ACÓRDÃO N.º 558/2019
PROCESSO N.º 693-A/2019
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
António Martinho André, com os demais sinais de identificação nos autos, vem, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por não se conformar com o Acórdão proferido pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo – Processo n.º 1237/17, pois entende que houve violação de importantes princípios constitucionais, como o da legalidade, da igualdade e o da pessoalidade e intransmissibilidade do crime.
O Recorrente apresentou, neste Tribunal, alegações para sustentar o pedido, asseverando, em síntese, o seguinte:
Terminou pedindo que se declare a inconstitucionalidade material do Acórdão recorrido e, em consequência, seja alterada a decisão.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) e do § único do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
III. LEGITIMIDADE
Tem legitimidade activa quem possui interesse directo em demandar e legitimidade passiva quem tem interesse directo em responder à demanda.
Ora, o Recorrente é parte legítima e o recurso foi interposto nos termos e em conformidade com a alínea a) do artigo 50.º da LPC.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto analisar se o Acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo – Processo n.º 1237/17, violou os princípios constitucionais, nomeadamente, o da legalidade, o da igualdade, o da pessoalidade e o da intransmissibilidade do crime.
V. APRECIANDO
O Recorrente, inconformado com a decisão proferida pelo Tribunal Supremo acima identificado, interpôs o presente recurso, alegando, em síntese, que o disposto no artigo 6.º n.º 2 da CRA sobre o princípio da legalidade, na sua óptica, não foi observado, pois houve restituição da parte que lhe cabia, devolvido ainda na fase de instrução processual e atendendo o disposto no artigo 57.º n.º 1 da Lei n.º 3/14 de 10 de Fevereiro, extingue-se a responsabilidade criminal (…) até a publicação da sentença em primeira instância.
Alegou violação ao princípio da legalidade e da pessoalidade e intransmissibilidade do crime, nos termos dos artigos 6.º n.º 2 e 65.º n.º 1 da CRA, já que coube a cada um dos Réus o quinhão de AKZ 1 500 000 para Senhora Catarina, AKZ 400 000 para o Recorrente e 100 000 para o Senhor Nelito Gina, por isso afirma que o grau de culpabilidade não é o mesmo.
Igualmente frisa a inobservância do princípio da igualdade previsto no artigo 23.º n.º 1 da CRA, porque a participação do Senhor Nelito Gina na suposta fraude foi igual à do Recorrente, uma vez que ambos agiram como meros intermediários e ficaram com uma comissão. No entanto, o Senhor Nelito Gina foi absolvido.
Vejamos se houve inobservância dos princípios constitucionais invocados.
Da análise feita, constata-se a informação redigida pelo Instrutor do processo, datada de 1 de Dezembro de 2016, sobre a devolução do valor restituído pelos Réus, sendo que o Recorrente restituiu o valor total da parte que recebeu, como intermediário do negócio, perfazendo Kz. 400 000 (quatrocentos mil kwanzas), cfr. folhas 113 dos autos.
Igualmente, a declaração do ofendido confirma a recepção do valor integral em causa, depositado pelo Recorrente e pela Senhora Catarina Epalanga efectuadas em contas bancárias diferentes, cfr. fls. 370, 371 dos autos.
Pela referida restituição, alega o Recorrente que dever-se-ia extinguir a responsabilidade criminal, nos termos do artigo 57.º n.º 1 da Lei n.º 3/14 de 10 de Fevereiro – Lei sobre a Criminalização das Infracções Subjacentes ao Crime de Branqueamento de Capitais.
Dispõe a referida norma o seguinte:
“Restituição ou Reparação de Crimes de Furto ou Abuso de Confiança
O artigo mencionado é claro e não suscita dúvidas, uma vez que abrange somente os crimes de furto e o abuso de confiança, estando, naturalmente, excluído o crime de burla por defraudação.
Portanto, este argumento não é aplicável ao caso em apreço.
Alega, igualmente, ter havido violação ao princípio da legalidade porque foi punido nos termos do artigo 421.º n.º 5 de CP. Entretanto ficou provado que beneficiou apenas de AKZ 400 000 e a moldura penal aplicável seria o n.º 4 do referido artigo que prevê a penalidade de 2 a 8 anos de prisão maior.
Ora, o Recorrente vem condenado pelo crime de burla por defraudação previsto pelo artigo 451.º do CP e o critério concebível de punição para este tipo é o valor da coisa furtada ou do prejuízo causado (…).
