ACÓRDÃO N.º 566/2019
PROCESSO N.º 698-B/2019
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Bricomil – Construção Civil e Obras Públicas, SA, melhor identificada nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido aos 21 de Setembro de 2017, no Processo n.º 2328/2016, pela 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, que julgou procedente a excepção dilatória da falta de patrocínio judiciário e, em consequência, absolveu os recorridos daquela instância.
A Recorrente intentou e fez seguir uma Acção Declarativa de Condenação contra Cetvias – Construção, Estradas e Vias, SA, Albase – Sociedade de Engenharia, Lda e Armando Silva Pinto Cunha, que correu termos na Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial do Zaire, com o Processo número 2038-B/2015, em que requeria a condenação daqueles à restituição de um estaleiro com todos os bens móveis e imóveis que o integram e a pagarem uma indemnização pela ocupação abusiva e ilícita do referido estaleiro e os encargos processuais a que deram causa.
O Tribunal Provincial do Zaire proferiu Saneador Sentença em que julgou integralmente improcedentes os pedidos formulados pela então Autora, com o fundamento de a Autora não ser a proprietária do prédio rústico onde se encontra instalado o estaleiro e por se verificar a excepção da litispendência, ao mesmo tempo que concedeu um prazo de 10 (dez) dias à Autora para juntar aos autos procuração forense outorgada por quem vincule a sociedade.
Não se conformando, a Requerente interpôs recurso para o Tribunal Supremo dessa decisão para requerer a sua revogação, com o fundamento de que (i) o tribunal a quo não tinha analisado nem decidido todas as questões levantadas nos autos, (ii) as partes eram legítimas e (iii) não existia a excepção da litispendência.
Por sua vez, o Tribunal Supremo proferiu o Acórdão datado de 21 de Setembro de 2017, em que, considerando estar em causa uma acção em que a constituição de advogado é obrigatória, tendo sido a questão levantada em contestação e não tendo sido suprida pela Autora, então Recorrente, apesar de o Meritíssimo Juiz a quo lhe ter concedido um prazo para o efeito, julgou procedente a excepção dilatória de falta de patrocínio judiciário e, em consequência, absolveu os Recorridos da instância.
A Recorrente, ainda inconformada, interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, alegando que competia ao Tribunal Supremo apreciar da bondade da decisão tomada em primeira instância, uma vez que esta não se debruçou sobre a matéria de facto, antes limitando-se a analisar as excepções invocadas pelos Réus para, a final, julgar improcedente o pedido.
Defende a Recorrente que, nos presentes autos, nunca houve falta de patrocínio judiciário, já que foi sempre representada por advogados, tal como dispõe o artigo 32.º do Código de Processo Civil (CPC) e que existe até uma procuração outorgada a favor do mandatário judicial para esse fim. Considera que o Tribunal Supremo confundiu o patrocínio judiciário com o mandato judicial, que tem a ver não com quem intervém processualmente, praticando os actos de responsabilidade da parte (patrocínio judiciário), mas com os poderes tidos por quem intervém processualmente em nome e interesse da parte (mandato judicial). Fez notar que a lei processual estatui autonomamente as consequências da falta de um e de outro, nos artigos 33.º e 40.º da CPC. De qualquer forma defende que sempre existiram nos autos, uma vez que a Recorrente outorgou procuração forense que foi junta aos autos da providência cautelar que deveriam correr apensos ao presente processo.
Considera, ainda, constituir uma falácia a alegação segundo a qual a procuração forense em causa não foi outorgada por quem tinha poderes para vincular a sociedade, uma vez que o Senhor Alberto Carlos Gomes é administrador da Recorrente e, nos termos da doutrina que defende, tinha e tem poderes básicos de gestão e representação, não sendo a acção em causa o meio processual idóneo para se pôr em causa esses seus poderes de gestão da Recorrente.
Realça, também, que o Tribunal Supremo, em sede do recurso da decisão final proferida nos autos do procedimento cautelar, referiu em Acórdão que “nada obsta a que Alberto Carlos Gomes, na qualidade de coordenador da comissão de gestão, representa a sociedade em questão…”
Concluiu as suas alegações, defendendo, em síntese, que o douto Acórdão recorrido:
Requer, então, a declaração de inconstitucionalidade do Acórdão em causa, por denegação de justiça e violação dos direitos fundamentais referidos.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar, para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos das disposições combinadas da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC) e da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional LPC). Consequentemente, este Tribunal é competente para apreciar o recurso.
