ACÓRDÃO N.º 565/2019
PROCESSO N.º 668-D/2018
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Castar Marques Castro, melhor identificado nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão de 06 de Fevereiro de 2018, proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 1250/2017, que, revogando parcialmente a sentença proferida pelo Tribunal a quo, condenou o aqui Recorrente na pena única de 10 anos e seis meses de prisão, pela prática dos crimes de roubo qualificado e de uso e porte ilegal de arma de fogo, pp pelo artigo 435.º n.º 1 do Código Penal (CP) e pelas disposições combinadas dos artigos 8.º, 9.º, 123.º e 127.º do Diploma Legislativo n.º 3778, de 22 de Novembro de 1967 e do parágrafo único do artigo 169.º do CP.
Notificado para apresentar alegações de recurso nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), o Recorrente referiu, no essencial, o seguinte:
Termina requerendo que seja reapreciada e revogada a decisão do Tribunal Supremo, por inconstitucionalidade e em consequência, seja o ora Recorrente absolvido.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da LPC, norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para conhecer o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente tendo sido condenado à pena de 10 anos de prisão maior, tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, conforme prevê a alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao estabelecer que têm legitimidade para interpor recurso extraordinário “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é analisar se o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo do n.º 1250/2017, viola o princípio da presunção da inocência consagrado no artigo 67.º da CRA e do in dubio pro reo.
V. APRECIANDO
É submetida à apreciação do Tribunal Constitucional a constitucionalidade do Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que condenou o ora Recorrente na pena única de 10 anos e seis meses de prisão pela prática dos crimes de roubo qualificado e de uso e porte ilegal de arma de fogo.
Este Acórdão revogou parcialmente a sentença proferida pelo Tribunal a quo e condenou o aqui Recorrente na pena única de 10 anos e seis meses de prisão, pela prática dos crimes de roubo qualificado e de uso e porte ilegal de arma de fogo, pp. nos artigos 435.º n.º 1 do CP e pelas disposições combinadas dos artigos 8.º, 9.º, 123.º e 127.º do Diploma Legislativo n.º 3778, de 22 de Novembro de 1967 e do parágrafo único do artigo 169.º do CP.
O Recorrente alega que foi violado o princípio do in dubio pro reo e, consequentemente, o princípio da presunção de inocência, porquanto, o Tribunal Supremo condenou-o, ainda que as provas constantes nos autos tivessem sido consideradas insuficientes, pelo Tribunal a quo, para justificar a condenação do Recorrente.
Assim, importa uma análise atenta ao princípio da presunção da inocência.
Nos termos do que vem consagrado no n.º 2 do artigo 67.º da CRA a propósito do princípio em referência: “Presume-se inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”. Assim, só através da produção de prova inequívoca e infalível é que se pode produzir sentença condenatória contra um arguido.
Ao nível do dever de fundamentação, compete ao juiz demonstrar, por via de elementos “palpáveis”, a solução apresentada na decisão.
Neste sentido, não se pode aceitar que o juiz tome uma decisão sem apresentar o iter criminis, os factos e as questões de direito, quanto mais não seja relativamente ao Direito Penal que lida com aspectos sensíveis do cidadão, a sua dignidade, os seus direitos fundamentais. Para as decisões condenatórias, o dever de fundamentação reside exactamente na prova, devendo o juiz associar a sua decisão à prova produzida durante o processo.
No caso concreto, podemos aferir que, em primeira instância, o Tribunal a quo, ao analisar a prova produzida nos autos, concluiu que a prova não era suficiente e bastante para justificar a condenação do aqui Recorrente.
Importa referir que para o julgador existe um conjunto de factores que podem ser evidenciados para firmar a sua convicção sobre a culpa ou não dos presumíveis autores de determinado crime. São relevados pelo julgador, além da prova produzida em fase de instrução, um sem número de indícios que podem ser apreendidos durante a audiência de julgamento, daí a importância do respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, uma vez que o Tribunal a quo, ao ter contacto não apenas com o processo, mas com as partes, adquire uma percepção que em processos do foro criminal podem ser decisivos para implicar a condenação ou a absolvição do réu.
