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ACÓRDÃO N.º 585/2019

 

PROCESSO N.º 734-B/2019

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional.

I. RELATÓRIO

Cabinda Gulf Oil Company Limited – Sucursal de Angola, melhor identificada nos autos, interpôs no Tribunal Constitucional o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão de 7 de Junho de 2018, prolactado pela 1.ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 468/17, que confirmou a decisão do Tribunal a quo, alegando essencialmente o seguinte:

  1. O Tribunal Supremo sustenta no Acórdão recorrido que a Recorrente violou os princípios constitucionais da tutela jurisdicional efectiva e do contraditório, previstos no artigo 29.º n.º 2 da Constituição da República de Angola (CRA), por ter concedido ao trabalhador, um prazo inferior a 48 horas para a realização da entrevista.
  1. A decisão proferida pelo Tribunal ad quem e pelo Tribunal a quo não tem fundamento numa disposição legal que expressamente fixe um prazo, contado a partir da data da entrega da convocatória para o empregador agendar e realizar a entrevista do processo disciplinar.
  1. O exame analítico e crítico do procedimento disciplinar efectuado pelo Tribunal ad quem nos presentes autos revela-se ostensivamente deficiente e, por isso, resultou numa decisão manifestamente contrária aos preceitos da CRA.
  1. O Tribunal ad quem, ao decidir como o fez, omitiu factos essenciais para a apreciação e decisão da causa.
  1. Não obstante a entrevista ter sido realizada antes do prazo que o Tribunal Supremo considera razoável para o trabalhador exercer o seu direito de defesa, o exercício de tal direito não se afigura objectiva e materialmente afectado, uma vez que o Trabalhador não manifestou qualquer oposição à realização da entrevista na data agendada.
  1. Mais ainda, resulta do texto da acta da entrevista que o trabalhador contestou de forma expressa e individualizada, cada um dos pontos da convocatória, exercendo, assim, a sua defesa.
  1. Não houve, de modo algum, no procedimento disciplinar a violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva e do contraditório mas, pelo contrário, é a decisão recorrida que viola disposições constitucionais, designadamente os artigos 72.º, 175.º, 177.º e n.º 1 do artigo 179.º todos da CRA.
  1. O Tribunal a quo, secundado pelo Tribunal ad quem, tomaram uma decisão sem qualquer suporte legal, isto é, não existe no ordenamento jurídico angolano disposição legal que estabeleça expressamente um prazo contado a partir da data da entrega da convocatória para o empregador realizar a entrevista do trabalhador.
  1. Proferir uma decisão dizendo apenas que o facto de a entrevista não ter sido realizada dentro de um prazo que o tribunal considera razoável, sem demonstrar como, no caso concreto, o direito de defesa foi material e objectivamente prejudicado, equivale a falta de fundamentação.

Conclui requerendo a declaração de inconstitucionalidade do Acórdão recorrido e a sua revogação por estar em desconformidade com a CRA e a lei.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, como sendo “ as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e de decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.

Além disso, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no § Único do artigo 49.º da LPC, pelo que, tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar este recurso.

III. LEGITIMIDADE

A Recorrente foi Apelante no Processo n.º 468/17, que correu termos na 1.ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo e não viu a sua pretensão atendida, por essa razão, tem legitimidade para interpor o presente recurso, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual “podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público e as pessoas que de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem como objecto verificar se o Acórdão de 7 de Junho de 2018, prolactado pela 1ª Secção da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 468/17, que concedeu parcial provimento ao recurso de apelação e, em consequência, confirmou a decisão do Tribunal a quo, violou princípios, direitos e garantias constitucionais.

V. APRECIANDO

A Recorrente alega que o Acórdão revidado violou princípios constitucionais designadamente os artigos 72º (direito a um julgamento justo e conforme), 175º (Independência dos Tribunais), 177º (Decisões dos Tribunais) e o nº 1 do 179º (Magistrados Judiciais), todos da CRA, por considerar que a decisão do Tribunal ad quem não tem fundamentação legal, assente num prazo mínimo que expressamente consigne a realização da entrevista, no âmbito do procedimento disciplinar.

É mister mencionar que a Recorrente, estribou as suas alegações suscitando a questão em pauta, ou seja, na sua percepção a decisão do Tribunal ad quem não se funda numa disposição legal, uma vez que o n.º 2 do artigo 50.º da LGT é pouco claro, omisso mesmo, quanto à questão do prazo mínimo aplicável à data da realização da entrevista, isto é, quanto ao período de tempo que deve ser atribuído ao trabalhador infractor para exercer o seu direito de defesa.

