ACÓRDÃO N. º 575/2019
PROCESSO N.º 706-B/2019
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Cabinda Gulf Oil Company, melhor identificada nos autos, veio ao Tribunal Constitucional impetrar o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, do Acórdão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, prolactado a 07 de Julho de 2017.
Admitido o recurso e notificada para apresentar alegações em observância ao disposto no artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), fê-lo, conforme se vê a fls. 361 a 366 dos autos e se resumem no seguinte:
Terminou pedindo o provimento ao presente recurso e por via deste revogar o Acórdão recorrido por estar desconforme com à Constituição, designadamente, por violação do princípio da legalidade, da certeza jurídica, do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, do direito ao julgamento justo e conforme, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º, n.º 1 do artigo 29.º, n.º 1 do artigo 57.º e artigo 72.º todos da CRA.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do artigo 49.° da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, LPC é competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que contrariem princípios, direitos, garantias e liberdades constitucionalmente consagrados, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos. A decisão proferida pelo Tribunal Supremo esgota a cadeia recursória em sede da jurisdição comum.
III. LEGITIMIDADE
A Recorrente é parte vencida no REC. n.º 354/15, que correu seus trâmites na Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, cuja decisão não foi conhecida por falta de objecto, na sequência da acção de acidente de trabalho, proferida pela 2.ª Secção da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda. Tem direito a contradizer, segundo dispõe o n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicado subsidiariamente ao processo constitucional por força do artigo 2.º da LPC.
Tem, pois, legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso é saber se o Acórdão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, proferido no REC. n.º 354/15, datado de 07 de Julho de 2017, incorreu em alguma inconstitucionalidade, violando os mais lídimos direitos fundamentais da Recorrente, a saber: tutela jurisdicional efectiva, princípio da legalidade, certeza jurídica e direito a um julgamento justo e conforme.
V. APRECIANDO
a) Questão Prévia
Em primeira nota, por se achar uma questão preliminar, uma vez que a Recorrente solicita em suas alegações, que esta instância de justiça constitucional aprecie quer a decisão do juiz a quo como a decisão recorrida, impõe sublinhar, com a dogmática constitucional muito bem pontuada pelo Professor Gomes Canotilho em sede de interposição de recurso no Tribunal Constitucional que, “O objecto do recurso não é a decisão do tribunal a quo, sobre o mérito da questão ou do efeito submetido a julgamento, mas apenas o segmento da decisão judicial relativo à questão da inconstitucionalidade” (Canotilho, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição 7.a Edição, p.989). Logo, à análise do Tribunal Constitucional, está reservada tão-somente à observância das normas constitucionais, alegadamente violadas na decisão recorrida.
Na mesma senda reafirma Otto Bachof, que a “A jurisdição constitucional é, como qualquer jurisdição, execução de normas. Os conflitos jurídicos a resolver perante ela são conflitos constitucionais, no sentido de que o caso presente ao tribunal tem de ser decidido segundo as normas da Constituição. (Otto Bachof p. 28 Normas Constitucionais Inconstitucionais?) ”.
b) Sobre o Princípio da Legalidade
O princípio da legalidade é a bússola orientadora do Estado democrático de direito, na medida em que todos os actos devem respeitar, obedecer e fundar-se no estrito e rigoroso cumprimento da lei. É, na verdade, um princípio estruturante do Estado democrático de direito logo, não pode haver quaisquer actos ou procedimentos quer judicial, quer administrativo que contrariem estritamente o respaldado na Constituição e na lei, nos termos do n.º 2 do artigo 6.ºda Constituição.
A Recorrente veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade por entender que a decisão da Câmara de Trabalho do Tribunal Supremo, ao não conhecer do recurso com fundamento de que as conclusões inobservaram o estabelecido no artigo 690.º do CPC, viola o disposto no artigo 6.º da CRA.
