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ACÓRDÃO N.º 589/2019

 

PROCESSO N.º 742-B/2019

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Pedro Kamba, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 1644/18, de 06 de Novembro da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo.

O Recorrente invoca a violação, por parte daquele acórdão, do princípio do processo do julgamento justo e conforme, consagrado no artigo 72.º da Constituição da República de Angola (CRA), por considerar que não houve prova que permita a sua condenação, alega a duplicação do julgamento e pugna, por fim, pelo provimento do recurso e revogação do acórdão recorrido porque nulo, devendo, em consequência, ser colocado em liberdade.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola” e foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos para os tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no § único do citado artigo da LPC.

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é Réu no Processo de Querela da 2.ª Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, de modo subsidiário, ao caso em estudo, por previsão do artigo 2.º da referida LPC.

Assim sendo, o Recorrente tem legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da Lei 3/08, de 17 de Junho da LPC.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso é saber se o Acórdão da 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo violou princípios, direitos e garantias consagrados constitucionalmente, designadamente o princípio do direito a julgamento justo e conforme, previsto no art.º 72.º da CRA.

V. APRECIANDO

Nos termos do artigo 690.º do Código do Processo Civil (CPC), o âmbito do recurso é aferido e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso, e os fundamentos dos recursos devem ser claros e concretos.

Também, as conclusões das motivações não podem limitar-se a mera repetição formal de argumentos, mas constituir uma resenha clara que proporcione ao Tribunal Superior uma correcta compreensão do objecto dos recursos.

No caso concreto, o Recorrente não apresentou as necessárias conclusões. Porém, das alegações consegue subentender-se, de forma clara, o que pretende impugnar, nomeadamente: (i) a violação do princípio do julgamento justo e conforme, consagrado no artigo 72.º da CRA, na medida em que inexiste exame pericial da arma de fogo e relatório de autópsia, pelo que a sua condenação foi sustentada em meras presunções; (ii) ao facto de ter sido julgado, primeiramente, à revelia e, posteriormente, presencialmente, sem o seu consentimento, sendo que o artigo 65.º da CRA reza que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto e (iii) de se ter violado o princípio da livre convicção do julgador.

Este recurso teve na sua origem o facto de o Recorrente, 3.º Sub-Chefe da Polícia Nacional, ter sido condenado, pela prática de um crime de homicídio voluntário, na pena de 14 anos de prisão maior, sem que, no seu entender, houvesse prova, o que viola o princípio do julgamento justo e conforme e, ainda, por ter sido julgado duas vezes pelos mesmos factos (à revelia e, depois, presencialmente, sem a sua autorização).

Assim:

  1. Quanto à Duplicação de Julgamento (Violação do Princípio da Legalidade).

Compulsados os autos verifica-se que, quanto ao Recorrente ter sido julgado duas vezes pelos mesmos factos, só pode tratar-se de uma confusão do Recorrente, porque não se descortina nos autos essa duplicação de julgamentos.

Aliás, mesmo que tivesse sido julgado à revelia (o que não se vê claramente nos autos), o Réu, depois de notificado do acórdão, poderia dele recorrer, no prazo de cinco dias, ou, no mesmo prazo, requerer novo julgamento se tivesse sido condenado em pena maior (vide artigo 571.º do Código de Processo Penal – CPP).

Na verdade, a possibilidade de realização de novo julgamento, nas condições atrás descritas, não tem nenhuma relação com o princípio invocado pelo Recorrente de que ninguém pode ser julgado duas vezes pelos mesmos factos.

É, antes, um direito que lhe assiste, sendo que, no caso, não houve qualquer segundo julgamento, como já se referiu.

Assim, não há qualquer ofensa ao princípio da legalidade.

  1. Quanto à Falta de Provas (Violação do Princípio do Julgamento Justo e Conforme)

Quanto à questão de falta de prova, dada a insuficiência de corpo de delito, de relatório de autópsia, exame pericial à arma, o que, no entender do Recorrente constitui uma violação do julgamento justo e conforme, é de referir não ser linear que a falta destes elementos tenha a virtualidade de justificar a anulação do julgamento, por violação de princípios constitucionais, designadamente, o do in dubio pro reo; presunção da inocência e do julgamento justo.

Isto porque, mesmo que tenha havido falta desses elementos – que são importantes – diga-se desde já, eles não são essenciais para a formação da convicção do julgador, porquanto poderão existir outros meios de prova bastantes para sustentarem uma condenação, desde logo, a confissão, a prova testemunhal e outras.

Compulsados os autos, verifica-se que o Magistrado do Ministério Público solicitou o referido relatório da autópsia e exame pericial à  arma. Porém, apesar da insistência, as entidades competentes não vieram juntar esses elementos de prova.