Em sede do ordenamento jurídico angolano, o ritualismo do processo disciplinar é formal e visa, essencialmente, fazer recurso a uma apologia dialéctica que ofereça aos sujeitos jurídico-laborais (trabalhador e empregador) oportunidades e garantias, em paridade de litigância e, em igualdade de armas, com vista a concretização de um processo justo, conforme e transparente.

Seguindo o raciocínio da ratio legis, a triologia dos poderes legalmente atribuídos ao Empregador (direcção, regulamentar e disciplinar), embora gozando de uma ampla margem de exercício de discricionariedade, são mitigados pelos limites materiais e formais impostos por lei, de modo a inviabilizar que o ius puniendi assuma consequências abusivas na esfera laboral do trabalhador.

Com efeito, o procedimento disciplinar obedece às regras estabelecidas na CRA e na lei. Sobre esta matéria, dispõe o artigo 50º da LGT que a aplicação de qualquer medida disciplinar, salvo a admoestação simples e admoestação registada, é nula se não for precedida de audiência prévia do trabalhador, e, no caso de decidir aplicar uma medida disciplinar, deve o empregador convocar o trabalhador para uma entrevista (artigo 50 n.º 2 da LGT).

Ao dispor como tal, entende-se que o legislador pretendeu obrigar efectivamente o Empregador a cumprir determinados requisitos formais, antes de o trabalhador ser confrontado com a aplicação de uma medida disciplinar de modo a salvaguardar a verdade objectiva, o contraditório e a realização da justiça material.

 No caso concreto, compulsados os autos e o processo disciplinar apensado, verifica este Tribunal que o trabalhador foi convocado no dia 15 de Julho de 2015 para a realização da entrevista que ocorreu no dia 17 do mesmo mês e ano (fls. 2 a 6 do processo disciplinar), ou seja, o prazo para o trabalhador exercer o seu direito de defesa foi fixado num lapso de tempo inferior a 48 horas.

Assim, atento ao prazo fixado pela Recorrente, em face do prazo legal de 10 dias (prazo máximo) estipulado na alínea b) do nº 2 do artigo 50º da LGT, coloca-se a questão de saber se foram observadas as efectivas garantias de ampla defesa do trabalhador, previstas na CRA.

Vejamos:

O Princípio da celeridade processual constitui indubitavelmente um dos primados basilares em que se funda a matriz constitucional e infraconstitucional de cariz laboral. Contudo, é inegável que a questão subjudice traz à liça outros princípios constitucionais de suma importância e relevância constitucional, designadamente o princípio do contraditório e o direito de ampla defesa do trabalhador, que devem, também, ser escrupulosamente respeitados em conformidade com os ditames constitucionais e legais.

Nessa asserção, seguindo esse primado, o legislador ordinário estabeleceu exigências formais imperativas na LGT, impondo o desencadeamento de um processo disciplinar formal alicerçado na obrigatoriedade da sua redução a escrito e na realização da entrevista em condições que se afigurem justas e adequadas para o trabalhador sufragar a sua defesa.

Há que convir que a entrevista é o apanágio do princípio geral do direito de defesa do trabalhador, que concretiza o momento processual, no âmbito do procedimento disciplinar, para o trabalhador impugnar, contestar, pleitear e contradizer a acusação, oferecendo provas, juntando documentos, arrolando testemunhas, praticando diligências, actos, bem como aferir nulidades susceptíveis de violação do princípio da legalidade.

Neste sentido, embora a lei permita à Recorrente a fixação do prazo para a entrevista, revela-se imperfeito o período fixado. Numa visão holística, infere-se da unidade sistémica da CRA e da lei que tais prazos não podem ser imponderáveis ou inócuos susceptíveis de enfraquecer as reais garantias de defesa do trabalhador, devendo, a contrario sensu, atender os princípios da razoabilidade, da ponderação e do respeito pelo pleno exercício do contraditório.

Em abono da verdade, é indesmentível que da alínea b) do n.º 2 do artigo 50.º da LGT, resulta pouco claro, até mesmo omisso, o prazo exacto necessário que vai da convocatória ao da entrevista, ou seja, quanto ao prazo que deve ser concedido ao trabalhador/arguido para exercer o seu direito de defesa. A referida disposição refere que essa fase decorre no prazo de 10 (dez) dias úteis sobre a data de entrega da carta.

Contudo, é de notar que o Direito do Trabalho hoje constituído numa disciplina jurídica autónoma do Direito Civil comporta normas híbridas. Assim, sem deixar de reconhecer a prevalência das normas especiais no seu âmbito, assinala-se, aqui, a pertinência do regime de subsidiariedade, concretizado pela possibilidade de aplicabilidade das normas gerais.

