ACÓRDÃO N.º 570/2019
PROCESSO N.º 681-A/2018
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em do nome Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Samuel João Massuia, melhor identificado nos autos, vem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 1256/17, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), por depreender que viola os artigos 57.º, 60.º, 63.º, 65.º e 67.º da Constituição da República de Angola (CRA).
O Recorrente apresentou, em síntese, as seguintes alegações:
Nestes termos, vem requerer que seja declarado inconstitucional o Acórdão recorrido por violar os artigos 57.º, 60.º, 63.º, 65.º e 67.º da CRA.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC) e da alínea a) do artigo 49.º da LPC.
Estabelece também o artigo 53.º da Lei de Processo Constitucional (LPC) que a “competência para decidir os recursos extraordinários de inconstitucionalidade previsto no artigo 49.º da presente lei é do Plenário de Juízes do Tribunal Constitucional”.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente tem legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual “... podem interpôr recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional ... as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO DO RECURSO
Constitui objecto do presente recurso a apreciação da constitucionalidade do Acórdão do Tribunal Supremo, que confirmou a decisão recorrida do recurso interposto pelo Recorrente no âmbito do Processo n.º 1256/17.
V. APRECIANDO
Não conformado com a decisão do Tribunal ad quem que confirmou a decisão do Tribunal a quo, veio a este Tribunal, por considerar que a mesma desrespeita os preceitos dos artigos 57.º, 60.º, 65.º e 67.º da CRA, que passamos analisar:
Artigo 57.º da CRA ( Restrição de Direitos, Liberdades e Garantias)
O princípio da inviolabilidade dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos tem como consequências três aspectos essenciais: matérias relativas a direitos, liberdades e garantias que apenas podem ser objecto de restrição ou de limitação nos casos expressamente previstos na Constituição.
A intervenção restritiva mesmo que constitucionalmente autorizada, apenas será legitimada se justificada pela salvaguarda de outro direito fundamental ou de outro interesse constitucionalmente protegido, devendo subordinar-se às exigências do princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso que se desdobra em três corolários: o da adequação, da necessidade e o da proporcionalidade.
O Recorrente encontrava-se indiciado por um crime cuja pena de prisão maior é superior a 8 anos. Atendendo a gravidade do crime, seus antecedentes e complexidade, a medida de coacção, aplicada na altura, foi proporcional, necessária e adequada, por a prisão ter sido legal, nos termos do art. 8.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, validada e mantida, nos termos dos artigos 16.º al. g) e 36.º n.º 1 da lei acima citada (vide fls.208 - 211/verso dos autos).
A inobservância da apresentação do Recorrente para audição, no prazo que estipula o n.º 1 do art.º 12.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP), constitui uma irregularidade penal, que foi prontamente sanada ( vide fls. 208, dos autos).
Não há qualquer desrespeito a este princípio.
Artigo 60.º (Proibição de Tortura e de Tratamentos Degradantes)
A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, determina no seu artigo 5.º que “Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.” A Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos vai na mesma orientação ao dizer que “Todo o individuo tem direito ao respeito da dignidade inerente à pessoa humana e ao reconhecimento da sua personalidade jurídica. Todas as formas de exploração e de aviltamento do homem, nomeadamente a escravatura, o tráfico de pessoas, a tortura física ou moral e as penas ou os tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes são interditas (artigo 5.º)
A Lei Constitucional de 1992 consagrou, no seu artigo 23.º, a proibição da tortura e de outros tratamentos degradantes ou punições cruéis, mantendo a mesma redação a CRA, nos seus artigos 23.º e 70.º.
Nos autos, verifica-se a confissão rubricada pelo Recorrente, que admite ter concertado com outros có-reus o assalto (vide fls. 222 e 223), alterando, posteriormente o seu depoimento, declarando ter sido torturado e coagido pelos investigadores. Todavia, não conseguiu provar. O que se traduz em declarações não consistentes.
Não há qualquer desrespeito a este preceito constitucional.
Artigo 63.º alíneas a) e b) da CRA - (Direitos dos Detidos e Presos)
Este preceito constitucional obriga a apresentação de um mandado de prisão ou de detenção, salvo em caso de flagrante delito. Entende-se como flagrante delito, todo o facto punível que se está a cometer ou que se acabou de cometer.
A polícia ou outra entidade que não seja da magistratura, apenas pode decretar a prisão em caso de flagrante delito ou quando possua um mandado emitido pela autoridade competente.
A pessoa detida ou presa tem o direito a ser informada para que local está a ser conduzida e de prestar essa informação à sua família e ao seu advogado, devendo a autoridade policial criar as condições necessárias para o exercício destes direitos bem como a sua condução perante o Magistrado competente para confirmação ou não da prisão.
