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ACÓRDÃO N.º 550/2019

 

PROCESSO N.º 678-B/2018

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade – Habeas Corpus 

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Graciano Cassoma Dumbo, com os demais sinais de identificação nos autos, veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo n.º 436/18, que negou provimento, por falta de fundamento bastante, ao seu pedido de “habeas corpus”, impetrado na sequência de medida privativa de liberdade, decretada em audiência de julgamento, mediante promoção do Ministério Público.

O Recorrente havia sido arrolado como declarante no Processo n.º 321/17, que corria trâmites na 10.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, em que estavam a ser julgados, na qualidade de réus soltos, duas pessoas do sexo masculino, entre as quais um primo seu, acusadas da prática de crime de homicídio voluntário simples, previsto e punível pelo artigo 349.º do Código Penal. 

No decurso do interrogatório, o Tribunal concluiu que o Recorrente “manifestamente revelara ter conhecimento de factos que o indiciavam na co-participação no crime de homicídio simples”, pelo que o Ministério Público pediu, por despacho, a sua detenção para responder como arguido em um outro processo, dado o facto de o mesmo não ter sido constituído arguido nos autos em que figurava como declarante. A promoção do Ministério Público mereceu a anuência do Meritíssimo Juiz da causa, que ordenou a detenção e o internamento do Recorrente no Estabelecimento Prisional de Viana para, em prisão preventiva, aguardar o decorrer da instrução do processo.

Em sede do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, o Recorrente retoma, para arguir a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido, os fundamentos esgrimidos junto do Venerando Tribunal Supremo que, em síntese, têm que ver com o facto de se encontrar detido  sem ter sido ouvido em primeiro interrogatório e de a representação da Procuradoria Geral da República de Viana desconhecer a tramitação do seu processo.

Alega, deste modo, que a sua detenção viola os artigos 63.º (direitos dos detidos e presos), 64.º (privação da liberdade), 66.º (limites das penas e das medidas de segurança) e 67.º (garantias do processo criminal) da Constituição da República de Angola, CRA, bem como os artigos 12.º (primeiro interrogatório de arguido detido) e 40.º (prazos máximos da prisão preventiva) da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal, LMCPP. 

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos cumpre, agora, apreciar e decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, LPC, competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que contrariem princípios, direitos, garantias e liberdades constitucionalmente consagrados, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos. Esta faculdade está igualmente prevista na alínea m), do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, LOTC.

A decisão proferida pelo Tribunal Supremo esgota a cadeia recursória em sede da jurisdição comum.

III. LEGITIMIDADE

A Lei do Processo Constitucional, Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, na alínea a), do artigo 50.º, atribui legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade ao Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.

O Recorrente é o autor da providência de habeas corpus, cujo provimento foi negado. Tem, por isso, legitimidade processual activa para interpor este recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto o Acórdão do Tribunal Supremo que negou provimento ao pedido de “habeas corpus”, providência consagrada no artigo 68.º da Constituição da República de Angola (CRA).

V. APRECIAÇÃO

O aqui Recorrente, como antes referido, foi constituído arguido por despacho exarado pelo Meritíssimo Juiz da causa que decretou a sua detenção preventiva, tendo o Venerando Tribunal Supremo julgado improcedente o “habeas corpus” por considerar que os fundamentos aduzidos no pedido não se subsumiam ao previsto no § único do artigo 315.º do Código do Processo Penal, (CPP) e pelo facto de os autos não mostrarem terem sido excedidos os prazos estabelecidos na Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal.

Os prazos aqui referidos dizem, obviamente, respeito aos da prisão preventiva, estabelecidos no artigo 40.º da LMCPP, sendo que o CPP, no supracitado § único do artigo 315.º, faz depender o recurso à providência  de habeas corpus dos motivos seguintes:

  1. Ter (a prisão) sido efectuada ou ordenada por quem para tanto não tenha competência;
  2. Ser motivada por facto pelo qual a lei não autoriza a prisão;
  3. Manter-se além dos prazos para apresentação em juízo e para a formação de culpa;
  4. Prolongar-se além do tempo fixado por decisão judicial para a duração da pena ou medida de segurança ou da sua prorrogação.