Conforme tipificado na norma, claramente se depreende única e exclusivamente ao valor da coisa furtada ou do prejuízo e, não ao valor da coisa/quantia que se recebe em consequência da divisão nos casos de comparticipação criminosa tal qual alude o Recorrente.
Por isso, ao admitir-se a interpretação nos moldes em que está a ser feita, incorrer-se-ia na interpretação extensiva, cuja proibição tem respaldo no artigo 18.º do CP, quando em causa estiverem as normas penais incriminadoras, sendo o caso em apreço.
Neste sentido, este Tribunal não considera procedente a alegação do Recorrente para declarar inobservância ao princípio da legalidade. Na descrição típica do ilícito em causa (artigo 451.º do CP), o critério é o do valor da coisa furtada ou do prejuízo causado e não a quantia recebida pelo Recorrente.
Outro aspecto alegado pelo Recorrente foi a violação ao princípio da pessoalidade e intransmissibilidade do crime e da legalidade porque beneficiou de AKZ 400 000 e, atendendo que o valor é inferior a AKZ 600 000, o crime enquadrar-se-ia no n.º 4 do artigo 421.º do CP e não nos termos em que foi condenado, afirmando, por isso, que o grau de culpabilidade não é o mesmo.
Em relação ao princípio da pessoalidade e intransmissibilidade do crime consagrado pelo artigo 65.º n.º 1 da CRA, destacam-se as posições de Gomes Canotilho e Vital Moreira reportando-se à insusceptibilidade da transmissão da responsabilidade penal por estar associada ao princípio da pessoalidade.
Como refracções deste princípio aponta-se “a extinção da pena e do procedimento criminal com a morte do agente, a proibição da transmissão da pena para familiares, parentes ou terceiros e a impossibilidade de sub-rogação no cumprimento das penas. In: Constituição da República Portuguesa Anotada”. Vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, pág. 504.
Por outro lado, com o princípio da pessoalidade das penas pretende-se afirmar que os efeitos das penas devem ser limitados, directa e imediatamente à pessoa que praticou o crime.
Proíbe-se, em suma, que a pena recaia sobre uma pessoa diferente da que praticou o facto que lhe serve de fundamento.
Não colhe o princípio da pessoalidade e intransmissibilidade do crime consagrado pelos artigos 65.º n.º 1 da CRA e 113.º do CP, pois a censura penal em causa incidiu sobre o Recorrente e os demais intervenientes no processo que de acordo com o Tribunal a quo tem conhecimento dos factos.
Atendendo às alegações, o Recorrente foi peremptório em reconhecer que do montante global beneficiou de Kz. 400 000 (quatrocentos mil kwanzas) e, por isso, não está alheio aos factos.
Por isso, entende este Tribunal que não houve violação ao princípio da pessoalidade e intransmissibilidade do crime consagrado pelo artigo 65.º n.º 1 da CRA.
Por fim, o Recorrente alega a inobservância ao princípio da igualdade pois a participação do Senhor Nelito Gina na suposta fraude foi igual à sua, no entanto, foi condenado e o outro foi absolvido.
Da leitura feita verifica-se que o Recorrente intermediou o negócio e o Senhor Nelito Gina foi indicado pelo próprio lesado para o representar neste acto, uma vez que o mesmo é seu familiar e, por esta razão participou no negócio a seu pedido, cfr. fls. 4 a 6 dos autos.
Ora, o princípio da igualdade é um dos princípios estruturantes dos direitos fundamentais, consagrado no artigo 23.ºda CRA e é entendido enquanto igualdade formal – igualdade jurídica, própria do Estado liberal e igualdade material que prevê que as pessoas sejam iguais mas baseadas em pressupostos bem claros.
Este princípio impõe um tratamento jurídico idêntico a todos os que se encontrem em situação idêntica ou similar.
Consta dos autos que a participação do Recorrente não foi igual à do Réu absolvido. Ambos beneficiaram de uma comissão resultante do negócio celebrado tendo o Réu absolvido se limitado a agir como representante do lesado no negócio e a pedido deste, ao passo que o Recorrente prestou serviço de intermediação do imóvel.
Portanto, os benefícios auferidos por ambos foram diferentes e a participação nos autos foi, igualmente, diferente.
Deste modo, o Tribunal Constitucional entende que não se verificou qualquer violação dos princípios da igualdade, legalidade, da pessoalidade e da intransmissibilidade do crime.
DECIDINDO
Nestes termos
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas, tal como dispõe o artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 03 de Julho de 2019.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dr. Raul Carlos Vasques Araújo (Relator)
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Teresinha Lopes