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ACÓRDÃO N.º586/2019

                                                                                                 

PROCESSO N.º 729-A/2019. 

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade 

Em nome do Povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional: 

I. RELATÓRIO 

Francisco Higino Lopes Carneiro, melhor identificado nos autos, veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo n.º 13/19, tendo apresentado as alegações que passamos a resumir:

  1. A decisão de que se recorre, havia sido proferida como resultado da impugnação judicial das medidas de coacção a si aplicadas em sede do primeiro interrogatório de arguido na fase da instrução preparatória;
  1. Como se pode facilmente notar pela leitura do Processo, a decisão acima referida negou provimento ao recurso interposto da decisão proferida pelo juiz de turno;
  1. O Acórdão recorrido não resolveu nem respondeu com os fundamentos legais impostos pelo imperativo da norma do artigo 17.º, nºs 1 e 2 da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum que dispõe claramente que “a fundamentação não pode consistir na mera evocação de uma norma legal nem na adesão por parte do juiz, às razões e alegações evocadas por qualquer das partes, incluindo o Ministério Público”;
  1. Os Juízes do Tribunal Supremo limitaram-se a reafirmar as posições defendidas pelo Juiz de Turno, assim como do Ministério Público, pelo facto de, no seu Acórdão, terem retomado os argumentos desta entidade;
  1. Para além de estarem desprovidos de suporte legal e doutrinário, os fundamentos expendidos ofendem a dignidade da pessoa humana e violam os princípios fundamentais consagrados na nossa Constituição, como sejam o da legalidade, o da igualdade, o da presunção de inocência, o do contraditório e o do acusatório e ofendem todos os representantes do Povo;
  1. Porque actualmente não existe, em termos materiais, o juiz das garantias, o Ministério Público, não deve constituir qualquer cidadão como arguido, recebida a participação criminal e ouvido o participante, sem antes ouvir também a versão do participado, que pode evocar a inexistência do ilícito criminal;
  1. A inobservância do relato acima apresentado, viola o princípio da legalidade, por ser a lei que consagra o princípio do contraditório e do acusatório, assim como o princípio da igualdade;
  1. Tendo sido convocado e comparecido nas instalações da Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal da Procuradoria-Geral da República, tomou conhecimento da aplicação de medidas de coacção pessoal, a saber: termo de identidade e residência; obrigação de apresentação periódica às autoridades (de 15 em 15 dias) e interdição de saída do País, ex vi artigo 16.º, alíneas a), b) e c) da Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP);
  1. Não foi cumprido o ditame legal segundo o qual é, em princípio, competência exclusiva do Procurador-Geral da República interrogar os arguidos com fórum pessoal ou especial, segundo o preceito imperativo dos artigos 47.º e seguintes da LMCPP: “devendo, neste caso, o preso ser apresentado de imediato ao Procurador-Geral da República para interrogatório, validação da prisão…”;
  1. A interpretação a que se chega acompanhando a doutrina moderna, baseada na jurisprudência dos valores, que afasta a jurisprudência dos interesses, e privilegia o princípio da unidade e harmonia da ordem jurídica angolana, obrigando a uma interpretação correctiva das disposições conjugadas dos artigos 150.º, n.º 2 da Constituição da República de Angola (CRA) e 46.º a 49.º da LMCPP;
  1. Com efeito, o legislador constituinte e o legislador ordinário disseram menos do que pretendiam nos preceitos recém elencados, pois queriam dizer que, fora ou dentro do flagrante delito, as pessoas que gozam de imunidades devem ser interrogadas pelo Procurador-Geral da República ou, em caso de impedimento deste, pelo seu substituto legal imediato, isto é, por um Vice-Procurador-Geral da República ou, também em caso de impedimento deste, por um Procurador Geral-Adjunto da República, conforme os artigos 7.º, 10.º, 13.º e 15.º da Lei n.º 22/12, de 14 de Agosto, Lei Orgânica da Procuradoria Geral da República e do Ministério Público (LOPGRMP)
  1. Atente-se que num simples processo disciplinar não é admissível que a pessoa de categoria inferior instrua um expediente em que seja arguida uma pessoa de hierarquia superior, por maioria de razão não pode isso acontecer num processo criminal, onde estão em jogo bens jurídicos penalmente tutelados, portanto, de maior valor e importância para a estabilidade e a paz social.
  1. Enquanto Deputado à Assembleia Nacional, ao Recorrente não deveria ser aplicada qualquer medida de coacção pessoal. Tal decisão viola a CRA que proíbe, a aplicação destas medidas sem o cumprimento do procedimento aí imposto.