As alegações oferecidas comportam 37 páginas e um total de 80 pontos (vide fls173 a 209 dos autos). Por sua vez, o despacho da Juíza Relatora, cuja transcrição se impõe aqui, frisa que dispõe o artigo 690.º n.º 1 e 3 do CPC: “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual concluirá pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, acrescentando em caso de as conclusões faltarem, serem deficientes, obscuras, deve o relator convidar o recorrente a apresenta-las, completa-las, ou sintetiza-las, sob pena de não se conhecer do recurso, na parte afectada…”. Em regra, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o Recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. De igual modo, se devem especificar as normas jurídicas violadas...Por isso as conclusões da motivação do recurso são muito importantes e devem ser concisas, precisas e claras, porque são as questões nelas contidas que serão objecto de decisão. Desta sorte, o Recorrente deve sintetizar as conclusões das alegações, sob pena de não se tomar conhecimento do recurso.
Sobre o despacho acima, veio a Recorrente apresentar alegações com 30 páginas e 11 pontos de conclusões das alegações, portanto, uma redução bastante expressiva, quer do ponto de vista quantitativo, como do ponto de vista material (a fls. 233 a 261 dos autos).
Recebidas estas alegações, a Relatora do Tribunal Supremo, proferiu o mesmo despacho (a fls. 227 dos autos), convidando a Recorrente a aperfeiçoar as suas alegações de fls. 233 a 261. Em face disso, a fls. 279, a Recorrente solicitou que o Tribunal aclarasse se aquelas não seriam bastantes para satisfazer a exigência do Mui Douto Tribunal. Em novo despacho a fls. 280 dos autos, veio a Juíza Relatora, acentuar que: “Em regra, o âmbito do recurso define-se pelas motivações que o Recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. De igual se devem especificar as normas jurídicas violadas. Por isso as conclusões da motivação de recurso são muito importantes e devem ser concisas, precisas e claras, porque são as questões nelas contidas que serão objecto da decisão. Desta sorte, o Recorrente deve sintetizar as conclusões das alegações, sob pena de não se tomar conhecimento do recurso.
A Recorrente em obediência ao aludido despacho, apresentou novas alegações, com 30 páginas e 11 pontos de conclusões, a fls. 282 a 311 dos autos.
Porém, a decisão recorrida julgou em não conhecer do recurso por falta de objecto, vide fls. 313 a 328 dos autos.
Ora, data venia ao entendimento vertido na decisão recorrida, da observação cabível aos presentes autos dentro do rigor mínimo exigido, este Tribunal não tem a mesma percepção, porquanto a Recorrente logrou apresentar alegações com conclusões tal como refere o n.º1 do artigo 690.º do CPC: “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual concluirá pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.” Observando com atenção devida os 11 pontos constantes nas conclusões, é possível descortinar “o fundamento específico da recorribilidade” para que o Tribunal ad quem apreciasse o recurso. É de facto perceptível que a Recorrente impugnou o Despacho Saneador-Sentença, por entender que melhor prova devia ter sido produzida em sede de julgamento, o que não aconteceu. Não tendo sido atendido pelo Tribunal Supremo, o Tribunal Constitucional considera que a inobservância destes requisitos violou o princípio da legalidade.
c) Sobre o princípio da certeza jurídica
A materialização do Estado democrático de direito, resulta também da confiança que os cidadãos depositam nas instituições, in casu, instituições judiciais. Passa pelo princípio da certeza jurídica que faz o entrelaçamento com a segurança jurídica. Esta certeza deve ser provinda em toda a estrutura do ordenamento jurídico. É a observância deste princípio que garante aos entes que acorrem aos Tribunais em cumprimento ao disposto na CRA no artigo 29.º, a satisfação de ter uma decisão, quer favorável ou desfavorável, assente no disposto na CRA e na lei ordinária que, no entendimento deste Tribunal, ficou beliscada.
d) Acesso ao Direito e Tutela jurisdicional efectiva
A doutrina alude que o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva é um direito fundamental, cuja característica norteadora se entende como sendo direitos de defesa. Uma conceitualização que se permite aqui enunciar em torno dos direitos fundamentais é serem meios de defesa das pessoas físicas e jurídicas, em face dos poderes públicos instituídos. Por este facto, a sua dignidade constitucional serve exactamente para conferir maior observância daqueles poderes, in casu dos Tribunais, estes, enquanto órgãos constitucionalmente responsáveis em administrar a justiça em nome do povo, como refere o artigo 174.º da CRA.
O acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva permite aceder e, em termos iguais que os demais, obter um tratamento da questão em litígio em tempo útil e fundada na justiça e no direito.
A Constituição ao consagrar o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva defende o acesso facilitado aos Tribunais, celeridade e decisão em tempo útil, igualdade das partes no tratamento das questões litigantes. Este espírito hermenêutico decorre do previsto no artigo 29.º da Constituição.
De facto, a Recorrente apresentou conclusões extensas, mas corrigiu-as mediante a sequência de despachos de aperfeiçoamento que se observa nos autos. O civilista (Jorge Augusto Pais de Amaral. Direito Processual Civil. 14ª Edição p. 455) enuncia que, “ as conclusões do recurso servem para balizar a decisão. O âmbito do Recurso determina-se em face das conclusões da alegação do recorrente, só abrangendo as questões aí contidas”.
Ora, nas conclusões apresentadas pela Recorrente, a fls. 308 a 311 dos autos, verifica-se que continham fundamentos bastantes para que se conhecesse do âmbito e objecto do recurso, como parâmetro da decisão. A Recorrente enunciou as motivações que estiveram na base de requerer uma segunda apreciação, que são visionadas logo no ponto número um das referidas conclusões. Percebe-se do objecto do recurso que o Tribunal Provincial decidiu o pedido sem a realização de audiência de discussão e julgamento, ou seja, apreciou o pedido em sede de Despacho Saneador-Sentença.
Não tendo sido este o entendimento do Acórdão recorrido, o Tribunal Constitucional considera que o objecto está contido nas conclusões apresentadas, onde se vislumbra matéria bastante para se conhecer do recurso, pelo que houve violação do artigo 29.º da CRA, configurando-se, assim, uma inconstitucionalidade.
e) Do direito ao Julgamento Justo e Conforme
Sobre o direito ao julgamento justo e conforme, o professor Joaquim José Gomes Canotilho enuncia que, “Do princípio do Estado de direito deduz-se, a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito”. A realização do direito tem que ver com a equidade das decisões judiciais, ou seja, as pessoas têm direito a um “processo legal, justo e adequado”, o que significa que toda a acção do tribunal pautar-se-á no estrito cumprimento do legalmente previsto, atentando para a materialização de uma justiça adequada, justa e proporcional nos termos da Constituição.
Ainda no diapasão do Professor Gomes Canotilho, o direito ao julgamento justo, tem que ver com a realização do Estado de direito que se funda na legalidade, ou seja, os actos praticados em sede de uma acção judicial devem observar tal pressuposto.
Os cânones da ciência jurídica ensinam, que o direito não deve estar desprovido de justiça, sob pena de perigar a materialização do Estado de direito.
In casu, o Acórdão recorrido andou à margem do direito ao julgamento justo e conforme.
Face ao exposto, o Tribunal Constitucional reconhece que a decisão recorrida violou os lídimos direitos e princípios constitucionalmente consagrados nos artigos, 6.º, 29.º e 72.º todos da CRA.
Assim, nos termos do n.º 2 do 47.º da LPC, deve o Tribunal Supremo reformar a sua decisão em conformidade com as inconstitucionalidades ora verificadas.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em: DAR PROVIMENTO AO RECURSO E DECLARAR INCONSTITUCIONAL O ACÓRDÃO RECORRIDO.
Com custas, nos termos do artigo 15.º da LPC.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 10 de Outubro de 2019.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos A. B. Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima L. A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor