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ACÓRDÃO N.º 567/2019

 

PROCESSO N.º 699-C/2019

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Yuri Bakharev, melhor identificado nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido a 6 de Setembro de 2018, no Processo n.º156/18, pela Câmara de Trabalho do Tribunal Supremo, que indeferiu o seu requerimento e manteve a decisão recorrida, por, alegadamente, não ter pago a multa no prazo legal.

O Recorrente - que trabalhou na Recorrida de 2002 a 2011 - intentou e fez seguir um recurso, em matéria disciplinar, contra a Alrosa Company, SA – Sucursal em Angola, que correu termos na Segunda Secção da Sala de Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda, com o número 1203/12-H, em que requeria a declaração da nulidade do procedimento disciplinar e da medida disciplinar que lhe foi aplicada (despedimento), com todas as consequências legais.

Em dado momento da lide, em primeira instância, o Recorrente interveio por si só, ao que o Tribunal respondeu que, tendo constituído mandatário forense nos autos, teria de revogar o mandato sob pena de os actos praticados não produzirem efeitos, pelo que indeferiu e mandou desentranhar o requerimento em causa e os documentos que o acompanhavam. Não obstante essa instrução, o Requerente voltou a requerer, sem a intervenção do mandatário, a junção de um documento, no caso o Código de Trabalho da Federação Russa.

Notificado o mandatário forense para se pronunciar sobre esses factos, este requereu a ratificação e homologação dos actos praticados pelo então Requerente, ora Recorrente, sem necessidade do seu desentranhamento, e para o caso de esse não ser o entendimento do Tribunal, voltou a juntar os documentos, para além de requerer o prosseguimento dos autos.

O Tribunal da causa indeferiu esse requerimento e condenou o Requerente em multa, pelo incidente, no valor de 1 500 UCF, ao abrigo do artigo 140.º do Código das Custas Judiciais (CCJ). O Requerente foi notificado desse Despacho aos 16 de Março de 2017 e, por não se conformar com o teor do mesmo, apresentou reclamação aos 22 de Março de 2017, acompanhado de um outro requerimento solicitando a emissão de guias para pagamento de multa por apresentação no dia seguinte ao último dia do prazo, nos termos permitidos pelo n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ao processo laboral por força do artigo 59.º n.º 1 do Decreto Executivo Conjunto n.º 3/82, de 11 de Janeiro.

No entanto, o funcionário do Cartório do Tribunal, por lapso ou desconhecimento do procedimento, ao invés de emitir imediatamente as guias para pagamento, abriu conclusão ao Meritíssimo Juiz da causa que, de seguida, chamou a atenção desse mesmo Cartório para o facto de as guias em causa deverem ser emitidas sem necessidade de despacho.

Assim, as guias apenas foram emitidas a 11 de Abril de 2017 e notificadas ao Recorrente a 18 de Abril de 2017, que, por sua vez, devolveu o duplicado da guia no dia 21 de Abril, com a franquia do Banco de Poupança e Crédito a indicar que terá sido paga aos 17 de Abril de 2017. Contudo, o Recorrente nunca alegou ter feito o pagamento nesse dia, pelo que a franquia aposta pelo Banco estará eivada de um erro de calendário.

Considerando apenas a data da entrega do comprovativo do pagamento da multa no Cartório do Tribunal, o Meritíssimo Juiz da causa considerou que terá sido 31 (trinta e um) dias após a prática tardia do acto da reclamação, pelo que indeferiu a reclamação, por extemporaneidade.

Desse Despacho, com o qual o Requerente também não se conformou, interpôs recurso de agravo, requerendo ao Tribunal Supremo a revogação ou reparação do Despacho em causa, uma vez que considera que o pagamento da multa foi feito no prazo legal, que é de 5 (cinco) dias a contar da notificação da guia, uma vez que esta não indicava prazo diferente, pelo que deveriam seguir-se as regras gerais, nomeadamente as normas do artigo 292.º do Código de Processo Civil, CPC, e do n.º 5 do artigo 145.º do mesmo diploma, conformando-as com os princípios consagrados nos artigos 29.º e 72.º da CRA.

Por sua vez, o Tribunal Supremo, no seu douto Acórdão agora posto em causa, considera que não ficou provado que o Agravante, ora Recorrente, tivesse diligenciado no sentido de pagar imediatamente a multa no dia seguinte ao término do prazo para a prática do acto, pelo que considerou que o Tribunal de primeira instância decidiu bem, mantendo assim a decisão recorrida.