Nos autos constata-se, que desde a captura dos outros có-reus, em Fevereiro de 2015, que revelaram a participação do Recorrente, na altura prófugo, pendendo contra sí um mandado de captura, emitido no dia 3 de Fevereiro de 2015, vide fls. 210;
O Recorrente foi capturado um ano depois, no dia 06 de Outubro de 2016, acusado, notificado e, apresentado em juízo no dia 31 de Janeiro de 2017, dentro dos prazos legais (fls. 234 a 238).
Não é verdade, como alega o Recorrente, ter sido ouvido apenas uma vez, porquanto constam do processo a realização de várias diligências, bem como interrogatórios (vide fls. 208, 222 e 227, nos dias 08 e 11 de Outubro de 2016 e concluso o Relatório final, no dia 25/11/16) sempre assistido pelo seu representante legal, conforme procuração forense, datada de 14 de Outubro de 2016, nos autos.
Não há qualquer desrespeito deste preceito constitucional.
Artigo 65.º n.º 6 da CRA - (Aplicação da Lei Criminal )
Cesare Beccaria, definiu o princípio da legalidade criminal e a sua importância histórica, no seu Dei Delitti e delle Pene, em 1764, afirmando que “[a]s leis são as condições sob as quais homens independentes e isolados se uniram em sociedade, cansados de viver em um contínuo estado de guerra e de gozar uma liberdade tornada inútil pela incerteza de ser conservada”, “somente as leis podem fixar as penas correspondentes aos delitos; e este poder só ao legislador pode pertencer, ele que representa toda a sociedade unida por um contrato social…”.
Era o enunciado do célebre brocardo “Nulla poena sine lege”, mais tarde sistematizado por Feuerbach, actualmente com uma formulação típica de um Estado democrático de direito, acolhido de várias dimensões: “nullum crimen, nulla poena sine lege penali, praevia, stricta et scripta”.
Um grande triunfo para a dignidade da pessoa humana, ao garantir que até os potenciais criminosos têm o direito de ser tratados como pessoas, longe de qualquer aleatoriedade, simplesmente porque os direitos, liberdades e garantias não podem ficar sujeitos a soluções exclusivamente pessoais.
O Recorrente alega que contra sí recaíram dois procedimentos criminais em simultâneo. Não é verdade, tanto que o objecto do recurso a apreciar neste Tribunal, não é o processo em que foram julgados e condenados os outros có-réus. O Recorrente encontrava-se na altura foragido, não estando acusado nem pronunciado, não podia ser julgado e condenado à revelia, pressupostos indispensáveis de um processo com caracteristicas especiais, nos termos do artigo 562.º e seguintes do CPP.
Para a descoberta da verdade, decidiu o juiz da causa ouvir os investigadores e os outros có-reus já condenados, como declarantes, que reafirmaram o envolvimento do Recorrente no crime de que é acusado, apesar de constar dos autos as declarações feitas e assinadas por si, em observância ao constante nos artigos 216.º, § 2.º e 431.º, § 1.º do CPP.
Em relação ao direito de recorrer, o Recorrente exerceu-o plenamente, tanto que, não conformado com a condenação proferida pelo Tribunal a quo, recorreu da decisão para o Tribunal ad quem e continua a recorrer, hoje, para o Tribunal Constitucional.
Não há qualquer desrespeito deste preceito constitucional.
Artigo 67.º n.º 5 (Garantias do Processo Criminal)
O direito a patrocinio judiciário é aplicável directamente no ordenamento jurídico, como direito análogo a direitos, de liberdades e garantias, sendo da competência da lei definir o seu modo de exercício e suas formas.
O sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a promover que ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos, não deixando, pórem, de ser um sistema com componente de índole pública, atendendo, que os encargos com o mesmo são suportados pelo Estado, compreendendo que o regime não seja ao da escolha completamente livre, nos termos, do advogado constituído.
A Constituição da República de Angola adotou o preceito da Declaração Universal dos Direitos do Homem- DUDH, que estabelece que a todos deve ser assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e que a justiça não pode ser denegada por insuficiência de meios económicos, nos termos do artigo 67.º n.º 5 conjugado com os artigos 195.º, 196.º e 197.º todos da CRA.
Nos autos, constata-se que o Recorrente sempre esteve acompanhado por um defensor oficioso e, posteriormente, por um defensor constituido.
Pelo exposto, entende o Tribunal Constitucional que o Acórdão recorrido, decidiu em conformidade com a Constituição e a lei.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas (artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional).
Tribunal Constitucional, em Luanda, 1 de Outubro de 2019.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Américo Maria de Morais Garcia
Dr. António Carlos Pinto Caetano de Sousa (Relator)
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite Ferreira
Dr. Raul Carlos Vasques Araújo
Dr. Simão de Sousa Victor