O Recorrente termina, requerendo ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade da decisão recorrida e, consequentemente, a declaração de nulidade da decisão que aplica as medidas de coacção pessoal ao Recorrente, por força dos artigos 1.º; 2.º; 31.º, n.ºs 2 e 6; 67.º, n.º 2; 150.º; 174.º; 175.º e 179.º, n.º 1; todos da CRA; 17.º, 19.º, 46.º e seguintes da (LMCPP); 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro e 7.º; 10.º; 13.º e 15.º da lei n.º 12/12, de 4 de Agosto e 100.º do CPP.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA 

O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional e foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos para os tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no § único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para o apreciar.

III. LEGITIMIDADE 

O Recorrente é parte legítima nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, já que, enquanto agravante no Processo n.º 13/19, que correu termos na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, não viu a sua pretensão atendida.

IV. OBJECTO 

O presente recurso tem como objecto a verificação da constitucionalidade do Acórdão proferido aos 24 de Maio de 2019 pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que julgou não provado e improcedente o recurso e manteve a decisão recorrida nos seus precisos termos.

V. APRECIANDO 

  1. Sobre a Fundamentação da Decisão Recorrida

O Recorrente alega ser inconstitucional o Acórdão que indeferiu o pedido de impugnação da medida de coacção decretada por violação de princípios constitucionais.

Mesmo que não existam expressamente normas constitucionais que se refiram a exigência de fundamentação das decisões judiciais, a verdade é que  é um corolário  do princípio do Estado democrático de direito, consagrado no artigo 2º da CRA. Tem sido esta a posição do Tribunal Constitucional asseverada no Acórdão n.º 122/10 e consolidada no Aresto n.º 341/2015. Com efeito, não restam dúvidas acerca da indispensabilidade do dever de fundamentação das decisões judiciais. É a partir da norma constitucional que pode ser entendido o conteúdo do artigo 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum. Deste resultam implicações claras para os juízes e magistrados do Ministério Público, na medida em que impõe alguma coerência e acima de tudo uma aplicação procedimentalizada  do direito e que se ajuste ao caso concreto. De qualquer das formas, todo este processo deve obedecer a uma racionalidade, na medida em que as várias partes das decisões deverão entre elas encaixar-se sistemática e autonomamente. O dever de fundamentação das decisões, dentre as várias dimensões, todas elas garantísticas, assenta em duas: a garantia da funcionalidade do processo e o controlo democrático da administração da justiça.

Para o caso em análise, nota-se, pela leitura do Acórdão recorrido, que do ponto de vista formal, há uma estrutura que facilita a assimilação do seu conteúdo, na medida em que está apresentado de forma cronológica e tem uma parte que está inteiramente dedicada à fundamentação. Nesta parte, o acórdão em crise responde a cada uma das questões colocadas pelas partes, o que por si só indicia, sem prejuízo da análise do conteúdo dos argumentos, existência de uma fundamentação.

Há, assim, na decisão, um itinerário que por si só evidencia a existência de uma fundamentação e, ao mesmo tempo, de uma argumentação; acumulação de informação; avaliação da informação recolhida e atribuição a cada elemento de um valor ou peso, seguindo-se finalmente a conclusão que consiste na retirada das consequências de cada informação recolhida e a explicação do seu impacto para o caso (Manuel ATIENZA, As Razões do Direito, Teoria da Argumentação Jurídica, Forense universitária, 2016, p. 7).

Importa realçar que as questões colocadas pelo Recorrente por ocasião da impugnação junto do Juiz Conselheiro de Turno e do seu correspondente recurso, são as mesmas, pelo que não podemos estranhar que igualmente tenhamos as mesmas respostas – mera hipótese sem contudo conceder.

Relativamente à ofensa dos princípios do acusatório, do contraditório e da igualdade, importa referir que estes apresentam várias dimensões e, mesmo em abstracto, afigura-se impossível concluir, pelo acima exposto, que a decisão recorrida violou-os de modo absoluto. Assim, para a resposta que se impõe, o Recorrente deveria apresentar e demonstrar de que forma é que a decisão recorrida violou os princípios acima referidos. De qualquer forma,  tal como se afirmou, em termos gerais não se verificaram no processo quaisquer situações que possam ser configuradas em ofensas aos princípios invocados, na medida em que há uma separação nítida de funções entre os vários intervenientes no processo e o Recorrente exerceu todos os seus direitos, fez chegar aos Magistrados a sua versão dos factos constantes da investigação e em nenhum momento lhe foi vetada a possibilidade de exercer o contraditório.

