Loading…
Acórdãos > ACÓRDÃO 582/2019

Conteúdo

ACÓRDÃO N.º 582/2019

 

PROCESSO N.º 721-A/2019

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade 

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional: 

I. RELATÓRIO 

Dilson de Rosário da Cruz Bartolomeu, melhor identificado nos autos, arguido no Processo n.º 188/18-C, que corre seus termos na 10.ª Secção da Sala Criminal do Tribunal Provincial de Luanda, veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, do Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo proferida no Processo n.º 131/19, de 24 de Março de 2019, apresentando as conclusões que se transcrevem:

“...1. O recorrente foi pronunciado e condenado na prática de crimes de ofensas corporais e dano culposo, sendo-lhe aplicada a pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa por 1 ano.

  1. Da sentença proferida, quatro dias depois da notificação interpôs recurso ordinário, com efeito suspensivo.
  2. Do requerimento de interposição do recurso a Meritíssima Juíza proferiu despacho que não foi notificado ao Requerente, indeferindo o recurso interposto, alegando que o defensor oficioso indicado pelo tribunal prescindiu do recurso e que a produção de prova foi oral.
  3. Seis meses depois, deteve o requerente, sem qualquer mandado de captura, quando aquele havia se deslocado para o tribunal no sentido de saber do despacho recaído sobre o seu requerimento de interposição de recurso.
  4. Após detenção, neste mesmo dia, foi notificado do despacho de indeferimento do recurso.
  5. O requerente interpôs a providência cautelar de habeas corpus, com fundamento na prisão ilegal.
  6. Interposto o habeas corpus a Câmara Criminal do Tribunal Supremo indeferiu -o invocando para o efeito que o Tribunal Provincial de Luanda não tinha que comunicar a decisão de rejeição do recurso ao requerente e, concomitantemente, que a decisão era irrecorrível, por ter o seu defensor oficioso, em questões prévias, abdicado do recurso.
  7. O Acórdão recorrido que analisou em primeira mão o despacho proferido pela 10.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, que se estriba no art.º 648.º do CPP é inconstitucional, uma vez que a norma do artigo 648.º do Código Processo Penal (CPP) está ferida de inconstitucionalidade material superveniente, por não estar conforme à Constituição, dado que viola o direito ao recurso, à tutela a ampla defesa e à tutela jurisdicional efectiva dos arguidos, consagrados no n.º 1 do art.º 67.º, n.º 1 do art.º 57.º e do art.º 29.º todos do CRA.
  8. O Acórdão recorrido e o despacho que ordena a prisão, sem a notificação da rejeição do recurso, viola gravemente o direito ao recurso dos arguidos, nos termos do art.º 67.º da CRA.
  9. O Tribunal Supremo, no Acórdão recorrido, fixou como objecto a questão de saber se a prisão do requerente era ou não ilegal, por não lhe ter sido comunicada a decisão que recaiu sobre o requerimento de interposição de recurso proferido pelo Tribunal Provincial, no caso a 10.ª Secção da Sala dos Crimes. O certo é que em nenhum momento aquele órgão se pronunciou sobre o objecto de recurso.
  10. O Acórdão recorrido ignorou completamente que o Tribunal da 1.ª instância não notificou a decisão da rejeição do recurso, o que configura uma decisão surpresa, violadora do direito de defesa e a um julgamento justo.
  11. O Acórdão recorrido, ao não aceitar o habeas corpus com fundamento de que a decisão era irrecorrível, já foi amplamente debatida por este Augusto Tribunal e já é jurisprudência firmada de que o despacho que nega o recurso com base na irrecorribilidade da decisão e rejeição antecipatória ao recurso é inconstitucional, nos seus Acórdãos nºs 405/16, datado de 8/9/16 e 418/17, datado de 24 de Janeiro de 2017...”.

Termina solicitando a declaração de inconstitucionalidade do acórdão recorrido por violar as garantias do Recorrente, constitucionalmente consagradas, como ao recurso à ampla defesa, à tutela jurisdicional efectiva, ao contraditório e à liberdade, pedindo, consequentemente, a admissão do recurso e a sua libertação.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) e § único do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional, pelo que, estando esgotada a cadeia recursória, este Tribunal é competente para conhecer do recurso.

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é arguido no Processo n.º 188/18-C, que corre os seus termos na 10.ª Secção da Sala Criminal do Tribunal Provincial de Luanda, no qual é acusado da prática de crimes de ofensas corporais e dano culposo.

Assim sendo, o Recorrente tem legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

IV. OBJECTO

O objecto de recurso é saber se o Acórdão do Tribunal Supremo violou princípios, liberdades e garantias consagrados na Constituição da República de Angola (CRA) e na lei, nomeadamente os princípios da legalidade, da garantia de todos os cidadãos à providência extraordinária do habeas corpus e o princípio a um julgamento justo e equitativo (vide os artigos 36.º, n.º 2, 56.º, n.º 1, 57.º n.º 1, 64.º n.º 1 e 67.º, n.º 2, todos da CRA). 

