do Recorrente.  

B) Excesso de prisão preventiva e severidade da medida de coacção. 

A este respeito alega que, tendo o Recorrente sido detido no dia 18/05/2018, a medida aplicada cessou no dia 18/09/2018 e a acusação foi proferida apenas a 25/10/2018, altura em que já havia decorrido o prazo de 4 meses estipulado no artigo 40.º da (LMCPP).

Isto, apesar de o Ministério Público ter feito uso do n.º 2, daquele dispositivo que permite a prorrogação por mais dois meses em casos de especial complexidade em despacho devidamente fundamentado.

O Recorrente considera este despacho nulo, porque não sustentado, e, nessa medida, mantém-se o referido prazo de 4 meses.

Vejamos:

O acervo factual relevante para o julgamento do presente recurso extraordinário é o que acaba de descrever-se e que, em termos probatórios, se funda nas peças processuais juntas, mormente o Acórdão recorrido.

A providência de “habeas corpus”, com tutela constitucional no artigo 68.º da Constituição da República de Angola, na expressão de Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação à Constituição da República Portuguesa, aqui trazidos à colação pela similitude de legislação, “consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido. Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”.

No respeitante à prisão ilegal, o seu tratamento processual decorre do artigo 315.º do CPP, cujo elenco taxativo faz derivar do facto de:

a) - Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) – Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;

c) – Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Os prazos máximos de prisão preventiva são os elencados taxativamente no artigo 40.º da Lei n.º 25/15, (LMCPP), e só esses (que não outros) porque peremptório (sublinhado nosso).

O ora Recorrente fundamenta, como se viu, o pedido de restituição à liberdade na ilegalidade da prisão preventiva decorrente da falta de acusação no referido prazo de 4 meses, tendo o Venerando Tribunal Supremo indeferido a providência do “habeas corpus”, por considerar, não ter sido excedido aquele prazo.

A este respeito, escreve-se no Acórdão recorrido, que a prisão preventiva tem respaldo legal, porquanto não estão excedidos os prazos estabelecidos por lei no seu artigo 40.º.

Embora só tenha feito referência à prorrogação do prazo por mais dois meses, proferido pelo Meritíssimo Juiz, certo é que, também, o Digno Magistrado do Ministério Público o tinha feito e de forma fundamentada, tanto assim que se refere à especial complexidade do processo dada a natureza dos crimes e número de arguidos, bem como à existência de crime punível com pena superior a 8 anos.

Assim, não houve qualquer ultrapassagem do prazo de prisão preventiva, na medida em que a acusação foi proferida muito antes dos 6 meses impostos por Lei, atenta – repita-se – a prorrogação efectuada.

No referido requerimento de “habeas corpus”, tal como nas alegações do presente recurso, o Recorrente discorreu sobre os elementos constitutivos dos crimes de que vem acusado e eventual enquadramento, mas como se diz e bem no Aresto impugnado, trata-se de matéria a ser conhecida num recurso ordinário e nunca nesta providência, que tem carácter excepcional e apenas serve as situações concretas de ilegalidade da prisão.

Sem dúvida são questões a serem discutidas em sede de instrução contraditória, se a houver, dado o seu carácter facultativo, ou em julgamento.

Com efeito, os recursos são meios de impugnação das decisões judiciais, destinados à reapreciação ou reponderação das matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal a quo e não meios de renovação da causa através da apresentação de novos fundamentos de sustentação do pedido (matéria não anteriormente alegada) ou formulação de pedidos diferentes (não antes formulados), ou seja, visando os recursos apenas a modificação das decisões relativas a questões apreciadas pelo tribunal recorrido (confirmando-as, revogando-as ou anulando-as) e não criar decisões sobre matéria nova, salvo em casos excepcionados pela lei.

A ser assim, não pode este Tribunal conhecer de factos sobre os quais os tribunais comuns não se pronunciaram, com respeito, também, pelo artigo 49.º da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho.

Invoca, ainda, que o Tribunal ao indeferir o “habeas corpus” violou o princípio da presunção da inocência.

A este propósito, o Recorrente parece estar a confundir medida de coacção com qualquer condenação antecipada de molde a sustentar a violação do denominado princípio da presunção de inocência.

Esta interpretação tão extensiva conduziria a que não se pudesse aplicar qualquer das referidas medidas cuja “ratio” radica no facto de acautelar a normal tramitação processual.

Também, Fernanda Palma, em «O Problema Penal Do Processo Penal», Jornadas De Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, [2004], pág. 42”, admite que: “... O reconhecimento de que o Processo Penal tem funções preventivas que são consideradas próprias das penas não conduz, consequentemente, a uma necessária rejeição das funções penais do Processo Penal, como se fosse possível um discurso meramente baseado em critérios de validade ideais mas não concretizáveis. Nem todas as funções preventivas do Pro­cesso Penal são antagónicas dos direitos fundamentais do arguido. Tais funções podem ainda desempenhar um papel positivo de estabilização das reacções sociais ao crime ou até da sua prevenção, impedindo reacções vingativas e afastando o arguido de possíveis vítimas, estabelecendo uma via positiva para a catarse e a futura reinserção social, caso o arguido venha a ser condenado.

À pergunta até onde é legítimo que o Processo Penal desempenhe uma função político-criminal relativamente semelhante à da pena, sem condenação antecipada do arguido e sem que as intervenções do Estado correspondam à aplicação de verdadeiras medidas de segurança pré-con­denatórias, impõe-se a seguinte resposta: até ao ponto em que o Processo Penal funcione como controlo das reacções privadas expressivas das pre­tensões individuais e sociais e realize a elevação da discussão sobre o crime concreto para um plano de diálogo entre o arguido e a sociedade”. 

Vem isto à discussão para se afirmar que não é possível preordenar as garantias individuais a exigências cuja observância arrisque a inviabilização da tarefa concreta de levar o processo a bom termo ou, pelo menos, ao final.

O mesmo vale para o invocado princípio do “in dubio pro reo”.

Por todo o exposto, e sem necessidade de maior indagação, conclui este Tribunal que o despacho recorrido não está ferido de ilegalidade e que, em consequência, o recurso não pode obter provimento, sendo a decisão recorrida, por tal via, confirmada. 

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:    

Sem custas nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

Notifique,

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 14 de Maio de 2019.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa           

Dr. Carlos Magalhães

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango     

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto 

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira 

Dr. Raul Carlos Vasques Araújo

Dr. Simão de Sousa Victor (Relator) 

Dra. Teresinha Lopes