  1. Sobre a Competência do Magistrado que Dirigiu o Interrogatório e Aplicou as Medidas de Coacção Pessoal. 

A LOPGRMP, na alínea h) do n.º 2 do artigo 9.º, atribui ao Procurador-Geral da República competência para ordenar a investigação, a instrução e o exercício da acção penal nos processos criminais, e em especial, naqueles em que sejam arguidos entidades nomeadas pelo Presidente da República e Deputados à Assembleia Nacional.

Com efeito, resulta deste artigo que o Procurador-Geral da República tem o poder para despoletar os processos, devendo em cada caso indicar as entidades responsáveis para a prática dos actos e diligências necessários.

Em termos de gestão administrativa e de modo a garantir a eficiência da actuação dos serviços, a CRA consagra, no seu artigo 199.º, sobre a estrutura da Administração Pública (aplicável à Procuradoria Geral da República enquanto órgão materialmente administrativo), o princípio da desconcentração administrativa que, para o efeito, determina a distribuição e repartição de competências entre o superior hierárquico e os seus subalternos. O n.º 3 do artigo 185.º da CRA e na sequência o 32.º da LOPGRMP consagram, em termos organizacionais, o princípio da hierarquia administrativa. Assim, pode o Procurador-Geral da República permitir que os seus subordinados pratiquem actos que, em termos legais, deveriam ser praticados por si, quando a lei não repartir as competências. Tal é o exemplo da delegação de poderes consagrada no n.º 5 do artigo 189.º da CRA.

É, neste âmbito, que a LOPGRMP consagra na alínea a) do n.º1 do artigo 66.º, enquanto serviço judiciário, a Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal (DNIAP) que é dirigida por um Subprocurador Geral da República, nos termos do n.º 2 do artigo 67.º da referida lei.

A este serviço compete, dentre outras atribuições, dirigir, investigar, instruir e exercer a acção penal nos processos criminais, em especial aqueles em que estejam envolvidas entidades nomeadas pelo Presidente da República, Deputados e demais órgãos, de acordo com a alínea a) do n.º 1 do artigo 68.º do diploma em referência.

O Recorrente foi ouvido pelo Director do DNIAP, não havendo, por isso, qualquer ilegalidade, na medida em que este, enquanto órgão máximo do serviço, pode praticar quaisquer actos, não acontecendo nas situações em que ele delegar ou quando a lei atribui directamente a competência a outro órgão. Se o Recorrente foi ouvido na DNIAP tal como estabelece a LOPGRMP, podia ser ouvido pelo Director. Não resulta da lei em análise qualquer exigência de ser ouvido pelo Procurador-Geral da República.

Mesmo que assim não fosse, consta dos autos uma comunicação feita pelo Procurador-Geral da República ao Presidente da Assembleia Nacional em que este indicava o magistrado que iria ouvir o Recorrente (fls. 156 e 157).

Para todos efeitos e como forma de acautelar supostas ilegalidades, este documento pode ser entendido como uma delegação, embora, para o caso, não fosse exigível. Não há qualquer indicação da CRA ao nível desta matéria, pelo que caberá ao legislador ordinário consagrar, ao abrigo do seu poder discricionário, o regime que melhor se adeque, sem prejuízo dos limites gerais impostos pela Carta Magna.

Por outro lado, não existe hierarquia administrativa entre órgãos ou serviços diferentes, na medida em que esta se apresenta, em princípio, como modelo de organização de serviços que pressupõe a existência de um superior e um subalterno, portanto,  ao contrário do que afirma o Recorrente, não haverá há nenhuma relação de hierarquia entre o Magistrado do Ministério Público e o Recorrente, não se podendo, por isso, afirmar que aquele esteja abaixo e que seja inferior a este.

Efectivamente para a realização da justiça e busca pela verdade material, o facto de o interrogatório ter sido realizado pelo Director da DNIAP, os princípios acima referidos foram acautelados, pelo que teria o mesmo curso se fosse realizado pelo Procurador-Geral da República, na medida em que os factos são os mesmos e as garantias constitucionais do Recorrente foram respeitadas.

Relativamente à aplicação de medidas de coacção pessoal ao Recorrente por um Magistrado do Ministério Público, importa referir que este Tribunal está vinculado pelo Acórdão n.º 467/2017 que “protela os efeitos da nulidade decorrente da inconstitucionalidade parcial, para o momento da implementação do juiz de garantias referidos na alínea f) do artigo 186.º da CRA” e permite que as medidas aplicadas ao Recorrente sejam decretadas por um Magistrado do Ministério Público.