Uma vez mais o Recorrente não se conformou e interpôs o presente recurso extraordinário de Inconstitucionalidade, em que alega, em síntese, que o Acórdão é inconstitucional por (i) denegar justiça por razões ou insuficiência económica, quando os trabalhadores até estão isentos de custas, preparos, despesas e encargos processuais, (ii) reiterando a sua tese de que o pagamento da multa foi feito no prazo estipulado por lei, e que só não o fez imediatamente no dia da entrega do requerimento por motivo que não lhe é imputável, uma vez que o Cartório recebeu o requerimento e, ao invés de emitir a guia, abriu conclusão. Por essas razões requer a declaração de inconstitucionalidade do Acórdão recorrido por violação dos princípios do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, por denegação da justiça, por insuficiência económica e por violação do princípio da legalidade.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar, para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos das disposições combinadas da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC) e da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), pelo que este Tribunal é competente para conhecer o recurso.

III. LEGITIMIDADE

Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (LPC), têm legitimidade para interpor recurso ordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.

O Recorrente foi agravante no processo que, com o n.º 156/18, correu termos na Câmara de Trabalho do Tribunal Supremo, tendo, por essa razão, legitimidade para interpor o presente recurso.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso é apreciar se a decisão de julgar improcedente o agravo e manter a decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância, contida no Acórdão proferido a 6 de Setembro de 2018, no Proc. n.º 156/18, pela Câmara de Trabalho do Tribunal Supremo, consubstancia denegação de justiça, por insuficiência económica, e viola o direito fundamental de acesso à justiça, o direito à tutela jurisdicional efectiva e o principio da legalidade, previstos nos artigos 6.º n.º 2, 29.º n.º 1, 174.º e 175.º, todos da CRA, ou qualquer outra disposição constitucional.

V. APRECIAÇÃO

O Recorrente alega que lhe foi denegada justiça por insuficiência de meios económicos, mas, dos elementos contidos nos autos, facilmente se verifica que o Recorrente não pagou a multa no dia seguinte ao esgotamento do prazo porque o Cartório não lhe passou a necessária guia para o pagamento logo que requereu o pagamento da multa, nos termos do n.º 5 do artigo 145.º do CPC. Para o Tribunal Supremo esta questão está clara.

Entretanto, uma vez notificado das guias para pagamento da multa, não tratou de a pagar imediatamente. Entendeu que, nessa altura, tinha já um prazo de 5 (cinco) dias para o fazer, mas que, de qualquer forma, a falta de pagamento não poderia prejudicar o direito a acção e a tutela jurisdicional efectiva, conforme jurisprudência firmada por este Tribunal com o Acórdão n.º 393/2016. Defende também o ora Recorrente que o trabalhador está isento de custas e encargos processuais, pelo que a aplicação da multa em questão configura um acto ilegal e inconstitucional.

As multas a que as partes se sujeitam por força da sua acção/omissão não são qualificáveis como encargos do processo. Nos termos do n.º 1 do artigo 26.º da Lei n.º 22-B/92, de 9 de Setembro – que extingue os Órgãos de Justiça Laboral, os trabalhadores e seus familiares são isentos de pagamentos de custas e selos, o que por si só não determina a isenção de multas. O trabalhador está sujeito a multas nos termos da lei do processo, uma vez que os incidentes supérfluos a que dê lugar não caem no âmbito da responsabilidade pelas custas. Tanto assim é que, no caso concreto, tratou de requerer a emissão de guias para o seu pagamento. E não tendo sido emitidas imediatamente, procedeu ao seu pagamento no prazo de 5 (cinco) dias.

No entanto, tudo indica que a responsabilidade deste atraso é do Cartório do Tribunal que, ao invés de emitir imediatamente as guias para pagamento, abriu conclusão ao Juiz da causa. Dessa falha foi advertido pelo Meritíssimo Juiz, quando, em Despacho a fls. 159, chamou a atenção do Cartório para o facto de as guias em causa deverem ser emitidas no mesmo dia sem precedência de despacho. Este seria o procedimento conforme ao estatuído pelos artigos 177.º e seguinte do CCJ. Mais ainda: nos termos do § 2.º desta disposição legal, porque se tratava de um procedimento urgente, e caso já não fosse possível fazer o depósito da multa nesse mesmo dia, por eventualmente estarem fora do horário de atendimento do Banco indicado, as guias para depósito deveriam ter sido passadas no dia seguinte, ficando a importância da multa em poder do escrivão, que disso lavraria termo no processo para por ele ser depositada dentro de 24 horas seguintes.