III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (LPC), têm legitimidade para interpor recurso ordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.
A Recorrente foi a apelante no Proc. n.º 2328/2016, correu termos na 1ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, tendo, por essa razão, legitimidade para interpor o presente recurso.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso é apreciar se a decisão de julgar procedente a excepção dilatória da falta de patrocínio judiciário e, em consequência, absolver os então recorridos da instância, contida no Acórdão proferido pelo Tribunal Supremo, em 21 de Setembro de 2017, viola o direito fundamental de acesso à justiça, o direito à tutela jurisdicional efectiva, o direito fundamental do respeito à dignidade humana, bem como o direito fundamental à igualdade (artigo 43.º da CRA), e de outras normas e princípios constitucionais previstos nos artigos 2.º (Estado democrático de direito), 6.º n.º 2, 175.º, 177.º e 226.º (Legalidade), todos da CRA, ou qualquer outra disposição constitucional.
V. APRECIAÇÃO
Recebidos os autos neste Tribunal, verificou-se que não continham a procuração forense que legitimava o exercício do patrocínio judiciário pelo mandatário da ora Recorrente. Notificada para juntar procuração, a Recorrente solicitou aclaração, uma vez que existia já uma procuração outorgada aos 10 de Março de 2015 junta ao procedimento cautelar, de que juntou cópia, que julga ser bastante para a sua representação no processo principal e todos os seus incidentes.
Sobre esta questão a Recorrente não podia ignorar que os autos do procedimento cautelar já não corriam apensos ao processo principal, por terem instruído um outro recurso dirigido ao Tribunal Supremo, o da sentença proferida nesses mesmos autos.
Compulsada a cópia da procuração outorgada a 10 de Março de 2015, compreende-se as razões que levaram os tribunais de primeira e segunda instância a considerá-la irregular. A Procuração é assinada pelo Coordenador da Comissão de Gestão da Recorrente. Ora, sendo uma sociedade anónima, ainda que detida pelo Estado e empresas públicas e de capital público, aplica-se-lhe o disposto na alínea a) do n.º 1, do artigo 425.º da Lei n.º 1/04, de 13 de Fevereiro, Lei das Sociedades Comerciais (LSC), pelo que deverá ser representada pelo Conselho de Administração. No caso concreto, da certidão de matrícula, datada de 21 de Abril de 2015, junta a fls. 48 e seguintes, resulta claro que a Recorrente se vincula pela assinatura de (i) três membros do Conselho de Administração, incluindo a do presidente ou de quem o substitua, (ii) qualquer administrador no âmbito dos poderes executivos inerentes às funções específicas, ou que lhe tenham sido expressamente delegados pelo Conselho de Administração nos termos dos estatutos e (iii) por mandatários ou procuradores legalmente constituídos pelo Conselho de Administração para a prática dos actos em causa.
A tese defendida pela Recorrente, no requerimento de interposição do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, segundo o qual o subscritor da Procuração é também administrador e, por essa razão, tem poderes de representação da sociedade, não é acolhível, já que, como dispõe o artigo 427.º da LSC invocado para sustentar essa mesma tese, os poderes do Conselho de Administração são exercidos em conjunto pelos administradores, de acordo com o estabelecido no contrato de sociedade.
Ora a Recorrente não junta prova bastante de que o subscritor é administrador e de que tinha mandato para outorgar a procuração. A alegada nomeação, ocorrida em reunião da Assembleia Geral de 27 de Janeiro de 1999, constante da acta cuja cópia junta ao requerimento, não é acompanhada de prova do respectivo registo comercial. Da certidão de matrícula e de todos os registos respeitantes à Recorrente, emitida pela Conservatória de Registo Comercial, a 21 de Abril de 2015, nada consta sobre o registo dessa nomeação. Não tendo sido sujeita a registo, esta nomeação é, nos termos do artigo 169.º da LSC, ineficaz perante terceiros. A nomeação de administradores e representantes da sociedade é um facto sujeito a registo comercial, nos termos do Decreto-Lei n.º 42 644, de 14 de Novembro de 1959 – do Registo Comercial.
