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ACÓRDÃO N.º 584/2019

 

PROCESSO N.º 647-A/2018

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Guilhermino de Victorino Mendes Bastos, melhor identificado nos autos, interpôs no Tribunal Constitucional o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão de aclaração e reforma, de 10 de Agosto de 2017, que revogou parcialmente o Acórdão de 19 de Abril de 2017, ambos prolactados pela 1ª. Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 336/15.

Inconformado com a decisão do Acórdão que nega provimento ao seu pedido, o Recorrente interpôs o presente recurso, invocando, essencialmente, nas suas alegações que:

  1. A decisão proferida pelo Tribunal ad quem violou, de forma flagrante e ostensiva, os artigos 6.º, n.ºs 1 e 2, 72.º, 76.º, 175.º e 177.º da Constituição da República de Angola (CRA) e os artigos 52.º, n.ºs 1 e 2, e 228.º, ambos da Lei n.º 2/00, de 11 de Fevereiro – Lei Geral do Trabalho (LGT), em vigor à data dos factos.
  1. O Tribunal ad quem reconhece e bem, a fls. 187 do seu Acórdão, que a decisão de aplicação da medida disciplinar foi tomada no dia 27 de Junho de 2013 e que a entidade empregadora tem 30 dias para a tomada de decisão sobre a medida disciplinar a aplicar ao trabalhador, cuja comunicação deve ser feita no prazo de 5 dias após a decisão, tal como prescrevem os n.ºs 1 e 2 do artigo 52.º da LGT.
  1. A entrevista realizou-se no dia 24 de Maio de 2013, a medida disciplinar devia ser aplicada até ao dia 24 de Junho do mesmo ano, o que não veio a suceder, pois, naquela data, a entidade empregadora apenas elaborou o relatório final do procedimento disciplinar, o que não coincide com a data da tomada de decisão de aplicação da medida disciplinar.
  1. Tendo sido tomada no dia 27 de Junho de 2013, a decisão de aplicação da medida disciplinar de despedimento ao Recorrente, isto é, decorridos exactos 33 dias após a realização da entrevista, a mesma padece de vício de nulidade, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 52.º da LGT.
  2. A comunicação da medida disciplinar aplicada ao Recorrente, realizada no dia 29 de Junho de 2013, não pode produzir os efeitos jurídicos desejados, pois, trata-se, ab initio, de uma medida disciplinar inválida, ao abrigo do n.º 2 do artigo 52.º da LGT.
  1. O Tribunal ad quem, ao ter feito uma má interpretação e aplicação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 52.º da LGT e ao decidir como o fez, beliscou os princípios da legalidade previsto no artigo 6.º n.º 2 da CRA, que impõe a conformação de todos actos públicos ao primado da Constituição e da lei, bem como do julgamento justo e conforme (artigo 72.º da CRA).
  1. O Acórdão proferido pelo Tribunal ad quem ignorou o artigo 52.º da LGT, mesmo depois de se lhe ter requerido a aclaração da interpretação e aplicação da referida disposição legal, em flagrante violação dos artigos 175.º e 177.º da CRA e da alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil (CPC).
  1. O Acórdão recorrido violou o princípio da estabilidade de emprego, previsto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 76.º da CRA e no artigo 211.º da LGT, que impõe que o despedimento sem justa causa é nulo nos termos do artigo 228º da LGT. O procedimento disciplinar de que resultou o despedimento do Recorrente violou normas imperativas do direito do trabalho, quanto às formalidades exigíveis para a condução do processo e aplicação da medida disciplinar.
  1. O cumprimento das formalidades legais prescritas para o procedimento disciplinar implicam o estrito respeito pelo princípio da legalidade que os tribunais devem observar no exercício das suas funções, nos termos dos artigos 6.º, n.º 2 e 226.º da CRA, sendo certo que a legalidade é a base em que assentam as decisões jurisdicionais, nos termos do artigo 175.º da CRA.
  1. O princípio do processo equitativo impõe não só o direito de acesso ao direito como, também, à tutela jurisdicional efectiva, enquanto garantias fundamentais, nos termos dos artigos 29.º e 72.º da CRA. Este princípio constitucional foi violado pelo Tribunal ad quem, por isso, a medida disciplinar aplicada é nula.