Destarte, as decisões do Tribunal Constitucional, nos termos do n.º2 do artigo 177.º da CRA e do n.º6.º da Lei n.º 2/08 de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, são obrigatórias para todas as entidades. Assim, de acordo com o aresto que vimos referenciando, é constitucional e legal a aplicação de qualquer das medidas de coacção pessoal previstas na lei, a pessoas constituídas arguido em processo penal, por magistrado do Ministério Público, mesmo tratando-se o arguido de um Deputado à Assembleia Nacional.

Ainda a propósito dos efeitos do Acórdão n.º 467/2017 do Tribunal Constitucional, importa referir que este apenas optou por privilegiar o conteúdo da Constituição da República de Angola, na medida em que esta confere ao Juiz o poder para modular os efeitos das decisões de provimento em sede da fiscalização abstracta sucessiva, em nome de determinados valores que, no caso, devem ser atendidos, porquanto da sua preterição resultam algumas vezes prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação.

Daí que se atribua ao Tribunal a possibilidade de adequar a sua decisão às especificidades do caso concreto, o que pressupõe um balanceamento das consequências que podem advir da declaração de inconstitucionalidade. (Luís Cabral de MONCADA, Sobre a Interpretação da Constituição, in Estudos de Direito Público, Coimbra Editora, 2001, p. 502-503).

  1. Aplicação de Medidas de Coacção Pessoal ao Recorrente enquanto Deputado à Assembleia Nacional 

Independentemente de o Recorrente vir alegar – sem razão, como referimos acima – quer a falta de competência funcional do Magistrado do Ministério Público que dirigiu o primeiro interrogatório e aplicou-lhe as medidas de coacção pessoal, como a incompetência dos magistrados do Ministério Público em decretarem medida de coacção pessoal a qualquer cidadão na condição de sujeito passivo na relação jurídico processual penal, vem ainda invocar que a actuação do Ministério Público em causa sempre estaria viciada, porquanto ele, Recorrente, goza de imunidade parlamentar, e as medidas de coacção impugnadas lhe foram aplicadas sem a necessária  autorização da Assembleia Nacional.

Será assim?

A imunidade parlamentar é fundamentalmente justificada para proteger os titulares de cargos públicos contra as ilegalidades, contra a actuação de outros poderes, com enfoque para o judicial, com a finalidade de garantir que estes tenham a liberdade necessária para exercer de forma conveniente os seus cargos, de acordo com as exigências resultantes do princípio da prossecução do interesse público. Com efeito, as imunidades estão em primeira instância, ligadas ao interesse da colectividade e ao bem comum; são uma forma de garantir que o interesse público seja ininterruptamente prosseguido, por via do exercício de uma função pública.

Ao nível das imunidades parlamentares, importa referir que têm por base a garantia do exercício do mandato com a plena liberdade de expressão e de difusão de ideias, enquanto essência da actividade. Daí que o princípio da separação de poderes e da representatividade democrática se apresentem como seus principais fundamentos. 

Deste modo, quando se discute a questão das imunidades parlamentares, estão em causa um conjunto de valores, todos eles com previsão constitucional, sendo que alguns tomam a forma normativa principal, com destaque para os seguintes: liberdade de expressão, irresponsabilidade, inviolabilidade, liberdade de profissão, representatividade democrática, soberania nacional, juridicização das actuações do Estado, justiça e segurança jurídica, protecção da confiança, interesse público, separação de poderes, etc.

Frequentemente, os valores acima referidos aparecem em conflito entre si. Por exemplo, a prevalência da imunidade pode privilegiar a liberdade de expressão, ao mesmo tempo que afasta um princípio muito importante no Estado de direito, a juridicização das actuações do Estado (Carla Amado GOMES, As Imunidades Parlamentares no Direito Português, Coimbra Editora, 1998, p. 60).

A Lei n.º 17/12, de 16 de Maio - Lei Orgânica que Aprova Estatuto do Deputado (LOAED), concretiza o regime constitucional a nível ordinário e não alarga o conteúdo do regime constitucionalmente consagrado.

As normas analisadas não se referem de forma expressa às outras medidas de coacção pessoal. Como resultado, o procedimento nelas previsto deve ser seguido nas situações em que se pretenda deter ou prender o deputado. No caso em análise, não se aplicou qualquer das medidas referidas e como tal, não não era necessária a autorização da Assembleia Nacional.