O Tribunal “ad quem” sustentou, ainda, a sua decisão considerando que “a impugnação das medidas de coacção aplicadas pelo Ministério Público, na fase de instrução preparatória, deve obedecer ao procedimento estabelecido no artigo 3.º da LMCPP”. Nos termos do dispositivo legal aqui em referência, a impugnação é feita perante o Juiz Presidente do Tribunal territorialmente competente(…).

É já significativa a jurisprudência deste Tribunal em matéria de “habeas corpus”, garantia privilegiada de tutela do direito à liberdade, destinada a reagir contra o abuso de poder, em virtude de prisão ou detenção ilegal.

Como tem sido reafirmado, o fundamento desta providência assenta, assim, numa restrição ilegal e efectiva da liberdade física, cuja privação deve ser conforme com o que emana da Constituição e da lei relativamente às medidas privativas da liberdade (ver, por exemplo, os artigos 36.º, 57.º e 64.º da CRA).

De harmonia com o artigo 2.º da Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal, Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, a aplicação de uma medida de coacção processual, incluindo a detenção, determina a constituição como arguido/a da pessoa sobre quem recai a referida medida, se ela não estiver ainda nessa condição processual. Por seu lado, o artigo 36.º desta mesma lei consagra a prisão preventiva como medida de ultima ratio, ou seja, de aplicação quando considerada inadequada ou insuficiente qualquer outra medida de coacção e quando existirem fortes indícios da prática de um crime doloso, punível com pena de prisão superior a 3 anos (…).

Foi, pois, ao abrigo deste fundamento, o de, no caso, existirem fortes indícios da prática do crime de homicídio voluntário simples, crime abstractamente punível com a pena de prisão maior de dezasseis a vinte anos, que o aqui Recorrente, como antes mencionado, foi detido preventivamente, tendo, em consequência, passado da condição de declarante para a de arguido.

Ora, à condição de arguido, descrito no artigo 251.º do CPP como aquele sobre quem recai forte suspeita de ter perpetrado uma infracção, cuja existência esteja suficientemente comprovada, associam-se um conjunto de direitos, garantias e obrigações e de consequências jurídico - processuais que definem o seu estatuto jurídico - processual penal. Destes importará destacar o direito à presunção de inocência e os demais direitos inseridos no direito constitucional de defesa, o que engloba todos os direitos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação, que deverão ser accionados a partir do momento da sua constituição como tal (arguido).

No caso em apreço e ante os fundamentos do aresto recorrido, uma primeira questão que poderia ser ponderada tem que ver com os critérios que nortearam a aplicação da prisão preventiva. Enquanto medida de coacção processual de “ultima ratio”, é informada, em consonância com consagrado na CRA (artigo 57.º, n.º 1), pelos princípios da necessidade, da adequação, da proporcionalidade e da subsidiariedade (artigo 18.º da LMCPP). Tal significa, grosso modo, que está reservada para aquelas situações em que todas as outras medidas cautelares se afiguram insusceptíveis de garantir a prossecução dos fins do processo, ou seja, a descoberta da verdade material e a realização da justiça. A medida de privação da liberdade tem, assim, de ser indispensável, a que melhor se coaduna com as exigências processuais do caso concreto e com gravidade da infracção praticada e, sendo a mais gravosa, ser tida como a única possível de aplicar em face das demais medidas cautelares.

Além disso, a LMCPP faz depender a aplicação de qualquer medida de coacção processual da verificação dos pressupostos elencados no seu artigo 19.º e que têm que ver com “a fuga ou perigo de fuga, o perigo de perturbação da instrução do processo, perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas”.