  1. APRECIANDO 

Nos termos do disposto no artigo 690.º do Código Processo Civil (CPC) é jurisprudência corrente dos Tribunais Superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso. 

Como é sabido, os fundamentos dos recursos devem ser claros e concretos, pois aos Tribunais não incumbe averiguar a intenção dos recorrentes, mas sim apreciar as questões submetidas ao seu exame.

As conclusões das motivações não podem limitar-se a mera repetição formal de argumentos, mas constituir uma resenha clara que proporcione ao Tribunal Superior uma correcta compreensão do objecto do recurso.

No caso concreto, o Recorrente vem invocar em sede de alegações e conclusões a violação de diversos princípios constitucionais, conforme resulta expressamente das conclusões que acima transcrevemos.

Assim, e em resumo, temos como questões a conhecer: a violação do direito à defesa, do direito ao recurso, do direito à tutela jurisdicional efectiva, do direito ao contraditório e do direito à liberdade. 

Uma vez que estes princípios se encontram todos eles correlacionados proceder-se-á à sua análise conjunta.

Então, vejamos.

Está aqui em causa um Acórdão proferido no âmbito de uma providência de habeas corpus que indeferiu a pretensão do ora Recorrente, por entender não existir qualquer ilegalidade na sua prisão, conforme se transcreve na parte que aqui releva:

“...Analisados os autos e tendo em conta a informação nele constante, apuramos que o requerente interpôs a presente Providência extraordinária de habeas corpus sob fundamento da ilegalidade da sua detenção para cumprir a pena de 1 ano e 2 meses de prisão, em consequência da condenação que lhe foi imposta por acórdão de 2 de Agosto de 2018, vide fls. 24v e 25 dos autos, pela 10.ª Secção dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda.

Entretanto, mostram os autos que a medida tomada pelo Tribunal “a quo” não se encontra eivada de ilegalidade, uma vez que resulta do Acórdão daquele tribunal que o requerente embora a sua pena tenha sido suspensa por um período de dois anos, ficou o mesmo obrigado, no prazo de 6 meses, a proceder à reparação do dano causado ao ofendido António Manuel Camões, calculado no valor de Kz. 5 600 000,00 tendo sido advertido das suas consequências caso não cumprisse com o referido Acórdão. 

Ademais, desde a data da prolação da decisão do Tribunal recorrido até a data em que foi recolhido à cadeia, o requerente não se dignou em ver o interesse do ofendido, plasmado na decisão do Tribunal, satisfeito, visto que deveria fazê-lo até ao dia 2 de Fevereiro de 2019, uma vez que a leitura da sentença ocorreu no dia 2 de Agosto de 2018, facto que não se verificou. 

Por conseguinte, os argumentos constantes nos autos apresentados pelo Ilustre Mandatário do réu, constituído depois de aquele tribunal ter decidido sobre o processo, quanto à falta de admissão do recurso, por si interposto no dia 7 de Agosto de 2018, portanto 4 dias após a notificação do requerente, mostram-se infundados, na medida em que o próprio requerente através do defensor oficioso, por si indicado, ter prescindido, nos termos do art.º 540.º e 648.º do CPP, o direito de recorrer da decisão do Tribunal “ a quo”, vide acta de julgamento de fls. 18 dos autos, ficando, deste modo, impedido de exercer o referido direito, por um lado, e, por outro, julgamos que o Ilustre Mandatário deveria, antes de interpor recurso indeferido pelo Tribunal recorrido, consultar o processo (...) por isso, somos a considerar legal a situação carcerária do réu devendo mantê-la como consta dos autos...”.

Compulsados os autos, verifica-se que o ora Recorrente interpôs recurso da decisão condenatória, que foi indeferido porque o Réu, no início da audiência de discussão e julgamento no tribunal a quo, prescindiu do direito de recorrer, não tendo a prova sido reduzida a escrito, nos termos do artigo 648.º do Código de Processo Penal.

Porém, o Recorrente não foi notificado deste despacho.

Quanto à primeira questão, ou seja, a não admissão do recurso, no tocante à fundamentação do despacho da Juíza do Tribunal da 1.ª instância e à sua compreensibilidade, não há dúvidas que se limitou a cumprir os dispositivos legais que impedem a defesa e acusação de recorrerem se, no início da audiência de julgamento, prescindirem do mesmo, até porque não há gravação da prova que permita a sua sindicância.

De igual modo, o Aresto impugnado, ao confirmar esta posição, também o fez com fundamento na lei.

No tocante à fundamentação do despacho e à sua compreensibilidade, não há dúvidas, já se disse, em como os argumentos essenciais foram estribados na lei processual. Faltou, no entanto, a comunicação (notificação) adequada à defesa, como abaixo melhor se abordará, por forma a saber o que lhe era imputado e poder exercer adequadamente o contraditório.