Conclui requerendo a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido, por estar em desconformidade com CRA e a lei.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, como sendo “ as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e de decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.

Além disso, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no § único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar este recurso.

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente, enquanto apelante do Processo n.º 336/15, que correu termos na 1.ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo não viu a sua pretensão atendida, por essa razão, tem legitimidade para interpor o presente recurso, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual, “no caso de sentenças, podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem como objecto a verificação da constitucionalidade do Acórdão proferido a 10 de Agosto de 2017, pela 1.ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 336/15, que revogou parcialmente o Acórdão de 19 de Abril de 2017 e negou provimento ao recurso de apelação impetrado pelo Recorrente.

V. APRECIANDO

Questão prévia

A razão de ser da questão prévia assenta no fundamento de que o Tribunal Constitucional, para além de conhecer de inconstitucionalidade de normas pode também declará-las com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles invocados pelo Recorrente, nos termos do previsto no artigo 11.º da LPC.

O Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara de Trabalho do Tribunal Supremo, a 19 de Abril de 2017, conferiu provimento ao recurso de apelação impetrado pelo Recorrente.

Entretanto, por via de uma reclamação, foi deduzido um pedido de aclaração e reforma da sentença, apresentado pela empresa Cabinda Gulf Oil Company (Apelada), para o suprimento de erros nas normas legais que fundamentaram a decisão do Tribunal ad quem o que determinou a sua reapreciação e reforma e, consequentemente, a prolacção do Acórdão recorrido que, desde logo, vem negar provimento ao pedido do Recorrente.

O instituto de aclaração e reforma da sentença constitui um expediente de excepção que a lei acolhe para permitir que, em tempo útil e célere, sejam sanados vícios inquinados, causados por manifesto desconhecimento ou erro do julgador na interpretação ou má compreensão do regime legal aplicável.

Importa destacar que a apelada requereu a aclaração e reforma da sentença ao abrigo do disposto nos artigos 666.º, 670.º, 716.º e 718.º, todos do CPC tendo daí resultado a alteração da decisão das normas aplicáveis e o provimento do seu pedido.

Contudo, atento aos fundamentos legais sustentados na decisão do Acórdão recorrido, verifica-se que apenas se faz menção ao artigo 718.º do CPC, excluindo-se outros preceitos do acervo legal, desse código, basilares para a fundamentação da sentença que não foram aplicados pelo Tribunal ad quem.

Por outro lado, infere-se da interpretação do mencionado artigo 718.º do CPC que esta disposição prevê a reforma de uma decisão de um tribunal de primeira instância, por outro de segunda, e não de uma decisão de um mesmo tribunal superior, como se verificou no caso sub judice.

Assim, resulta evidente que o Acórdão recorrido sanou o vicio arguido pela apelada, mas, a fundamentação de decisão não espelha uma coerência lógica da harmonização fáctico-jurídico e os fundamentos legais e de direito que justificaram a sua reforma, conforme preceitua o artigo 659.º do CPC, quanto à exigência de descrição analítica da sentença, em obediência aos princípios da legalidade, da certeza, da segurança jurídica e do Estado de direito.