Isso porque na parte respeitante à prova testemunhal ou às declarações prestadas em audiência de julgamento, a apreciação do Juiz de primeira instância é completamente distinta daquelas que terão outros juízes em instâncias superiores. Aqui opera o princípio da imediação, que garante ao julgador uma proximidade, de contacto directo, em relação aos demais intervenientes no processo, nomeadamente, réus e declarantes.
Este princípio da imediação baseia-se no conhecimento e atenção às reacções humanas, como sejam, o desconforto que se nota após ser colocada uma questão, um silêncio inexplicável, uma inconstância nas respostas às mesmas questões, enfim, todos esses elementos vão ser valorados pelo julgador, e apenas e quando, essa valoração se traduza num juízo de certeza deve ser proferida a sentença condenatória.
Se da prova produzida de acordo com o que foi acima referido, não se consiga extrair um juízo de certeza, seja sobre a existência do crime, ou sobre a identidade dos seus autores, deve prevalecer o princípio informador do processo penal do in dubio pro reo e não pode haver condenação. Nestas situações, o princípio funciona como garantia contra arbitrariedades que podem ocorrer durante o julgamento, ao mesmo tempo que se apresenta como limite ao poder de decisão do juiz, na medida em que se ele quiser condenar, tem de apresentar provas suficientes, e objectivamente detectáveis, caso contrário, não poderá condenar, não restando outro caminho senão a absolvição.
Este princípio, do in dubio pro reo, não é mais do que uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos, ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
O princípio in dubio pro reo é válido para situações de dúvidas insanáveis sobre a verificação ou não de factos, objectivos ou subjectivos, relevantes, quer para a determinação da responsabilidade do arguido, quer para a graduação da sua culpa, sendo que no caso concreto, o Tribunal a quo entendeu que a prova produzida em fase de instrução, bem como as declarações dos ofendidos em audiência de julgamento, não eram suficientes para afirmar que o aqui Recorrente havia participado do assalto de que os mesmos foram vítimas.
Diante dessa dúvida, o Tribunal a quo optou por decidir em favor do Recorrente, garantindo deste modo o respeito por esse princípio constitucional, socorrendo-se da velha máxima de que “é melhor absolver um culpado do que condenar um inocente”.
É certo que impende sobre o Tribunal Supremo, tal como sobre o Tribunal a quo, o princípio da livre apreciação da prova, no entanto esse poder ou liberdade que o julgador tem para formar a sua convicção não é uma liberdade absoluta, pois que ela comporta algumas limitações, maxime, o dever de motivação e de fundamentação das decisões judiciais.
Esse poder, não pode significar para o Tribunal ad quem tem a liberdade para substituir a prova (e, por conseguinte, a crítica valoração dela, por parte do Tribunal a quo) por meras conjecturas ou, por mais honesta que seja, a sua opinião.
No entanto, salvo melhor entendimento, é exactamente isso que resulta do Acórdão recorrido, um extrapolar desse poder, e isso é notório, conforme o seguinte trecho do referido Aresto: “estes argumentos (os que serviram de justificação para a absolvição do Recorrente em primeira instância) não são sólidos, já que todos eles são conhecidos entre si, estando provado que se dedicavam a assaltos à mão armada como fizeram com o casal…”.
Ora, o facto de os réus serem conhecidos, entre si, não pode de forma nenhuma ser critério para determinar a culpabilidade dos mesmos, ou por outro lado, ainda que o aqui Recorrente se dedicasse efectivamente “a assaltos à mão armada”, não existem nos autos elementos suficientes susceptíveis de garantir que o mesmo participou do assalto ocorrido no dia 03 de Outubro de 2016, pelo que na dúvida, afigura-se necessário recorrer à aplicabilidade do princípio in dubio pro reo.
Nestes termos, conclui este Tribunal que efectivamente se verificou, da parte do Tribunal ad quem, um uso excessivo do princípio da livre apreciação da prova, extrapolando para um juízo baseado em presunções e opiniões pessoais, o que resultou numa clara violação do princípio do in dubio pro reo, enquanto corolário do princípio da presunção de inocência.
Assim, o Acórdão recorrido violou o princípio da presunção de inocência consagrado no n.º 2 do artigo 67.º da CRA.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho, LPC Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 31 de Julho de 2019.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente–Relatora)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Teresinha Lopes