Mas, sem dúvida, outrossim, isso não significa que a defesa tivesse que estar de acordo com a avaliação jurisdicional efectuada, sobretudo face à corrente dominante deste Tribunal Constitucional que, no âmbito de alguns recursos extraordinários de inconstitucionalidade, tem defendido a inconstitucionalidade dessas normas por violarem princípios constitucionais, mormente, o direito ao recurso, corolário dos mais amplos direitos de defesa do arguido.

Porém, esse entendimento tem sido explanado no âmbito de recursos extraordinários de inconstitucionalidade e, por isso, não tem eficácia erga omnes, não vinculando os julgadores em outros processos que poderão fazer a interpretação da Meritíssima Juíza do tribunal a quo e acolhida pelo Tribunal Supremo (vide n.º 1 do artigo 47.º, ex vi do n.º 1 do artigo 52.º, ambos da LPC).

Este tem sido o entendimento dominante deste Tribunal, na medida em que os referidos dispositivos coarctam o direito de defesa e, consequentemente, o direito ao recurso.

É, pois, evidente que a decisão recorrida violou estes princípios.

Com efeito, a autonomização do direito ao recurso no âmbito das garantias de defesa, consagrado no artigo 67.º da CRA, corresponde à autonomia de tal garantia no contexto geral das garantias de defesa.

Tal explicitação constitucional tem por efeito a garantia constitucional da possibilidade de interposição de recurso de decisões que respeitem a direitos, liberdades e garantias, maxime que restrinjam tais direitos. A decisão dos autos, da qual o Recorrente interpôs recurso, restringe indiscutivelmente a liberdade do arguido, já que se traduz numa pena privativa da liberdade, pelo que, por maioria de razão, se terão de ajustar essas normas à Constituição.

A propósito ainda desta matéria, uma única nota final para se salientar a necessidade, face à existência de pelo menos três processos com decisões idênticas, que se comece a pensar em como tornar tais decisões em jurisprudência com força obrigatória para todos, evitando-se, assim, atropelos a princípios constitucionais decorrentes de uma legislação processual penal completamente desajustada à Constituição de um Estado de Direito Democrático, como o nosso.

Já, a não notificação do despacho que indeferiu o recurso, constitui uma nulidade que viola o princípio do contraditório e da ampla defesa, inviabilizando a reclamação para o Presidente do Tribunal Supremo, prevista nos artigos 652.º do CPP e 688.º e 689.º do CPC.

Estes princípios constituem princípios jurídicos fundamentais no nosso processo penal, exprimindo a necessidade de se ouvir sempre o outro lado (audiatur et altera pars), para assim, se conseguir uma decisão justa e equitativa, pelo que, também, por esta razão, colhe o argumento do Recorrente no sentido de ter sido violado o julgamento justo.

Já não se pode concordar pela omissão de pronúncia do Acórdão recorrido, porque a sua leitura permite perceber que se debruçou sobre todas as questões levantadas pelo Recorrente.

Assim, este Tribunal propugna pela procedência do recurso, na medida em que o Tribunal ad quem violou os princípios da ampla defesa, do direito ao recurso, do contraditório e do julgamento justo e, nessa medida, sendo a prisão manifestamente ilegal pode ser objecto da providência de habeas corpus.

Com efeito, a providência de habeas corpus, com tutela constitucional no artigo 68.º da Constituição da República de Angola, na expressão de Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação à CRP, aqui trazidos à colação pela similitude de legislação, “consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido. Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”.

No respeitante à prisão ilegal, o seu tratamento processual decorre do artigo 315.º do CPP, cujo elenco taxativo faz derivar do facto de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Os prazos máximos de prisão preventiva são os elencados, taxativamente, no artigo 40.º da referida Lei das Medidas Cautelares, Lei n.º 25/15 e só esses (que não outros) porque peremptórios (sublinhado é nosso).

O ora Recorrente, fundamenta, como se viu, o pedido de restituição à liberdade na ilegalidade decorrente de não ter sido notificado do despacho que indeferiu o recurso e, nessa conformidade, de não poder ser preso antes de lhe ser permitido reclamar deste despacho o que consubstancia uma prisão ilegal.

Este facto já foi reparado no despacho inicial do relator deste Processo que culminou com a libertação do Recorrente, conforme consta a fls. 306 dos presentes autos.

Assim, o Tribunal Constitucional entende que deve ser declarada a nulidade do Acórdão recorrido, por violar os descritos princípios constitucionais, e o Tribunal recorrido reformular a sua decisão em conformidade com o julgamento sobre a questão das inconstitucionalidades verificadas, nos termos do n.º 2 do artigo 47.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 19 de Novembro de 2019.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS 

 Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) ­

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima L. A B. da Silva 

Dr. Simão de Sousa Victor (Relator) 

Dra. Victória Manuel da Silva Izata