Sobre o instituto de aclaração e reforma da sentença refere Abílio Neto, em Código de Processo Civil Anotado, pág. 904, 4.ª edição Revista e Ampliada, Março/2017, Ediforum, edições jurídicas, Lda que:

Este instituto constitui uma importante e necessária limitação ao império absoluto do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, conferindo ao próprio julgador que proferiu a decisão a possibilidade de alterar o decidido, mesmo nos casos em que se verifica não “omissão”, mas antes um “activo erro de julgamento”. Tem especial sentido e utilidade nos casos em que a decisão proferida e inquinada por erro manifesto de julgamento não admite recurso ordinário, permitindo, através da alteração do decidido com base em manifesto lapso do julgador, a realização da justiça material

Entretanto, o Acórdão de aclaração e reforma de 10 de Agosto de 2017 é uma decisão definitiva sobre a qual não cabe recurso para o Plenário do Tribunal Supremo, na medida em que a decisão proferida pelo Tribunal a quo já foi objecto de reapreciação, tendo desta forma, esgotado todos os meios de recurso ordinário.

Os Juízes do Tribunal ad quem diante da reclamação da Apelada (Cabinda Gulf OIl Company) reconhecem que “só por mero lapso, foi aplicado o prazo previsto no artigo 63.º e seguintes para justificar a caducidade do procedimento disciplinar no geral, quando deveria lançar mãos ao estabelecido no artigo 50.º e 52.º, ambos da LGT”.

“Na verdade foi aí confundido o prazo de prescrição e de caducidade com os prazos para aplicação da medida disciplinar e o prazo para comunicação da medida disciplinar ao trabalhador (n.º 1 e 2 do art.º 52.º e al. a) do n.º 1 do art.º 63, ambos da LGT”.

Sobre os Fundamentos do Recurso

1 - Violação dos artigos 52.º, n.º 2, e 63.º da LGT

O Recorrente alega que a medida disciplinar de despedimento a si aplicada, padece de vícios, por violação dos artigos 52.º n.º 1 e 63.º da LGT, porquanto, foi decidida decorridos 33 dias após a realização da entrevista. Sobre este quesito, vale lembrar que o n.º 1 do artigo 52.º da LGT consagra que “ a medida disciplinar não pode ser validamente decidida antes de decorridos três dias úteis ou depois de decorridos 30 dias sobre a data em que a entrevista se realize”.

Da teleologia deste dispositivo legal extraem-se dois princípios basilares, no âmbito do procedimento disciplinar, a saber: da ponderação prévia e da celeridade, que impõem a entidade empregadora um prazo razoável para reflectir e ponderar sobre a medida disciplinar a aplicar ao infractor. Apesar disso, o trabalhador não pode ficar numa situação de expectativa, daí que, findo o referido prazo de ponderação, a medida só pode ser validamente decidida na vigência dos prazos consignados por lei.

Neste contexto, nota-se um equívoco nas alegações do Recorrente, quanto ao seu entendimento sobre os prazos legais do procedimento disciplinar, uma vez que da leitura dos documentos inseridos no processo consta a decisão de despedimento imediato com justa causa aplicada em conformidade com o prazo legal respeitante.

No caso em apreciação, analisado o processo disciplinar, enxertado no Processo n.º 336/15, (fl. 7), não restam dúvidas a este Tribunal que a entrevista foi realizada no dia 24 de Maio de 2013 e a medida disciplinar aplicada no dia 24 de Junho de 2013, isto é, a sanção foi aplicada exactamente no 30º (trigésimo) dia da vigência do prazo legal, por isso, não pode ser considerada extemporânea e, como tal, não constitui excepção peremptória por caducidade do prazo. Pelo que, não procede o que alega o Recorrente quanto a esta questão.   

2 - Violação dos Princípios e Normas Constitucionais:

Princípios da Legalidade, Estabilidade de Emprego, Justa Causa de Despedimento e Tutela Jurisdicional Efectiva

O Recorrente, nas suas alegações, refere que o Acórdão recorrido violou o princípio da estabilidade de emprego, previsto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 76.º da CRA, conjugado com o artigo 211.º da LGT, aplicável à data dos factos, que consagram que o despedimento sem justa causa é nulo.

Para a eficácia e garantia da protecção dos direitos fundamentais dos trabalhadores, a CRA e a lei projectam uma panóplia de regras e formalismos processuais rígidos para atender os ditames exigíveis num Estado de direito, particularmente, no que diz respeito ao cumprimento dos seus direitos e garantias no âmbito do procedimento disciplinar.