Ora, embora a prisão preventiva tenha sido decretada em audiência de julgamento e pese o dever de fundamentação das decisões judiciais, os autos são pouco reveladores quanto à observância dos pressupostos materiais atinentes à aplicação desta medida privativa da liberdade, sendo, por outro lado, de notar que os co-réus no processo em que o Recorrente foi constituído arguido estavam a ser julgados na qualidade de réus soltos.  

Mas se as questões acima elencadas podem parecer não relevar para a sindicância que é pedida a este Tribunal, o mesmo já não acontecerá se avaliada a tutela, com igual relevância, que recai sobre outros direitos atinentes à condição processual de arguido que, enquanto parte processual, usufrui do direito de influenciar e impulsionar o processo, assumindo um papel determinante no funcionamento da estrutura e da dinâmica contraditória que o caracteriza.

Nesta perspectiva, ao arguido é reconhecido, englobado no seu direito de defesa, o direito de audição e ao consequente interrogatório que, além de um direito, constitui igualmente um meio de prova importante para a realização quer do contraditório, quer dos fins do processo. Este direito, o de audição, configura, por conseguinte, uma das mais relevantes expressões do direito de defesa, a par da faculdade (direito) de o arguido se fazer acompanhar e /ou assistir de advogado ou defensor.

O aqui Recorrente alegou nunca ter sido ouvido pelo Digno Representante do Ministério Público, facto que a lei qualifica como irregularidade processual, quando não observado o prazo legal estabelecido para o primeiro interrogatório, que perfaz um total de 72 horas (n.º 1 do artigo 12.º da LMCPP), e que fere de nulidade se o interrogatório for efectuado sem a presença do advogado constituído ou do defensor nomeado para o efeito, tratando-se de arguido preso (n.º 4 do artigo 98.º do CPP). Importa, no entanto, referir que quer a irregularidade, quer a nulidade aqui consideradas podem ser sanáveis. No primeiro caso, desde que a irregularidade seja arguida nas fases processuais subsequentes e, no segundo, desde que seja posteriormente constituído ou nomeado defensor e este não venha a arguir, no prazo de cinco dias, após a junção aos autos da procuração, a referida nulidade (§ 5º do artigo 98.º do CPP).

Na verdade, dos autos resulta que, aquando da interposição do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, o Recorrente não havia ainda sido ouvido em primeiro interrogatório, procedimento obrigatório na fase de instrução preparatória, susceptível, mesmo, de permitir avaliar se os motivos que determinaram a detenção subsistem e se justificam uma medida de coacção.

Entretanto, na sequência de diligência conduzida pela Digna Representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional constatou-se, documentalmente, que esse primeiro interrogatório veio a ter lugar a 29 de Novembro de 2018, ou seja, 3 meses após a detenção do Recorrente, ocorrida a 24 de Agosto desse mesmo ano, na presença de defensor oficioso, ficando por apurar se o advogado, na altura já constituído, foi ou não notificado. Também se dá nota do processamento dos autos junto dos serviços da Procuradoria Geral da República de Viana.

Por outro lado, constatou, igualmente, este Tribunal, no âmbito dessa mesma diligência, o facto de o Ministério Público não ter ainda deduzido a acusação, nem praticado acto para eventualmente fundamentar uma possível prorrogação do prazo da prisão preventiva, ex vi do n.º 2 do artigo 40.º da LMCPP e nem realizado qualquer outra diligência reputada de essencial para a descoberta da verdade sobre a matéria factual ao abrigo da qual o Recorrente foi detido preventivamente.

Por imperativo constitucional e legal, a prisão preventiva está sujeita a prazos, sendo que a actividade do Ministério Público é alicerçada no princípio da legalidade, o que o obriga a pautar a sua actividade de promoção processual por critérios com fundamento legal. Na alínea a), do artigo 40.º da Lei n.º 25/15, de 8 de Setembro, é fixado em 4 meses o prazo da prisão preventiva sem acusação do arguido. O decurso deste prazo traz como consequência jurídica a extinção imediata da medida privativa de liberdade, pese embora a possibilidade de ser aplicada uma outra medida de coacção processual menos gravosa.