Na esteira do acima exposto, o nº 1 do artigo 59º do Decreto- Executivo Conjunto nº 3/82, de 11 de Janeiro- Regulamento da Lei da Justiça Laboral, consagra expressamente que: “ os órgãos de justiça laboral poderão recorrer a qualquer norma ou princípio processual do ordenamento jurídico angolano que se adapte à especial natureza deste processo.” Acresce ainda, o nº 2 do citado artigo que, na falta de norma ou princípio processual, os órgãos de justiça procederão pela forma que melhor assegure o conhecimento da verdade objectiva e a realização da justiça nas relações de trabalho.

Da referida disposição, supra citada, pode-se facilmente depreender que o julgador tem legitimidade para recorrer e aplicar as normas gerais nas situações em que haja omissão ou lacuna nas normas especiais.

No caso em apreço, não havendo na LGT (lei especial), uma disposição que estabeleça um prazo mínimo para o trabalhador exercer a sua defesa deve-se recorrer ao prazo geral do direito civil, que é de 5 (cinco) dias, em obediência ao artigo 153.º in fine, do Código de Processo Civil, (CPC), lei geral, aplicável, ex vi, do n.º 1 do artigo 59.º do Decreto Executivo Conjunto n.º 3/82, de 11 de Janeiro.

Ademais, não se pode olvidar o facto de que as normas jurídicas no cômputo geral devem ser interpretadas num conjunto sistémico e integrado, com recurso às várias formas de interpretação, ganhando especial importância, o elemento teleológico que manda atender à sua ratio.

Na mesma linha de pensamento, Abílio Neto na sua obra Novo Código do Trabalho e Legislação Complementar Anotados, 2ª edição- Setembro de 2010, Edições Jurídicas, Lda. Lisboa, página 809, ponto 11.1, assevera: “ a contagem do prazo para o trabalhador responder à nota de culpa apresentada pela entidade patronal aplicam-se as regras estabelecidas na lei civil, dado que não está em causa um acto que deva ser praticado em juízo e que não existe qualquer preceito que imponha outra forma de contagem do referido prazo.”

Perfilhando a mesma tese, enfatizamos, aqui, o entendimento da jurisprudência do Tribunal Supremo vertido nos acórdãos n.º 02/2010 e 52/2014 da Câmara do Trabalho, que fixaram o prazo mínimo de 5 (cinco) dias, elegendo-o, razoavelmente, como um período de tempo justo e adequado para a realização da entrevista do trabalhador, ao abrigo do disposto no artigo 153.º do CPC para o trabalhador responder ao que for deduzido na acusação pelo empregador.

Dos autos, está patente que houve, efectivamente, a entrega da convocatória para a entrevista disciplinar, porém sem a observância de um prazo que conferisse ao trabalhador o tempo necessário e razoável para melhor assegurar a prática de actos e diligências cabíveis, no âmbito do seu direito de ampla defesa, afectando, deste modo o exercício pleno e efectivo desse direito.

Parafraseando Nuno Abranches Pinto, na sua obra “Instituto Disciplinar Laboral”, Coimbra editora, 2009, pág 133, citamos:“ Assim, será ilícita a aplicação de uma sanção por falta de audiência prévia, se os factos imputados ao trabalhador não constarem de documento escrito, se não for concedido prazo para a defesa, se o prazo concedido não for adequado para a apresentação da defesa pelo trabalhador ou se a decisão não lhe for comunicada por escrito.”

Neste contexto, resulta evidente que o prazo de 5 (cinco) dias preenche de forma mais cabal as garantias constitucionais, sendo certo que o princípio do contraditório e o direito à ampla defesa, enquanto corolários da certeza jurídica e da paz social, não devem ser postergados, a favor do princípio da celeridade. Pelo que a inobservância de tais princípios viola os artigos 6.º e 29.º da CRA, bem como os artigos 50.º e 52.º da LGT, tornando o procedimento e a aplicação da medida disciplinar nulos, nos termos previstos no artigo 228º da LGT conjugado com o artigo 220.º do Código Civil.

Assim, em face da perspectiva legal e doutrinária, aqui enunciada, o Tribunal Constitucional conclui que a decisão recorrida está conforme aos princípios, direitos e garantias fundamentais dos trabalhadores previstos na CRA e na lei, não havendo por isso, violação dos artigos 72.º, 175.º e 177.º da CRA, como pretende fazer crer a Recorrente.

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:  

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, 17 Dezembro de 2019 

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva 

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira (Relatora)

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima de L.AB  da Silva

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Victória Manuel da Silva Izata