É essencial dizer que a CRA acautelou de forma conveniente e clara as garantias laborais concernentes à estabilidade e à segurança no trabalho, mas há que enfatizar que essa tese deve obedecer a uma dualidade de interesses contrapostos dos sujeitos laborais (empregador e trabalhador), sem perder de vista que o trabalhador, embora seja a parte mais frágil do contrato laboral e gozar de protecção que lhe é atribuída pela CRA, não goza de efeitos absolutos sobre o empregador. Apesar disso, não se pode perder de vista que este contrato comporta especificidades próprias que decorrem da igualdade formal dos sujeitos jurídicos laborais, suscitando, por isso, uma adequada protecção da parte mais débil.

Na perspectiva deste Tribunal, estão em causa conflitos de bens jurídicos de tutela constitucional, que decorrem do princípio da estabilidade de emprego e da proibição dos despedimentos sem justa causa.

A unidade sistémica da constituição laboral impõe que o princípio da estabilidade e da segurança no trabalho não possa ser relativizado, devendo atender a necessária coesão, articulação e harmonização não só dos direitos, liberdades e garantias fundamentais previstos na CRA e na lei, como, também, nas convenções internacionais ratificadas por Angola. A CRA, ao proclamar os princípios, direitos, liberdades e garantias, coloca no cerne das relações jurídico-laborais, como questão nuclear, o respeito dos direitos e garantias fundamentais dos trabalhadores e os meios efectivos de defesa e tutela dos seus direitos e interesses.

Tendo em conta a dignidade constitucional desses direitos, cabe frisar que em observância do disposto no artigo 43.º da LGT vigente à data dos factos, incumbe ao empregador o dever legal e contratual de proporcionar condições que permitam ao trabalhador prestar a actividade laboral no local de trabalho, sem pôr em risco a sua saúde e a integridade física, de modo a não prejudicar a sua capacidade física de prestação de trabalho nem afectar a boa execução do contrato.

O alcance e a ratio das disposições legais, supra aludidas, impõem ao empregador a obrigação de atender e decidir, em tempo razoável, a contento da CRA e da lei as reclamações dos seus trabalhadores, mormente as que têm a sua incidência em direitos fundamentais basilares, tais como a vida, a saúde e a integridade física inerentes ao trabalhador, enquanto pessoa humana, como estipula a alínea f) do nº. 1 do artigo 85.º da LGT.

Acresce que, da apreciação dos autos, o Tribunal Constitucional verificou ter ficado provado que o Recorrente, além de ter comunicado ao empregador, por e-mail, o seu estado de saúde para informá-lo do motivo da sua ausência, noutras ocasiões já havia dado a conhecer que as refeições confeccionadas no refeitório da empresa punham em causa o seu estado de saúde (fls. 8, verso e 11,12, 94 e 157), o que o levou a solicitar a transferência do local de trabalho. Porém, não se visualiza uma posição manifesta do Empregador sobre esta questão de capital importância para a plena execução do contrato e a aferição da salvaguarda dos direitos e garantias do Recorrente, estatuídas na CRA e na lei.

Em abono da verdade, o dever de assistência legalmente exigível, alicerçado na defesa dos valores e objectivos perseguidos pelo princípio da estabilidade laboral na sua ampla acepção, fazem apelo aos ditames da lei ao estabelecerem que a prestação do trabalho deve ser feita em condições de segurança e de saúde que permitam a salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais dos trabalhadores, ilustrando, deste modo, o alcance e o sentido do dever de cuidar que a lei impõe ao empregador.

Deve dizer-se, em rigor, que é notória e inegável a existência de uma infracção laboral cometida pelo Recorrente, pela prática de 14 faltas consecutivas, alegadamente por motivo de doença, sem exibir nenhum comprovativo médico para atestar e justificar a sua situação de enfermidade, desencadeando, desde logo, o enquadramento do seu comportamento laboral no regime jurídico das faltas injustificadas, susceptíveis de constituir fundamento para a justa causa de despedimento.