A providência de “habeas corpus”, além de direito fundamental, constitui garantia constitucional de tutela do direito à liberdade ante situações que atentem de modo inconstitucional ou ilegal contra este direito. A jurisprudência deste Tribunal com referência à prisão cautelar funda-se na premissa constitucional segundo a qual a privação da liberdade apenas é permitida nos casos e nas condições determinadas por lei (n.º 1 do artigo 64.º da CRA), estando, entre essas condições, os limites temporais das medidas restritivas da liberdade, que devem ser escrupulosamente respeitados.

A par disso, é mister enfatizar que a presunção de inocência integra o rol das garantias constitucionais do arguido, como supra mencionado, afirmando-se como um princípio reitor do direito penal e processual penal, que deve ser tido em conta em todas as fases do processo e, consequentemente, no domínio da aplicação das medidas cautelares de coacção processual. Daqui decorre que o decretamento de qualquer medida privativa de liberdade deva ser balizado por este princípio, além de se ter em conta um ajustado equilíbrio entre os interesses em jogo e a salvaguarda dos direitos fundamentais de quem é objecto de tal medida, nestes incluídos o direito à liberdade e o direito à presunção de inocência.

Ao decidir no sentido de a pretensão do Recorrente ser impugnada à luz do n.º 1 do artigo 3.º da LMCPP, o Venerando Tribunal Supremo parece ter sufragado o entendimento perfilhado por alguns sectores da doutrina e da jurisprudência que deixa de fora do âmbito desta providência a impugnação de irregularidades, nulidades, deficiências ou omissões processuais que, não obstante, resultem na privação ilegal da liberdade, atendo-se apenas à taxatividade dos fundamentos legalmente estabelecidos para a sua interposição.

O Recorrente encontrava-se em situação de detenção ilegal, decorrente da inobservância de procedimento processual referente ao primeiro interrogatório de arguido preso, diligência obrigatória até na perspectiva da manutenção da própria prisão preventiva, tal como aflorado, o que poderia legitimar o provimento da providência de “habeas corpus”. E isto se acolhida a orientação, também de sectores doutrinais e jurisprudenciais, que defendem que o habeas corpus aproxima-se, por vezes, de um modo de recurso em processo penal, o que justificará a sua legitimidade com base em nulidade ou na violação de pressupostos jurídico - normativos (constitucionais e legais) da determinação ou manutenção da prisão preventiva.

Ainda assim e apesar de já ter sido ouvido em primeiro interrogatório, a manutenção da prisão preventiva do aqui Recorrente tornou-se manifestamente ilegal, em face do decurso do prazo de 4 meses para a dedução da acusação, estabelecido na alínea a) do artigo 40.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, o que determina que seja, de imediato, restituído à liberdade.

O direito à liberdade é um direito fundamental positivado na CRA (artigo 36.º da CRA), tal como os demais direitos e garantias dos presos e detidos estabelecidos nos artigos 63.º e 67.º da Constituição da República de Angola, impondo-se, deste modo, ter em conta que realizar o direito do processo penal pressupõe conferir a devida protecção aos direitos fundamentais.

O recurso à garantia constitucional do “habeas corpus”, a que o Recorrente lançou mão para reivindicar o seu direito à liberdade, tornou-se assim, no caso “sub judice”, plenamente justificada ante a ilegalidade da manutenção da prisão preventiva, que é temporalmente limitada, à luz da Constituição e da legislação vigente sobre esta matéria, aqui enunciada.

DECIDINDO

Nestes termos

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:  

Sem custas nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 21 de Maio de 2019.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS 

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dr. Américo Maria de Morais Garcia 

Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa

Dr. Carlos Magalhães 

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora) 

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dr. Raul Carlos Vasquez Araújo

Dr. Simão de Sousa Victor 

Dra. Teresinha Lopes