No entanto, o certificado de óbito, junto a folhas 9, atesta que a morte resultou de um choque hipovolémico, como consequência de um acidente causado por arma de fogo, o que, com a demais prova colhida nos autos, determinou a convicção dos julgadores quanto à sua condenação, como adiante se verá.

Por isso, não há também, violação ao princípio do julgamento justo e conforme.

  1. Sobre o Princípio da Livre Convicção do Julgador

Feitas estas observações, dir-se-á que as questões suscitadas pelo Recorrente em sede de alegações, apesar do respeito por posição contrária, não podem ser objecto deste tipo de recurso para o Tribunal Constitucional.

Com efeito, o que o Recorrente pretende é impugnar o princípio da livre convicção do julgador que, como se sabe, está balizado pelas regras de experiência comum e olhar de um homem médio, mas que não pode ser posto em causa desta forma simplista, sem se alegar um erro de julgamento ou  na valoração da prova.

Estes erros devem resultar do texto da decisão, com base na prova documentada e nos factos dados como provados ou não provados.

Uma apreciação errada da prova pode não ser imediatamente um erro de julgamento ou erro notório na apreciação da prova, pela simples razão de que aquela errada apreciação pode não resultar inequivocamente do texto da decisão.

Com efeito, está-se em presença deste tipo de vícios sempre que do texto da decisão recorrida resulta, de forma clara, um engano que não passe despercebido ao olhar de um homem médio e que se traduza numa conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem. Ou seja, é necessário que perante os factos provados e a motivação, se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum.     

Assim, quando os recorrentes impugnam a decisão proferida sobre matéria de facto, nas alegações e depois nas conclusões, devem especificar os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados.

Se isso se compreende facilmente no caso dos recursos ordinários, por maioria da razão se exigirá neste Tribunal Constitucional, para demonstração clara e inequívoca que os descritos erros conduzem à violação do invocado princípio do julgamento justo e conforme e quiçá ao da presunção da inocência, já que, não cabe a este Tribunal, rever a causa, mas apenas pronunciar-se sobre a violação de princípios constitucionais.

Na verdade, necessário se torna que os recorrentes identifiquem correctamente a questão de facto que foi dada como provada ou não, se for o caso, e não devia tê-lo sido na sua óptica, sendo que, neste caso concreto, de forma muito ligeira, o Recorrente acaba por referir que, com aquela prova, não se poderia concluir ter sido o disparo por si efectuado que causou a morte da vítima.

Mas, o certo é que ninguém levantou a possibilidade de ter havido outros disparos em direcção à vítima, senão os do Réu, que aliás confessou.

Por outro lado, os recorrentes devem especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.

No caso concreto, o Recorrente invoca o relatório da autópsia e o exame pericial à arma que não foram realizados e que, como se disse, não podem servir de sustentação à reclamada absolvição.

Os recorrentes, tratando-se de prova testemunhal devem identificar as testemunhas cujos depoimentos, a seu ver, quanto a concreta situação de facto em questão, impõem decisão diversa da condenação, já que a nossa lei processual obriga à fundamentação das decisões dos Tribunais.

O Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável, consagra a obrigação de fundamentar a sentença no artigo 659.º, exigindo que sejam especificados os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção.

A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: o juiz deve buscar o que realmente aconteceu, conhecendo os limites que o próprio objecto impõe nessa busca e os limites da ordem jurídica.

A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.

Porém, a livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da prova nem com uma mera impressão gerada no espírito dos julgadores pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

Ora, quando está em causa a questão da apreciação da prova, não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem aos julgadores do Tribunal a quo.

Na verdade, a convicção do Tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos, perícias e outras provas constituídas, também, pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, serenidade, “olhares de súplica” para alguns dos presentes, “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência.

Feita esta breve resenha sobre o que deve entender-se por erro na valoração da prova  e de julgamento que é, no fundo, o que o Recorrente pretende sindicar, os mesmos não resultam do texto da decisão recorrida.

Assim, só se pode concluir pela carência de razão do Recorrente.

Mas, ainda que a tivesse, trata-se de um vício que não pode ser impugnado junto do Tribunal Constitucional que não é, nem pode ser olhado como um terceiro grau de jurisdição.

Mas, ainda que assim não fosse, sempre se dirá que a confissão do ora Recorrente, acompanhada das declarações de António Joaquim José, Filipe Alberto Calengue ( constantes das actas de julgamento de folhas 101 a 113), conjugados com o certificado de óbito acima referenciado, permitem concluir, com a certeza exigida por qualquer condenação, ter andado bem o Tribunal recorrido.

O Recorrente pretende, na invocação destes vícios, questionar a valoração da prova que o Tribunal a quo efectuou, o que não pode, sendo que a divergência de convicção pessoal do Recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal formou não se confunde com qualquer vício.   

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, 19 de Dezembro de 2019.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima L. A B. da Silva

Dr. Simão de Sousa Victor (Relator) 

Dra. Victória Manuel da Silva Izata