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ACÓRDÃO N.º 557/2019

 

PROCESSO N.º 682- B/2019

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Velosi Angola, Lda, com os demais sinais de identificação nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, do Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 327/15, pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo.

A Recorrente foi demandada, em primeira instância, por Bartolomeu Matina Kuesse, que à data dos factos era funcionário da empresa, exercendo o cargo de inspector de electricidade e instrumentalização, num regime rotativo de 28 dias de trabalho e 28 de folga.

Aquele demandante intentou uma acção de conflito laboral, em virtude de a Recorrente opôr-se ao pagamento das horas extras trabalhadas, nos anos de 2010, 2011, 2012 e 2013 o que perfaz um total de 528 horas, equivalente a kz. 4 000 087, 47 (quatro milhões e oitenta e sete Kwanzas e quarenta e sete cêntimos).

A Recorrente foi citada legal e regularmente, mas não apresentou a sua contestação.

O Tribunal a quo considerou confessados os factos alegados, tendo, por sua vez, condenado a Recorrente a pagar o montante de Kz. 4 000 087, 47 (quatro milhões e oitenta e sete Kwanzas e quarenta e sete cêntimos) ao então Demandante.

Insatisfeita com a decisão do Tribunal a quo, a Recorrente interpôs recurso para o Tribunal Supremo.

No Tribunal Supremo, a Recorrente juntou as alegações. No entanto, a Juíza Relatora considerou-as demasiado extensas, pelo que convidou, (em despacho a fls. 125) a aperfeiçoar as alegações, sob pena de não tomar conhecimento do recurso.

Em cumprimento do despacho, a Recorrente apresentou novas alegações, porém, com conteúdo similar às primeiras, tendo suprimido apenas 2 artigos nas conclusões.

O Tribunal Supremo, ao verificar que a Recorrente não cumpriu o despacho retro mencionado, julgou improcedente o recurso, com o fundamento de que as alegações eram muito extensas o que as tornou obscuras, não tendo sido possível delimitar o objecto do recurso.

Discordando do Acórdão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, a Recorrente interpôs recurso neste Tribunal, suscitando a sua inconstitucionalidade, com base nos seguintes fundamentos:

  1. O Acórdão recorrido, ao decidir como decidiu, violou manifestamente o disposto no n.º 1 do artigo 29.º, n.º 1 do artigo 57.º e o artigo 72.º todos da CRA, bem como o artigo 690.º do Código de Processo Civil…;
  2. O Tribunal Supremo tomou a decisão de não conhecer do recurso por falta de objecto, alegando que as conclusões da alegação de recurso apresentadas pela Recorrente são obscuras e extensas, e por via disso tornou-se impossível a delimitação do seu objecto…;
  3.  as alegações, sem embargo de serem extensas, indica os pontos sobre os quais o tribunal foi chamado…;
  4. Ainda que as conclusões apresentadas pela Recorrente não ofereçam a clareza desejada e mesmo que pareçam extensas, não se pode concluir pela cominação de não conhecimento do recurso, sob pena de violação do disposto no artigo 690.º do CPC e n.º 1 do artigo 29.º, n.º 1 do artigo 57.º e o artigo 72.º todos da CRA;
  5. A CRA considera o direito ao recurso como uma garantia constitucional, qualificando-o, como direito fundamental de primeira geração, integrado na categoria de direitos, liberdades e garantias;
  6. Ao decidir como decidiu, o Acórdão do Tribunal Supremo na prática e efectivamente, condicionou o gozo de direito ao recurso, de modo inconveniente, irrazoável e perigoso, o conteúdo e a eficácia da garantia constitucional prevista no n.º 6 do artigo 67.º da CRA, incluindo a proporcionalidade e razoabilidade estabelecidas no artigo 57.º da CRA;
  7. … o direito ao recurso não pode ser prejudicado por disposições processuais, uma vez que a aplicação subsidiaria do CPC em sede de direito constitucional deve obediência ao princípio da adequação funcional.

A Recorrente terminou as alegações pedindo que seja dado provimento ao recurso, e, consequentemente, que seja revogado o Acórdão recorrido, por estar em desconformidade com a Constituição.

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.

III. LEGITIMIDADE

A Recorrente foi apelante do recurso ordinário, no Processo n.º 327/15.

Têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC”.

Assim sendo, tem legitimidade para interpor o presente recurso.

IV. OBJECTO

O recurso visa a apreciação da constitucionalidade do Acórdão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, que não conheceu do recurso interposto pela Recorrente, por falta de objecto.