Entende este Tribunal que a inobservância destas disposições legais por parte do Cartório foi o facto determinante para o não pagamento imediato da multa por apresentação do requerimento no primeiro dia útil seguinte ao do termo do prazo. Não tendo o Cartório do tribunal de primeira instância procedido em conformidade com as disposições legais aplicáveis, e tendo notificado o Requerente das guias para pagamento 27 (vinte e sete) dias depois da entrada do requerimento, indicando na guia que deveria “…efectuar o pagamento dentro do prazo legal”, o entendimento exigível aos operadores judiciários não pode ser outro se não o de que o prazo em causa é o estipulado no artigo 182.º do CCJ, isto é 5 (cinco) dias após o recebimento da guia, sendo que o duplicado da guia e o talão do depósito com o recibo teriam de ser entregues no Cartório dentro das 48 (quarenta e oito) horas após o pagamento, prazo que também foi cumprido.

Este entendimento é também o mais conforme com o princípio do favor laboratoris ou do “tratamento mais favorável ao trabalhador”, que é sempre necessário ter em conta em processo laboral e que deveria ter sido aplicado ao presente caso já em primeira instância, o que impediria que o processo estivesse suspenso por mais de 2 (dois) anos, com claro prejuízo para o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva.

Chegados a este ponto, o Tribunal volta a estar diante de um caso em que o fundo da questão da Reclamação do Recorrente de fls. 154 não chegou a ser analisado pelos tribunais devido a uma questão meramente adjectiva que, por sua vez, configura um atropelo à legislação aplicável, uma situação em que a aplicação de normas processuais igualmente aplicáveis às partes, na perspectiva dos julgadores, contende com o acesso à justiça e à tutela jurisdicional efectiva, tal como previstos no artigo 29.º da CRA. Mas neste caso concreto, o conflito é apenas aparente, já que o Recorrente conformou a sua acção às regras aplicáveis ao processo.

Assim sendo, temos presente que o Recorrente teve garantido o acesso à justiça, mas não viu assegurada o princípio da legalidade nem a tutela jurisdicional efectiva. Interpôs e fez seguir um processo e teve sempre assegurada a possibilidade de reclamar e recorrer das decisões jurisdicionais. Entretanto a mais alta instância da jurisdição comum considerou improcedente o seu recurso de agravo e manteve a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, que indeferiu a sua reclamação contra a aplicação da multa de 1500 UCF por extemporaneidade, apesar de ter sido apresentada no dia seguinte ao termo do prazo e de imediatamente se ter prestado a pagar a multa, nos termos do n.º 5 do artigo 145.º do CPC. Andou mal o Tribunal Supremo ao decidir como decidiu, tal como tinha decidido mal o tribunal de primeira instância, uma vez que as disposições legais aplicáveis impõem um entendimento diferente. O Recorrente só não pagou imediatamente a multa por não lhe terem sido passadas as guias para pagamento. E andou bem o Recorrente quando, à cautela, apresentou, com a Reclamação de fls. 154, o requerimento para a emissão de guias para pagamento da multa para assegurar vitalidade à Reclamação, pois de outra forma seria difícil fazer prova de que se prestou a pagar imediatamente a multa, e que só não o fez porque não lhe foram passadas as necessárias guias para pagamento. A sua Reclamação de fls. 154 deve ser recebida e decidida pelo tribunal de primeira instância.

Por essa razão entende o Tribunal Constitucional que há fundamentos que justifiquem a violação dos princípios da legalidade (artigo 29.º da CRA), da tutela jurisdicional efectiva (artigo 29.º da CRA) e do julgamento justo e conforme (artigo 72.º).

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da LPC.

Notifique.

 

Plenário do Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 31 de Julho de 2019.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente – declarou-se impedida)

Dr. Américo Maria de Morais Garcia

Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa

Dr. Carlos Magalhães

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto 

Dra. Teresinha Lopes (Relatora)