Assim sendo, a procuração junta aos autos é ineficaz, o que equivale a falta de mandato.
Quando tal acontece, deve o juiz, nos termos do n.º 2 do artigo 40.º do CPC, fixar um prazo dentro do qual deve ser suprida a falta ou corrigido o vício e ratificado o processado, sob pena ficar “sem efeito tudo o que tiver sido praticado pelo mandatário, devendo este ser condenado nas custas respectivas e indemnização dos prejuízos a que tenha dado causa”. Não se trata pois de uma faculdade do juiz mas sim de um dever.
Como refere o Professor Alberto dos Reis, in Código do Processo Civil Anotado, 3.ª edição, 1.º volume, pag. 135: “Quer dizer, chegado à altura do despacho saneador, o magistrado cuidadoso e atento deve verificar se as partes são capazes e legítimas, se, sendo incapazes, estão devidamente representadas, se os advogados ou solicitadores que em nome delas intervêm estão munidos de mandato regular e suficiente. Quando apure que o advogado não tem mandato ou que este é insuficiente ou irregular, antes de proferir o despacho (saneador) deve marcar prazo para o suprimento da falta ou do vício; se o suprimento não for feito dentro do prazo, aplica-se então, no despacho saneador, o n.º 5 do 293.º (correspondente, no nosso CPC, a alínea e) do artigo 288.º), isto é, absolve o réu da instância, caso a falta ou vício diga respeito ao mandatário que actuou em nome do autor.”
O professor Alberto dos Reis vai ainda mais longe ao admitir a possibilidade de, mesmo depois de proferida a sentença, ser possível o juiz, ao aperceber-se da falta, insuficiência ou irregularidade do mandato, fixar prazo para que o vício seja suprido, pois entende que o princípio do esgotamento do poder jurisdicional do juiz apenas se aplica à matéria da causa e não às faltas e vícios do processo, posto que estes podem ser sanados ou corrigidos a todo tempo.
O tribunal de primeira instância teria andado melhor se tivesse proferido o despacho que ordena a Recorrente, então Autora, a juntar aos autos procuração forense outorgada por quem tinha poderes de vinculação da sociedade, antes de proferir o saneador-sentença. Entretanto, uma vez proferido este despacho, ficou a Recorrente com a obrigação de sanar o vício, uma vez que, como refere o artigo 40.º do CPC, poderia ser suscitado oficiosamente pelo tribunal em qualquer altura.
Já em sede do julgamento do recurso ordinário, o Tribunal Supremo verificou que a irregularidade não tinha sido suprida, apesar de ter sido suscitada e de a Recorrente ter sido notificada para suprir o vício. Contudo, não o fez quando teve oportunidade para o fazer, mantendo-se assim a irregularidade do mandato, que, por sua vez, constituía causa de nulidade de todos os actos praticados pelo mandatário, nos termos previstos pelo n.º 2 do artigo 40.º do CPC.
A irregularidade do mandato judicial por parte do mandatário que propôs a acção constitui uma excepção dilatória, quando não é devidamente sanada, conforme dispõe alínea e) do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 494.º do CPC. As excepções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância, segundo o disposto no n.º 2 do artigo 493.º do CPC.
O Acórdão recorrido só é passível de reparo na parte que diz respeito ao fundamento da decisão. Não há falta do patrocínio judiciário e de mandato. O mandato, junto aos autos da providência cautelar, é irregular, pelas razões já expendidas.
Por fim, importa também esclarecer que não procede a alegação da Recorrente de que a decisão recorrida violou o princípio da dignidade da pessoa humana, porquanto este princípio é, pela sua natureza, exclusivo do ser humano individualmente considerado.
Assim sendo, este Tribunal entende que a razão de o mérito da questão não ter sido conhecido com a decisão recorrida é imputável à Recorrente, já que poderia e deveria ter sanado a irregularidade processual verificada, mas não o fez. Por essa razão não se verifica, no caso concreto, qualquer violação do direito a um julgamento justo (artigo 72.º da CRA) e do princípio da legalidade (n.º 2 do artigo 6.º da CRA), uma vez que o Tribunal Supremo julgou em conformidade com as disposições legais cabíveis.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Custas pela Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (LPC).
Notifique.
Plenário do Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 31 de Julho de 2019.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Teresinha Lopes (Relatora)