V. APRECIANDO 

A) SOBRE O ARTIGO 690.º DO CPC

A Recorrente sustenta nas alegações que, “apesar da peça das alegações, ser extensa, a mesma indica os pontos sobre os quais o tribunal foi chamado… o Tribunal Supremo, ao decidir como decidiu, violou manifestamente o disposto no n.º 1 do artigo 29.º, n.º 1 do artigo 57.º, e artigo 72.º, todos da CRA, e o artigo 690.º do Código de Processo Civil (C.P.C) ”.

Consta dos autos que o Acórdão do Tribunal Supremo refere que, a fls. 154, “as alegações apresentadas são muito extensas, o que as torna obscuras, tornando-se impossível delimitar o objecto do recurso”.

Cabe precisar que a extensão de uma peça processual não é, de per si, causa da sua obscuridade. Estar-se-á perante obscuridade das alegações quando estas são elaboradas de modo que suscitem dúvidas, quanto à percepção do real sentido e alcance da pretensão do Recorrente.

No caso vertente, o Tribunal Supremo obstou ao conhecimento do recurso, pelo facto das conclusões do recurso não terem respeitado os requisitos do artigo 690.º CPC, máxime, o do seu número 3, como se pode ler a fls.154:

O n.º 1 do artigo 690.º do CPC dispõe o seguinte:

“1. O Recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual concluirá pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.”

Acrescentando o n.º 3 do artigo acima referido estabelece o seguinte:

Quando as conclusões faltem, sejam deficientes ou obscuras, ou nela se não especifique a norma jurídica violada, o juiz ou relator deve convidar o recorrente a apresentá-las, completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las (sublinhado nosso, requisito introduzido pelo Tribunal Supremo), sob pena de não se tomar conhecimento do recurso…”.

Consta do processo que a Recorrente, em cumprimento do despacho, de fls.125, apresentou uma peça tão extensa quanto a primeira, pelo que a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo decidiu não conhecer do recurso, com o fundamento de que as conclusões eram muito extensas, o que as tornou obscuras, sendo impossível delimitar o objecto do recurso.

Ante o sustentado pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, questiona-se o seguinte: havendo extensão das conclusões, isso torna-as necessariamente obscuras?

De sublinhar que os fundamentos para o não conhecimento do recurso assentam taxativamente nos requisitos consignados no n.º 3 do artigo 690.º do CPC, do qual não consta efectivamente a exigência de as conclusões serem sintéticas.

Com efeito, a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo sub-rogou-se ao legislador ao aditar mais um requisito para o não conhecimento do recurso, o que é inconstitucional.

Na verdade, a norma não consagra a exigência de síntese das conclusões. Sendo as alegações a oportunidade que o Recorrente dispõe para expor as suas razões de facto e de direito por que recorre, isto é, para discriminar as questões postas e os fundamentos invocados para que a sua pretensão vença, aceitar solução diferente traduzir-se-ia numa clamorosa limitação ao direito de defesa em recurso.

De facto, a teleologia subjacente à exigência da conclusão é a exposição clara, explícita do âmbito do recurso e dos seus fundamentos, como de resto se pode inferir do aresto recorrido.

Contudo, o n.º 3 do artigo 690.º do CPC estabelece de forma explícita e taxativa que não se conhece do recurso, quando as conclusões faltem, sejam deficientes ou obscuras, não havendo qualquer menção no corpo daquele artigo, quando sejam extensas.

Nesta senda, sustenta o Professor Alberto dos Reis “…o que o artigo 690.º exige, sob pena de não conhecimento do recurso, é que o recorrente apresente alegação e que esta tenha conclusão; Que as conclusões sejam extensas, em vez de concisas, ou sejam mais extensas do que podiam ser, não justifica a aplicação da sanção cominada no artigo. Desde que a alegação termine por conclusões, desde que a parte final desta peça mereça realmente a qualificação de conclusões, o facto de estas serem mais extensas do que podiam e deviam ser não deve obstar ao conhecimento do recurso”. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, pág. 361.

O insigne professor Alberto dos Reis ainda refere que “Os fundamentos dos recursos devem ser claros e concretos, pois aos tribunais não incumbe perscrutar a intenção das partes, mas sim apreciar as situações que são submetidas ao seu exame. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, pág. 359.

Compulsados os autos, constata-se que a peça de fls. 131 a 143, não obstante ser extensa, contém conclusões que permitem delimitar o objecto do recurso, visto que a Recorrente indica os fundamentos do recurso e as normas jurídicas violadas, conforme estabelece o n.º 1 do artigo 690.º do CPC.