Todavia, não obstante o Recorrente ter praticado uma infracção disciplinar ao infringir um dever laboral fundamental, o empregador deve mensurar o grau de culpabilidade, ponderar todas as circunstâncias relevantes, a situação de facto que determinou o comportamento do trabalhador e apurar a verdade objectiva, para a aplicabilidade de uma medida disciplinar justa e adequada, respeitando os princípios da proporcionalidade e da graduação da medida disciplinar. Com efeito, reza o n.º 1 do artigo 53º da LGT que na “determinação da medida disciplinar devem ser consideradas e ponderadas todas as circunstâncias em que a infracção foi cometida, atendendo-se a sua gravidade e consequências, ao grau de culpa do trabalhador, aos seus antecedentes disciplinares e a todas as circunstâncias que agravem ou atenuem a sua responsabilidade.”

No mesmo sentido, o artigo 160º conjugado com o artigo 49º, ambos da LGT, estabelece os efeitos jurídicos legais sancionatórios desencadeados pelo regime das faltas injustificadas, deixando em aberto uma margem de aplicação de outras medidas disciplinares sem que seja o despedimento imediato.

No caso vertente, nota-se que as circunstâncias respeitantes à inexistência de antecedentes disciplinares, à conduta laboral do Recorrente, até então reconhecida com o mérito de uma promoção num escalão salarial de categoria 2, e outras circunstâncias que militaram a seu favor, enquanto infractor primário não foram devidamente apreciados pelo Tribunal ad quem no Acórdão recorrido.

Este entendimento é postulado pela doutrina laboral na posição perfilhada por Pedro Ferreira de Sousa na sua obra “O Procedimento Disciplinar Laboral”, uma construção jurisprudencial, 2.ª edição, Almedina, pág. 221 a 223 “A decisão disciplinar encontra-se, assim, subordinada aos princípios da proporcionalidade e adequação, designadamente à gravidade dos factos e à culpa do trabalhador (…), devendo, para o efeito, ser ponderada todas as circunstâncias, atenuantes ou agravantes, directa ou indirectamente relevantes (…) tais como o quadro organizativo da empresa, o grau de lesão dos interesses da entidade empregadora, o carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e seus colegas de trabalho, a antiguidade, a posição hierárquica, o grau de responsabilidade das funções desempenhadas, os antecedentes disciplinares (…)”.

Sobre esta matéria, cabe, ainda, aclarar que no Direito do Trabalho não há imperiosamente uma articulação directa e necessária entre a infracção laboral e as medidas disciplinares tipificadas na lei, contrariamente ao regime que vigora nos ilícitos penais, em relação a hipótese (crime cometido) e a cominação (penas aplicáveis). Daí as particularidades e especificidades de que enferma a matéria disciplinar, no âmbito da resolução do contrato, designadamente quanto a subsunção da medida de despedimento na justa causa subjectiva.

O conceito de justa causa de despedimento carece de concretização na sua aplicabilidade, sendo que a lei e a doutrina entendem como sendo o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequência, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, assente em três requisitos essenciais cumulativos: a) um comportamento ilícito, grave, em si mesmo ou pelas consequências, e culposo do trabalhador (é o elemento subjectivo da justa causa); b) a impossibilidade prática e imediata de subsistência do vínculo laboral (é o elemento objectivo da justa causa; c) a verificação de um nexo de causalidade entre os dois elementos anteriores, no sentido em que a impossibilidade de subsistência do contrato tem que decorrer, efectivamente, do comportamento do trabalhador. (Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 4.ª edição, Almedina, pág. 817).

Como se vê, a correlação e o entrosamento de direitos e obrigações nas relações laborais traz à liça na justa medida, o equilíbrio razoável dos interesses das partes contratuais nos princípios densificados na ordem constitucional angolana destacando-se a justa causa de despedimento, por motivos subjectivos (despedimento disciplinar),com manifesta proibição dos despedimentos arbitrários ou abusivos.