Por outro lado, a aplicação de tais medidas em nenhum momento põe em causa o exercício do cargo de Deputado. Ele pode praticar todas as actividades que se inserem no âmbito das suas atribuições enquanto representante do povo. Não obstante as medidas aplicadas, o Recorrente pode exercer quaisquer dos direitos consagrados no artigo 17.º da LOAED.

 A razão da intervenção da Assembleia Nacional no processo de levantamento das imunidades parlamentares tem a ver com o impedimento do exercício do cargo, segundo os autores Raul ARAUJO, Elisa Rangel NUNES e Marcy LOPES (Constituição da República de Angola Anotada, Tomo II, Centro de Estudos de Direito Público, Luanda, 2018, p. 414), sobre o artigo 150.º da CRA, “Esta norma constitucional trata da inviolabilidade parlamentar. Ela contempla a irresponsabilidade parlamentar e visa assegurar aos Deputados o exercício da sua função, libertos de pressões abusivas das autoridades governamentais. Os Deputados estão protegidos pela inviolabilidade que impede que possam ser detidos ou presos sem autorização da Assembleia Nacional ou da sua Comissão Permanente, a não ser que haja flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos”.

Na mesma perspectiva, J.J Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA refere que, nestes casos, trata- se de assegurar a liberdade dos titulares de Orgãos  de soberania perante medidas ou procedimentos coactivos, designadamente de caracter criminal ( de detenção, prisão ou julgamento). In “Constituiçao da Republica Portuguesa Anotada, 4.ª edição, Coimbra Editora, 2010, páginas 122 e 123.

O legislador constitucional está apenas preocupado com a perda da liberdade física, com o ius ambulandi (detenção ou prisão), que não se devem confundir com as outras medidas de coacção, menos gravosas, como o termo de identidade e residência. O legislador ordinário não pode, sob pena de inconstitucionalidade, alargar o âmbito da norma constitucional; antes deve manter-se, tal como ocorreu, fiel ao conteúdo do artigo 150.º da CRA.

A interpretação das normas constitucionais são em parte influenciadas pelo contexto e, neste sentido, devemos atender ao conteúdo do princípio da eficácia integradora, enquanto cânone interpretativo, “o aplicador da constituição no sentido de que, ao construir soluções para os problemas jurídico-constitucionais, procure dar preferência àqueles critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração social e a unidade política, porque além de criar uma certa ordem jurídica, toda constituição necessita de produzir e de manter a coesão sócio-política, enquanto pré-requisito ou condição de possibilidade de qualquer sistema jurídico. Em que pese a indispensabilidade dessa integração para a normalidade constitucional, nem por isso é dado aos aplicadores da constituição subverter-lhe a letra e o espírito para alcançar esse objectivo a qualquer custo, até porque, à partida, ela se mostra submissa a outros valores, desde logo reputados fundamentais - como a dignidade humana, a democracia e o pluralismo, por exemplo - que precedem a sua elaboração, nela se incorporam e, afinal, seguem dirigindo a sua interpretação”. (Konrad HESSE, Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, cit., págs. 27 e 68;)

O legislador constitucional não pretendeu incluir no conteúdo do artigo 150.º a referência a outras medidas, porquanto trata-se de conceitos “quantitativamente” diferentes e com impactos desiguais para o exercício das liberdades. Neste contexto, importa vincar a interpretação que melhor assegura a força normativa da CRA, o sentido que confere maior eficácia à norma.

Tal como se referi a situação ora analisada está intimamente relacionada a uma tensão permanente de valores constitucionais, cabendo ao juiz tomar uma decisão acerca dos valores que deverão prevalecer no caso concreto.

Neste sentido, mesmo que a Constituição não fosse clara a respeito do tema, sempre caberia a ponderação entre os valores constitucionais in caso da exigência de justiça em detrimento do sacrifício da liberdade do Recorrente.

Pelo expendido, é, pois, de se concluir que o Acórdão recorrido, ao decidir manter as medidas de coacção decretadas contra o Recorrente, não revela qualquer desconformidade com a Constituição, nem viola, por conseguinte,  os princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade e da presunção de inocência.

DECIDINDO 

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:

Sem custas (nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional).

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 17 de Dezembro de 2019

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra.ª Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira 

Dra.ª Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra.ª Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira 

Dra.ª Maria da Conceição de Almeida Sango 

Dr.ª Maria de Fátima de Lima. A. B da Silva (Relatora) 

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Victória Manuel da Silva Izata