Com efeito, logo no articulado 1.º das conclusões, o Recorrente (na veste de apelante) identifica as três questões que quer ver decididas pelo Tribunal Supremo, designadamente:

  1. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia, referindo no articulado 5.º das conclusões que “nulidade essa expressamente se arguiu, nos termos e de harmonia com o disposto nos artigos 201.º, n.º 1, 433.º, n.º 3, 666.º, nºs 2 e 3 e 668.º n.º 1, alínea d), todos do Código de Processo Civil (CPC);
  2. Nulidade da citação da Apelante por preterição de formalidades legais, referindo no articulado 9.º que “verifica-se que a citação efectuada nos presentes autos foi efectuada em pessoa diversa da Apelante, o que consubstancia uma situação de falta de citação por preterição de formalidades essenciais, nos termos do disposto no artigo 195.º n.º 1 alínea d) do CPC, tendo sido violado flagrantemente o disposto nos artigos 433.º n.º 3, 666.º nºs 2 e 3 e 668.º n.º 1, todos do CPC, o que gera nulidade de todo o processado posterior à apresentação em juízo da petição inicial, conforme disposto no artigo 194.º do mesmo diploma”;
  3. Da insuficiência de factos alegados pelo autor e dados como provados na sentença para fundamentar o efeito jurídico pretendido pelo Autor, ora Apelado, referindo que “a douta sentença ao condenar a Ré, ora Apelante, nos termos peticionados pelo Autor, aqui Apelado, por força da sua revelia e mediante recurso ao efeito cominatório pleno, violou de forma flagrante o disposto na alínea b) do artigo 485.º do CPC, devendo assim a mesma ser revogada e substituída por Acórdão que ordene o prosseguimento dos autos para saneamento e condensação e posterior marcação da audiência de julgamento”.

Conforme já foi mencionado supra, tendo a Apelante alegado nas conclusões o que já havia exposto em sede de alegações (o que as tornou extensas), a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo tinha elementos para identificar o objecto do recurso.

Tendo em consideração ao exposto, o Tribunal Constitucional entende que o Acórdão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo violou o disposto do artigo 690.º do CPC ao não conhecer do recurso.

B) No que respeita à violação do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição da República de Angola (CRA)

O artigo supra referido tem como epígrafe “acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva”.

O artigo em análise estatui que:

  1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência dos meios económicos”.

Segundo o Prof. Raul Araújo, “este princípio, enquanto direito fundamental, dá a todos os cidadãos o direito de acesso ao direito e aos tribunais, independentemente da sua condição económica. Assim, qualquer cidadão que veja violados os seus interesses legalmente protegidos, tem o direito de recorrer aos tribunais…”. Raul Carlos Vasques Araújo; Elisa Rangel Nunes, Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, pág. 274.

O acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, tem como base fundamental a garantia de que todos os cidadãos tenham acesso à informação jurídica aos tribunais, ao patrocínio judiciário e o direito a que a decisão da sua causa seja tomada em tempo razoável e útil.

Compulsados os autos, constata-se que a Recorrente interpôs recurso ordinário, sem que lhe tivessem criado qualquer constrangimento ou empecilho.

Assim sendo, o Tribunal Constitucional entende que não houve violação do direito de acesso ao direito, como a Recorrente enuncia nas alegações.

C) Sobre a violação do artigo 72.º da CRA

O preceito constitucional em causa estabelece que “a todo o cidadão é reconhecido o direito a julgamento justo, célere e conforme a lei”.

O direito a julgamento justo é um pressuposto do Estado Democrático de Direito e uma garantia que supõe a existência de uma administração da justiça funcional, imparcial e independente.

Verifica-se nos autos que as alegações apresentadas pela Recorrente, apesar de serem extensas, contém conclusões com fundamentos de facto e de direito que permitiam ao tribunal recorrido delimitar o objecto e conhecer do recurso.

A Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, ao não conhecer do recurso, invocando que as conclusões das alegações eram muito extensas o que as tornou obscuras, violou grosseiramente o estabelecido no artigo 690.º do CPC e, por conseguinte, o direito do Recorrente a um julgamento justo e conforme, nos termos do artigo 72.º da CRA, que configura uma autêntica denegação de justiça.

Assim, tendo o despacho recorrido violado os aludidos princípios constitucionais, deve o presente recurso ser julgado procedente e consequentemente remeter os autos ao Venerando Tribunal Supremo para que reforme a decisão, conhecendo o recurso nos termos do n.º 2 do artigo n.º 47.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

Nestes termos

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em: 

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Américo Maria de Morais Garcia

Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa

Dr. Carlos Magalhães

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora) 

Dr. Raul Carlos Vasques Araújo

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Teresinha Lopes