Sucede, in casu, que este Tribunal verificou que a adequação da infracção à medida disciplinar aplicada pelo empregador desconsiderou os princípios da proporcionalidade, da justa medida e da graduação que a CRA e a lei impõem quanto à aplicabilidade das medidas disciplinares. Com efeito, o Tribunal ad quem ao decidir pela manutenção do despedimento imediato, não teve em atenção os referidos princípios, previstos nos artigos 53.º n.º 1 e 160º, ambos da LGT, bem como o princípio da estabilidade de emprego e o direito a segurança no emprego previstos no artigo 76.º da CRA.

No caso sub judice, e em obediência ao estabelecido legalmente o Tribunal ad quem depois de aferir, em primeiro lugar, da licitude ou ilicitude do processo disciplinar, deveria, em segundo plano, analisar ou julgar a relação jurídica material controvertida, substancial, ou melhor, proceder ao julgamento da acção propriamente dita, o que não veio a acontecer. Com efeito, o direito do Recorrente a ter um julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º da CRA, ficou afectado por inobservância de um procedimento justo.

Sobre esta questão o Professor Gomes Canotilho no seu Manual de Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Almedina, pág. 494, ensina o seguinte: “Como qualificar um processo justo? Quais os critérios materiais orientadores da determinação do caracter “devido” ou “indevido” de um processo?”. Ou seja, as pessoas têm direito a um “processo legal, justo e adequado”, significa que toda a acção do tribunal pautar-se-á no estrito e rigoroso cumprimento do legalmente previsto para a materialização de uma justiça adequada, justa e proporcional.

A este propósito, é importante ainda destacar que no aresto em crise não se vislumbram as razões que determinaram a aplicação da medida disciplinar mais gravosa (despedimento imediato), em detrimento de outras também aplicáveis, previstas nos artigos 49.º nº 1 e 161.º da LGT.

O princípio da legalidade materializa o respeito pela lei, quer em sentido formal, quer em sentido material, pelo que as decisões judiciais devem reflectir a sua conformidade com a Constituição e a lei sob pena de afectação da sua validade. Ora, o aresto em sindicância foi prolactado à margem do que dispõem o n.º 4 do artigo 76.º da CRA e o n.º 1 do artigo 53.º da LGT, afectando direitos fundamentais do Recorrente.

Alega ainda o Recorrente que beliscada a validade da decisão resulta afectado o direito à tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 29.º da CRA. Na verdade, este direito, que emana do direito de acesso ao direito e aos tribunais, pressupõe que as decisões proferidas pelos órgãos com competência para administrar a justiça devam dar resposta às pretensões submetidas a juízo de modo efectivo.

Assim, quanto a este quesito entende este Tribunal que não assiste razão ao Recorrente.

Os Tribunais estão vinculados à CRA e a lei tal como consignam os artigos 175.º e 177.º da CRA, sendo que o direito ao trabalho, que emerge da relação jurídico-laboral, é um direito com dignidade constitucional e de elevada dimensão humana (artigo 76.º da CRA) que, tal como os demais direitos fundamentais, concretiza as exigências da igualdade e dignidade, clamando, por isso, por uma protecção máxima e adequada à tutela dos direitos e garantias fundamentais proclamados pelo Estado de direito.

Destarte, atento ao exposto, este Tribunal considera que o aresto recorrido por insuficiência de fundamentação violou os princípios da estabilidade de emprego, da justa causa de despedimento, do direito a julgamento justo e conforme, da proporcionalidade e da segurança jurídica previstos na CRA e na lei, pelo que devem os presentes autos ser remetidos ao Tribunal Supremo para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 47.º da LPC. 

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, 17 de Dezembro de 2019 

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira 

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira (Relatora) 

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima de L.A B. da Silva

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Victória Manuel da Silva Izata